Como as Big Techs aprofundam a seca no Nordeste

No Nordeste, promessa de inovação esconde disputa por recursos vitais e impactos irreversíveis.

13 de Setembro de 2025 às 15h00

Foto: Jornal O Futuro.

Por Fernanda Beatriz

O Brasil atravessa em 2025 uma das piores secas de sua história, sobretudo no sertão nordestino. Em um território já marcado pela escassez hídrica e um dos mais sensíveis às mudanças climáticas, a expansão de data centers de gigantes da tecnologia ameaça transformar uma crise já grave em colapso social e ambiental. O que antes parecia apenas um problema de soberania digital, com a dependência de softwares e serviços proprietários, agora revela impactos muito mais concretos: a disputa direta entre máquinas e pessoas pelo acesso à água e à energia.

Em agosto, o jornal O Futuro denunciou como o Brasil aprofunda sua dependência tecnológica ao gastar bilhões em softwares e serviços proprietários, quadro que se agrava com o Plano Nacional de Data Centers, articulado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reuniões com executivos da Google e da NVIDIA. O projeto, que prevê isenção de impostos e investimentos bilionários, avança em plena crise ambiental, tratando como “baixo impacto” empreendimentos cujo consumo rivaliza com o de grandes cidades.

O caso de Caucaia (CE), onde o megadata center do TikTok está em construção, é emblemático. Em abril, o Intercept Brasil já havia revelado, em uma série de reportagens, que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não foi consultado nas tratativas e que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) chegou a sugerir a dispensa de licenciamento ambiental sob o pretexto de “desburocratizar” investimentos. A proposta se apoiava em um estudo encomendado em 2020 às consultorias Frost & Sullivan e Prospectiva, que classificava data centers como empreendimentos de “baixo impacto” e citava o Chile como modelo de flexibilização, justamente um país mergulhado em uma das secas mais longas de sua história.

O data center do TikTok funcionará 24 horas por dia, sete dias por semana, com consumo energético comparável ao de uma grande metrópole. Considerando o consumo médio residencial brasileiro, o complexo superaria 5.500 municípios e ocuparia a 7ª posição entre os maiores consumidores de energia do país. Isso em uma cidade que  convive com a seca crônica: sofreu estiagem em 16 dos últimos 21 anos, decretando repetidamente situação de emergência. Em 2019, quase 10 mil moradores ficaram sem água potável, sobrevivendo graças a caminhões-pipa. E Caucaia não é exceção. O Intercept apurou que pelo menos outros quatro projetos de data center em análise pelo governo estão localizados em municípios marcados pela escassez hídrica, como Campo Redondo (RN) e Igaporã (BA). Nessas cidades, a população depende há décadas do abastecimento emergencial do governo federal para ter acesso ao mínimo de água.

O impacto é desproporcional. Na prática, o data center projetado para Caucaia consumirá diariamente a mesma quantidade de energia utilizada em suas casas por 2,2 milhões de brasileiros, mais do que 99,9% dos municípios do país. E segundo o relatório ambiental simplificado apresentado pela Casa dos Ventos, a previsão de consumo inicial (210 MW) representa apenas 70% da capacidade do empreendimento. Quando atingir o teto (300 MW), a estrutura demandará o equivalente à energia gasta por 3,2 milhões de pessoas em suas residências.

Tecnologia que compete com a água

Se a disputa por energia já é alarmante, o consumo de água pelos data centers revela uma face ainda mais grave da expansão digital. A inteligência artificial, motor da atual corrida tecnológica, depende de servidores superpotentes que precisam ser constantemente resfriados. Para isso, recorrem à água doce, recurso cada vez mais escasso em um planeta em crise climática.

Relatórios de sustentabilidade das próprias empresas confirmam a dimensão do problema. Em 2024, a Microsoft reconheceu que 42% de toda a água que utilizou veio de regiões sob estresse hídrico. O Google, por sua vez, admitiu que 15% de seu consumo ocorreu em áreas com alta escassez. Somadas, Google, Microsoft e Meta usaram em 2022 cerca de 580 bilhões de galões de água apenas para abastecer seus data centers e servidores de IA, volume suficiente para suprir a necessidade anual de 15 milhões de residências. Grande parte da água utilizada não retorna ao sistema. No caso do Google, apenas 20% da água retirada é enviada a estações de tratamento. Os outros 80% se perdem por evaporação, desaparecendo para sempre do ciclo hídrico. Essa dinâmica já provocou choques em várias partes do mundo. No Arizona, agricultores deixaram terras em pousio e famílias ficaram sem água encanada em 2023, enquanto data centers extraíam grandes volumes da mesma região. No Oregon, os data centers do Google chegaram a responder por 25% de todo o consumo de água de The Dalles, quase triplicando a demanda local em apenas cinco anos.

