Neoliberalismo e São Carlos (SP): uma velha receita para o desastre

Em meio a mobilizações e protestos, cresce a insatisfação popular contra o atual prefeito, Netto Donato (PP). Dentre eles destaca-se o abandono de São Carlos, os abusos trabalhistas e a perda de qualidade dos serviços públicos. O neoliberalismo e a austeridade, assim, surgem como palavras-chave desse processo.

5 de Dezembro de 2025 às 21h00

Centro de São Carlos (SP) após enchentes em novembro de 2020. Temporais que alagam e destroem a cidade ocorrem anualmente, onde se convive com o problema desde a década de 1940. Reprodução/Foto: Fabio Maurício/G1.

Desde o início do ano, cresce a insatisfação popular são-carlense contra o atual prefeito da cidade, Netto Donato (PP), em meio a precarização dos serviços públicos, descasos com os funcionários e terceirizações em massa. Culminou-se, assim, diversas manifestações ao longo de 2025 por parte de diferentes categorias e partidos, como pelos funcionários públicos municipais em geral e pelos terceirizados do serviço de limpeza por meio da WWS e Samhi.

Tais mobilizações estão longe de serem novidades para São Carlos. Ao longo das décadas tornou-se cada vez mais comum a entrega dos serviços públicos à iniciativa privada: o SUS, a educação, a coleta e tratamento de lixo, a limpeza urbana e dos prédios públicos e o transporte são alguns dos alvos históricos das diversas prefeituras que administraram o município. A consequência se mostra no abandono para com a cidade, a precarização dos serviços públicos e as constantes denúncias de falta de pagamento dos funcionários.

“Eficiência e modernidade” em cima das costas do povo trabalhador são-carlense

Embora o prefeito proclame querer “modernizar” a gestão em São Carlos, torná-la “eficiente e sustentável”, as práticas seguem o mesmo manual de políticas neoliberais que são feitas há anos sem nenhum questionamento: terceirizações e corte de gastos em setores chave para a população da cidade. Isso pode ser observado ao olharmos cuidadosamente os setores públicos da cidade.

A saúde são-carlense é dominada por Organizações Sociais (OS), entidades privadas que são contratadas para gerir serviços públicos, mas que convenientemente não são chamadas de “privatização”. Pelo portal de licitações da prefeitura, podemos encontrar contratos que datam pelo menos desde 2019 e são renovados anualmente até hoje. De 2019 a 2023, a empresa OMESC foi responsável pelo gerenciamento de médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde ao longo de todos os serviços do SUS, seja as UPAs, UBSs, USFs e o SAMU, por meio de contratos milionários. Após denúncias de falta de pagamento de meses de trabalho por parte da terceirizada, a prefeitura passou a contratar — até hoje — a empresa Cuba Med Ltda que embolsou 12 milhões de reais em 2023 e 11.6 milhões em 2024. É importante frisar, além disso, que outros contratos foram feitos com outras empresas no meio tempo por meio de licitações de dispensa, que se tratam de contratações simplificadas pela prefeitura em “situações de emergência”, não permitindo transparência nos gastos feitos. Temos como consequência o estado da saúde municipal: superlotação, falta de profissionais e infraestrutura precária.

No caso da educação, vemos contenções de gastos que não permitem o funcionamento pleno e de qualidade das escolas e creches.Os CEMEIs (unidades de educação infantil) e EMEBs (educação básica) enfrentamsalas de aula com infiltrações, reformas incompletas, banheiros abandonados, uso de caixas d’água de amianto (altamente tóxico para crianças), ambientes mal planejados para o ensino, falta de vagas e professores, ao mesmo tempo também aderem à terceirização, como no caso das merendeiras. Em resposta a esse problema, o prefeito afirmou, em entrevista de julho de 2024, “Olha, a educação de São Carlos é muito boa, nós precisamos ressaltar isso”, sem nem ao menos citar quaisquer dos problemas históricos da educação municipal. Além disso, também declara: “Na educação, nós percebemos que as nossas crianças precisam de atividades também no contra turno e por isso, firmamos mais parcerias com entidades do terceiro setor para que possamos essa assistência, tanto da parte do esporte, da cultura e do reforço escolar”, em apoio à iniciativa privada cada vez mais presente na educação pública.

Ato contra o desmonte das CEMEI's da cidade, realizado no dia 25 de outubro de 2025. Foto: Marcelo Hayashi/Jornal O Futuro.

No transporte público temos um apoio total às PPPs (Parcerias Público-Privadas) que se estende a décadas. Nela, uma empresa privada atua na gestão dos ônibus em “parceria” com a prefeitura, que na prática significa que ela gerencia todas as linhas e contratações. Em 2022, o ex-prefeito Airton Garcia (na época, do PSL e, após, do PP antes de falecer), apoiador de Netto Donato, e ao qual Netto foi o principal cabeça da gestão de Airton nos últimos anos do seu mandato, assinou um contrato de quase 500 milhões de reais com a SOU Transportes/Rigras para o cumprimento de 10 anos de serviço, a empresa já atuava “emergencialmente” desde 2016. Com um subsídio de quase 50 milhões de reais anuais, no início do ano tivemos um aumento no preço da passagem, enquanto a empresa entrega menos linhas, há falta de manutenção, motoristas apresentam dupla-função como cobrador e atrasos constantes ocorrem. Por mais que manifestações exijam o passe livre, o prefeito se vangloriza por entregá-la apenas nos fins de semana e feriados, mesmo sendo possível gastar menos e facilitar a tarifa zero em todos dias da semana.