O Brasil corre o risco de repetir esse cenário. O projeto em Caucaia, no Ceará, prevê 30m³ de água por dia em sistema de circuito fechado, o que equivale a 10,9 milhões de litros por ano retirados de aquíferos locais. Embora a empresa afirme que usará alternativas como dessalinização ou água de reuso, a simples presença de um empreendimento desse porte em pleno semiárido pode reconfigurar bacias hidrográficas e agravar ainda mais a escassez de água. Instalar um projeto intensivo em água em uma região marcada historicamente por secas recorrentes é uma contradição em si. A experiência brasileira mostra os riscos: em Belo Monte (PA), a construção da usina hidrelétrica desviou parte do curso do rio Xingu, deixando comunidades ribeirinhas sem acesso à água, sem pesca e, consequentemente, sem fonte de renda. Se em uma região de floresta úmida o impacto já foi devastador, no semiárido nordestino, onde as comunidades quilombolas, indígenas e rurais dependem diretamente de pequenos cursos d’água para sobreviver, as consequências podem ser ainda mais graves, um megadata center não apenas ameaça acelerar a desertificação, mas pode empurrar populações inteiras para a perda de territórios, modos de vida e condições mínimas de reprodução social.

O problema se agrava ainda mais no país porque o governo insiste em apresentar a matriz hidrelétrica como solução “limpa” para atrair investimentos. Especialistas, no entanto, lembram que esse discurso ignora a água. Se por um lado a dependência de combustíveis fósseis é menor, por outro a operação intensiva de data centers pode sobrecarregar os mananciais.

Extrativismo mineral: a base invisível da inteligência artificial

A infraestrutura digital não se resume a água e energia e depende de mais uma outra forma de recurso natural: a extração intensiva de minerais críticos. Elementos como lítio, cobalto, neodímio, disprósio, germânio e terras raras são indispensáveis para a fabricação de baterias, chips, sensores, satélites e servidores que sustentam os data centers. Embora muitas vezes associada a conceitos abstratos como “nuvem”, “big data”, “machine learning” e “virtualização” percebida como tecnologia imaterial, a IA depende de uma estrutura física complexa e massiva.

As terras raras, por sua vez, desempenham papel central na IA. Materiais como disprósio e térbio aumentam a força magnética em robôs movidos por IA, enquanto o ítrio auxilia supercondutores que melhoram a velocidade e eficiência da computação. Ímãs de neodímio-ferro-boro impulsionam motores de drones e membros robóticos; fósforos à base de európio melhoram telas que exibem dados processados; o lantânio contribui para baterias de níquel-hidreto metálico, essenciais para alimentar dispositivos de IA.

A disputa por esses recursos estratégicos está redesenhando alianças globais. Em 2022, os EUA lançaram a Minerals Security Partnership, ao lado da União Europeia, Japão, Canadá, Austrália, Coreia do Sul e outros aliados, com o objetivo de reduzir a dependência da China, que domina etapas essenciais da cadeia de refino e fornecimento. Enquanto os países ricos planejam sua “segurança mineral”, os custos reais recaem sobre territórios do Sul Global.

Um caso emblemático ocorre na República Democrática do Congo, onde 70% da produção mundial de cobalto é concentrada. Relatórios da Anistia Internacional documentaram despejos forçados, exploração de trabalho infantil e graves impactos ambientais em minas como a de Kolwezi. Apesar de deter cerca de 30% das reservas mundiais de minerais críticos, a África capta apenas 10% da receita global gerada por eles, reforçando a nova divisão internacional do trabalho digital: o Norte concentra valor agregado e controle tecnológico, enquanto o Sul arca com devastação ambiental, violação de direitos e contaminação de comunidades locais.

Essa lógica não se restringe à África. Como denunciado pelo jornal O Futuro, a ofensiva comercial de Donald Trump escancara uma disputa imperialista: o Brasil se vê em uma guerra aberta pelos seus recursos estratégicos, evidenciando sua subordinação a interesses externos, onde cresce a pressão por mineração em terras indígenas e áreas de conservação, justificada pela chamada “transição digital e energética”. Seja para abastecer carros elétricos, servidores de IA ou drones militares, essa mineração crítica se consolida como um novo extrativismo de alta tecnologia.

Caatinga sob ataque: biodiversidade e população em risco

No Nordeste, essa corrida tecnológica encontra um alvo particularmente vulnerável: a Caatinga. A expansão de data centers impõe uma pressão inédita sobre o único bioma exclusivamente brasileiro, cujas espécies são adaptadas a condições semiáridas e vegetação predominantemente xerófita. Com menos de 2% de sua extensão protegida por Unidades de Conservação de proteção integral (Brasil, 2024), o bioma já enfrenta perda acelerada de florestas e espécies endêmicas, avanço da desertificação e pressão de atividades humanas como agropecuária, mineração e, mais recentemente, a instalação de megaprojetos tecnológicos.

O bioma ocupa cerca de 10% do território nacional e abriga uma biodiversidade única, invisível para grande parte das políticas públicas ambientais. A Caatinga perdeu quase metade de sua vegetação nativa e sofre com desmatamento contínuo, degradação de ecossistemas e ameaça crescente à fauna e flora endêmicas. Dados do MapBiomas indicam que, em 2023, o bioma foi o terceiro mais desmatado do país, com aumento de 24% do desmatamento associado à implantação de empreendimentos de energia solar e eólica em relação a 2022. Os estados da Bahia e Ceará lideram o desmatamento, com incrementos de 34% e 28%, respectivamente.

A escolha do Nordeste como polo desses empreendimentos não é casual. A região reúne um conjunto de fatores que a tornam atraente para investidores: oferta crescente de eólica e solar, subsídios fiscais estaduais, terras baratas, abundância de linhas de transmissão recém-instaladas e proximidade com cabos submarinos de fibra ótica que conectam o Brasil diretamente à América do Norte e à Europa. Essa combinação de incentivos cria uma “geopolítica da conectividade” em que o Semiárido é visto como uma plataforma barata e estratégica para a economia digital global. Porém, esse suposto potencial ignora as vulnerabilidades locais: justamente os estados que lideram a atração desses empreendimentos, como Bahia e Ceará, estão entre os mais atingidos por secas prolongadas e perda de cobertura vegetal. Na Bahia, pela primeira vez foi identificada uma região de clima árido, sinalizando escassez crônica de água, o que evidencia a contradição de se expandirem megaprojetos tecnológicos em áreas já sobrecarregadas pelas mudanças climáticas.

Além do valor ecológico, a Caatinga possui um profundo valor cultural. Para as comunidades que vivem nela, o bioma é fonte de identidade, memória e práticas tradicionais de trabalho, como agricultura familiar adaptada às condições semiáridas, manejo de recursos hídricos e preservação de saberes locais. A destruição da vegetação e a pressão hídrica não afetam apenas a biodiversidade, mas ameaçam também esse patrimônio cultural, que reflete a capacidade de resistência de gerações frente às adversidades climáticas e sociais.

Em um cenário já marcado por seca crônica, esses empreendimentos podem desviar cursos de água, fragilizar a vegetação e aumentar a insegurança hídrica e alimentar das comunidades locais. Estudos da Fiocruz e da UFMG indicam que a seca prolongada poderá gerar um custo adicional de R$ 1,43 bilhão/ano ao SUS e provocar migração forçada de até 24% da população residente em áreas afetadas pela desertificação até 2050, com deslocamentos em direção ao Centro-Oeste e à região Norte (IBGE, 2023).

PL da Devastação como facilitador dos data centers

A ofensiva das Big Techs encontra respaldo institucional no “PL da Devastação”, aprovado recentemente, que consolida esse cenário ao afrouxar ainda mais as regras de licenciamento ambiental, dando aos estados poder para enquadrar megaprojetos como os data centers em categorias simplificadas e praticamente isentas de fiscalização. Na prática, isso significa transformar em regra aquilo que já ocorre no Ceará, onde o megadata center do TikTok foi classificado como empreendimento de baixo impacto, sujeito às mesmas normas que um kartódromo ou um parque de vaquejada.