Ato-panfletagem realizado no dia 22 de janeiro de 2025, na rodoviária de São Carlos. Foto: Ana Paula Guaratini / Jornal O Futuro.

Na limpeza da cidade vemos um completo abandono. Parques, praças, ruas, calçadas sem cuidado, mato alto ou sem vegetação e sem reforma, lixo acumulado em diversos pontos da cidade, ruas esburacadas e sem manutenção. Em resposta vemos mais do mesmo: desde 2018,a empresa Terra Plana Locação e Serviços Eirelli foi responsável pela “limpeza, manutenção e conservação de praças e jardins; varrição manual de vias; roçada, capina manual e raspagem de vias e logradouros públicos” sob um contrato de 3.6 milhões de reais. Mesmo que tenha visto na prática que nada mudou em São Carlos, a prefeitura de Airton Garcia seguiu com renovações de contrato milionários em 2023e 2024. Esses sinais de irregularidades do serviço só se expandiram com a empresa negando transparência com seus gastos, o que resultou numa pressão popular que causou o término do contrato no final de 2024 e a empresa deixando de pagar suas dívidas com os funcionários.

As PPPs seguem na coleta e tratamento de lixo com a empresa São Carlos Ambiental, contratada em 2010 por 170 milhões de reais para operar até 2030. O contrato foi firmado pelo ex-prefeito Oswaldo Barba (PT) e desde então nenhuma prefeitura ousou tocar no acordo, mesmo com todos os problemas de falta de coleta e espaços públicos imundos denunciados dia após dia. Não contente, Netto Donato estuda privatizar o SAAE sem nenhum tipo de participação popular na decisão, muito menos dos funcionários que, segundo eles, não possuem voz nas decisões e não há transparência.

Com os problemas claramente expostos, percebe-se que o discurso da “modernidade, eficiência e sustentabilidade” não passa de um mero bordão que é contado e recontado pelas diferentes prefeituras que administram o município. Longe haver oposição real entre as candidaturas, o programa político-econômico neoliberal reina no cenário político são-carlense em consonância com a ideologia burguesa a nível nacional.

A situação do município é consequência do cenário nacional

São Carlos não é um caso fora da curva em relação às outras cidades brasileiras. O uso desenfreado de OSs, PPPs, concessões e outros tipos de terceirização já se tornaram norma na economia brasileira, causando uma progressiva substituição de funcionários contratados diretamente pelos entes da União por administrações privadas dos bens públicos. O efeito é um desmantelamento do Estado brasileiro em prol da lucratividade do setor privado, o que leva ao corte de gastos, piora da qualidade do atendimento e redução dos direitos dos trabalhadores.

Para entendermos esse processo, precisamos analisar os entraves legais feitos ao orçamento estatal. Entre eles podemos citar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o Novo Teto de Gastos (Arcabouço Fiscal) e a Reforma Administrativa.

A LRF, decretada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, trata de um conjunto de normas que regulam como, quais e quem gera gastos públicos, visando garantir “responsabilidade e sustentabilidade”. Apesar dos jargões, observa-se que sua escrita revela uma história muito diferente. O artigo 19 da lei, por exemplo, dita que os municípios não podem gastar mais do que 60% de sua receita corrente líquida (seu orçamento disponível) em pessoal e aqui surgem os reais interesses por trás.

Segundo o STF, gastos com PPPs, OSs e outras concessões não contabilizam como “gasto de pessoal” e outras leis passam no Congresso Nacional para tornar essa visão numa regra. Na prática, a interpretação jurídica implica no livre dispêndio orçamentário de prefeituras, estados e da federação em terceirizações, ao mesmo tempo é atado no funcionalismo público direto, o que leva a um incentivo permanente para os entes optarem pela precarização dos serviços. A situação é ainda mais grave quando vemos que 30% dos municípios brasileiros não possuem recursos suficientes para se manterem. Em vez criarem um incentivo à expansão da cobertura da saúde, educação, transporte público e etc., a LRF efetivamente pune qualquer tentativa de investimento e desenvolvimento de condições dignas à classe trabalhadora.

Nesse sentido, o Novo Teto de Gastos, projeto aprovado e apoiado pelo Governo Lula-Alckmin em acordo com o Congresso Nacional, apresenta-se como uma continuidade da LRF. Nele, o crescimento do gasto público pode, ao máximo, ser de 2,5% acima da inflação, respeitando que tal aumento não pode superar 70% da receita adquirida nos últimos 12 meses, e no mínimo 0,6%. O que, à primeira vista, parece ser um avanço comparado ao Teto de Gastos de Temer, nada mais é que migalhas que não alimentam as necessidades do povo brasileiro.