O ponto mais polêmico do PL é a institucionalização da LAC (Licença por Adesão e Compromisso), na qual o próprio empreendedor declara cumprir a legislação ambiental, sem verificação ativa dos órgãos competentes. Outra mudança é a criação da LAE (Licença Ambiental Especial), um instrumento de rito acelerado voltado a projetos classificados como estratégicos. Hoje, a LAC já é usada em alguns estados como na Bahia, mas com o PL passaria a ter validade nacional, ampliando o risco de autodeclarações fraudulentas e de omissão de impactos socioambientais. Já a LAE abre um precedente ainda mais preocupante, pois pode ser usada para liberar rapidamente grandes empreendimentos, como data centers, sob o pretexto de “atrair desenvolvimento”. Essa estratégia de atrair megainvestimentos à custa do meio ambiente é apresentada como se fosse um projeto de “soberania digital” ou “transição verde”, mas na prática trata-se de um greenwashing sofisticado. Ao garantir, sem qualquer lastro técnico, que “a produção de energia renovável do Brasil será suficiente para alimentar os data centers”, Haddad e seus assessores tentam mascarar o impacto devastador desses empreendimentos sobre ecossistemas frágeis e populações locais. A suposta soberania defendida pelo governo não passa de retórica: o país não controla a tecnologia, não domina as cadeias de valor e ainda paga o preço socioambiental de se tornar depósito de megaestruturas digitais.

Imperialismo ecológico: o preço da dependência

Após suas chamadas “independências”, os países latino-americanos se configuraram como economias de capitalismo dependente, subordinadas à lógica de acumulação dos países centrais. Como explica Ruy Mauro Marini (2005), essa dependência é marcada por uma relação em que as estruturas produtivas da periferia são recriadas para assegurar a reprodução ampliada do capital no centro, aprofundando a superexploração da força de trabalho e a apropriação desigual dos recursos naturais.

Na etapa atual do capitalismo, marcada pela digitalização e pela transição energética, a dependência assume novos contornos. O imperialismo ecológico, conceito de Foster e Clark, mostra que o desenvolvimento dos países centrais se sustenta em taxas insustentáveis à custa da destruição ecológica da periferia. Isso se expressa em cinco dimensões principais: a pilhagem de recursos naturais, a reconfiguração forçada de ecossistemas inteiros, a exploração das vulnerabilidades ecológicas, o despejo de resíduos ambientais e a criação de uma ruptura metabólica global que aprofunda a desigualdade entre centro e periferia.

Hoje, esse processo se materializa na troca ecologicamente desigual. Enquanto os países centrais capturam valor agregado e controle tecnológico, os países dependentes exportam água, energia e minerais estratégicos, ficando com os passivos ambientais e sociais. O caso das terras raras, do lítio e do cobalto é emblemático: os países do Sul Global arcam com contaminação, deslocamentos forçados e exaustão de aquíferos, enquanto EUA, Europa e China disputam o controle das cadeias de valor da inteligência artificial e da transição energética.

O Brasil está no centro dessa contradição. Sob o discurso da modernização e da soberania tecnológica, abre suas portas para data centers de big techs estrangeiras e para a mineração em áreas sensíveis, inclusive em terras indígenas e unidades de conservação, como vem sendo defendido por recentes projetos de lei. Na prática, trata-se de uma nova versão da maldição do nitrato: recursos estratégicos que poderiam sustentar a soberania nacional acabam se transformando em vetores de dependência e devastação.

Assim, a política econômica que se apresenta como promessa de desenvolvimento digital esconde uma realidade dura: a de que o Brasil continua inserido em uma lógica de capitalismo dependente e ecologicamente predatório, onde a “soberania” se reduz a atrair capital estrangeiro a qualquer custo. O preço dessa dependência é pago pelos povos do semiárido, pela destruição da Caatinga e pela intensificação da crise climática que recai, de forma desigual, sobre as populações mais vulneráveis.

Essa dinâmica não é nova. Marx já discutia como o valor de troca das forças naturais surge por meio da renda fundiária, mostrando que o capital se apropria da terra e dos recursos como se fossem gratuitos. Nas economias dependentes, isso se intensifica: o mercado externo se torna destino dos capitais mais dinâmicos, consolidando a presença privilegiada do capital estrangeiro e subordinando qualquer estratégia nacional às necessidades do centro.

Autores como Harvey lembram que essa lógica fragmenta a natureza, tratando cada recurso de forma isolada, ignorando seu ecossistema. Contra isso, o marxismo insiste na noção de totalidade: a humanidade é parte da natureza, e o metabolismo social não pode ser analisado sem considerar seus impactos ecológicos. Já Marini evidencia que a dependência resulta na superexploração estrutural do trabalhador, com desgaste prematuro, subnutrição, precarização da vida e necessidade de complementar a reprodução por vias não mercantis. Ou seja: a ruptura metabólica atinge simultaneamente a terra e o trabalhador.

A dinâmica da dependência se intensifica porque, como explica Marx, as forças naturais são apropriadas pelo capital de forma “gratuita”, aumentando a produtividade do trabalho sem aumentar o valor da mercadoria. Isso permite reduzir o valor da força de trabalho e ampliar a taxa de mais-valor, às custas de maior degradação ambiental. É nesse ponto que as trocas ecologicamente desiguais se tornam um mecanismo central: a periferia exporta recursos baratos e bens primários, enquanto o centro captura valor agregado e tecnologia.

Esse padrão se expressa claramente na economia brasileira. Em 2020, os três maiores itens de exportação foram soja (13,4%), minério de ferro (12,3%) e petróleo cru (9,25%), todos de baixo valor agregado. Além disso, 83,9% da comercialização da soja está sob controle de multinacionais estrangeiras, o que evidencia a cisão no ciclo do capital: produz-se para o mercado externo, não para a classe trabalhadora interna. Esse processo agrava conflitos fundiários, expande o desmatamento e provoca esgotamento dos solos, confirmando o caráter ecologicamente predatório da dependência.

Como lembra Saito, o imperialismo ecológico gera um círculo vicioso: quanto mais os recursos se tornam escassos, mais violenta se torna a ofensiva imperialista, acelerando a exploração e a ruptura metabólica. É nesse contexto que exemplos como a exploração do lítio na Bolívia ou o avanço do agronegócio no Brasil demonstram a subordinação política e econômica da periferia, obrigada a responder às demandas do centro sob o discurso de “transição verde” e “modernização tecnológica”.

A convergência entre Teoria Marxista da Dependência (TMD) e ecologia marxista permite compreender que a devastação não é mero efeito colateral do capital, mas parte da lógica de inserção subordinada na divisão internacional do trabalho. A natureza se transforma em plataforma de exportação de valor, enquanto os custos socioambientais ficam restritos às populações locais, povos indígenas, quilombolas e camponeses. Assim, enquanto o centro se apropria dos benefícios, a periferia arca com os custos da crise ecológica.

O imperialismo ecológico, longe de ser um fenômeno novo, atualiza-se conforme as exigências do crescimento. Hoje, ele assume a forma de um duplo movimento: no centro, multiplicam-se as ilusões de que carros elétricos, inteligência artificial e energias renováveis salvarão o planeta; na periferia, avança o extrativismo de minerais críticos, a devastação de biomas pela monocultura, a contaminação por agrotóxicos e os crimes socioambientais que expõem comunidades indígenas, quilombolas e camponesas à vulnerabilidade extrema.

Esse padrão reflete a essência da Teoria Marxista da Dependência: a superexploração do trabalho e da natureza nos países dependentes como condição para a acumulação nos países centrais. O Brasil e a América Latina, estruturados em economias extrativistas e exportadoras, reproduzem a lógica do export-led growth, sacrificando recursos naturais e abrindo mão de políticas de proteção ambiental para atrair capital estrangeiro.

As Big Techs, ao instalar megaprojetos como data centers no Nordeste, reforçam essa engrenagem. Em nome da modernização digital, impõem um modelo que consome água e energia em regiões já vulneráveis, sacrificando a Caatinga e os povos do semiárido. Não se trata de inovação, mas de uma nova fase do extrativismo de alta tecnologia, que intensifica a desigualdade global e consolida o Brasil como território de sacrifício.

O fracasso das promessas de “crescimento verde” e dos mecanismos multilaterais (COPs, ODS, Green New Deal) não é casual: decorre da necessidade de preservar as engrenagens do capital, acumulação, produtividade e transferência dos custos ambientais para o Sul Global. Assim, o discurso de sustentabilidade serve apenas para maquiar uma economia que se mantém dependente e destrutiva.

Romper com essa lógica exige ir além da maquiagem verde. O desafio não é apenas regular as big techs ou extrair mais contrapartidas nacionais, mas enfrentar o núcleo do problema: a dependência estrutural e a lógica de acumulação que sustentam a crise ecológica e a submissão nacional. Como lembrava Marx, apenas uma sociedade de produtores associados poderá regular racionalmente o metabolismo com a natureza, reconhecendo seus limites e reparando os danos históricos impostos pelo capital.