A proposta é incompatível com os pisos constitucionais da saúde e da educação, que obrigam, no mínimo, 15% e 18%, respectivamente, do orçamento anual a ir para essas áreas. Mas não apenas isso, o Novo Teto de Gastos coloca a valorização do salário mínimo, o BPC, Bolsa Família, as universidades públicas, a ciência e tecnologia, todos em cheque. A nível municipal isso significa que não há espaço para investimento em infraestrutura, limpeza urbana, saúde, educação, defesa da mulher, transporte público, cultura, prevenção à desastres climáticos e tudo aquilo voltado ao povo.

O PP, partido de Netto Donato, defendeu o Novo Teto de Gastos sob a mesma cartilha do “rombo das contas públicas”. O que não contam é, justamente, quem suga o orçamento. O arcabouço aplica-se apenas no gasto primário do Estado, isto é, os investimentos em bens e serviços estatais, mas deixa completamente livre os gastos financeiros, voltados para os juros e serviços da dívida pública.

Quando, em grandes veículos de mídia, se fala em “rombo nas contas públicas” referem-se ao chamado déficit nominal (quando os gastos totais, primário e financeiro juntos, são maiores que a arrecadação). Contudo, omite-se a informação que grande parte dos gastos do Estado são financeiros. Segundo o Banco Central (BC), o Brasil paga 1 trilhão de reais anuais em juros e serviços e com tendência a crescer, em comparação, a saúde e a educação juntas são esperadas de receber 409,8 bilhões de reais em 2025, menos da metade entregue aos bancos e ao mercado financeiro. Além disso, a taxa de juros (vinculada à Selic) é definida diretamente pelo BC, uma instituição privatizada no governo Bolsonaro, que continua aumentando sem previsão de parada: cada 1% a mais equivale a 50 bilhões de reais nas mãos do rentismo.

Por fim, a cereja em cima do bolo é a Reforma Administrativa que busca sistematizar um ataque frontal ao funcionalismo público. Dentre as medidas podemos citar a ampliação dos contratos temporários e terceirizados, redução dos salários iniciais, diminuição da estabilidade e o reforço de metas produtivistas. O centro da questão fica, novamente, no corte de gastos e no aumento das possibilidades de exploração dos servidores públicos. Se em São Carlos vemos abusos contra a categoria e terceirizações em massa, a Reforma Administrativa nada mais cria do que bases institucionais para isso ao mesmo tempo que permite reduções ainda mais severas na qualidade dos serviços.

São Carlos, portanto, se forma como um caso simbólico, mas comum na configuração neoliberal da economia brasileira. Discursos em prol da “eficiência” defendida por Netto Donato e por grande parte da Câmara Municipal são mais uma cortina de fumaça para os problemas estruturais do Brasil que simplesmente são ignorados nas campanhas eleitorais.

A mudança se dá pela luta frontal ao neoliberalismo

Por mais que grande parte das amarras citadas sejam nacionais, não podemos esquecer das possibilidades locais. São Carlos é uma das poucas cidades no país que possuem um orçamento acima dos bilhões, ao mesmo tempo que ainda fica longe do teto com pessoal pela LRF (42,49% do orçamento).

As más condições de trabalho pelos serviços terceirizados, o constante desrespeito com os direitos dos funcionários públicos, a entrega dos bens estatais à iniciativa privada, a falta de fiscalização do cumprimento de contrato com as empresas e as propostas de reajuste salarial dos sindicatos ignorados são reflexos diretos da política econômica escolhida e promovida pela prefeitura.

Em nenhuma das falas públicas do prefeito Netto Donato há um questionamento sobre o padrão de funcionamento do Estado brasileiro, não há uma única frase, um único suspiro de indicação à população de quais são os problemas latentes da cidade e suas conexões com a política nacional. Pelo contrário, há uma exaltação ao discurso da “tecnicalidade”, dos agentes estatais como “gestores”, da defesa das terceirizações, da “eficiência” em cima das costas do povo são-carlense. Tudo isso nada mais é do que a defesa velada de um neoliberalismo aberto e desenfreado.

Uma prefeitura verdadeiramente democrática deve ser, necessariamente, conectada aos anseios do povo trabalhador e deve optar pela mobilização direta do mesmo. As decisões políticas não podem ser feitas nos bastidores e os rumos da economia local e nacional devem ser expostas e debatidas com toda São Carlos, fugindo do marco neoliberal de gestão.

Temas como o fim da escala 6x1 em prol da 4x3 em 30 horas semanais, o rompimento de todas as terceirizações, a denúncia dos abusos privados sob os servidores públicos e o controle direto do povo sob os rumos econômicos do município e do país devem ser centrais em qualquer projeto democrático.

Contudo, isso não será o que veremos nem por nenhum setor da direita, alguns deles representados localmente por Netto Donato, muito menos pela esquerda liberal que não tem vergonha de defender a austeridade em cima do povo.