Brasil reforça sua dependência tecnológica nas mãos das Big Techs americanas
Estudo da USP e da UnB revela gastos de em torno de R$ 10 bilhões em tecnologia proprietária somente no último ano, uma mancha no meio do discurso governista de “soberania nacional” para o país que já foi símbolo mundial no uso e desenvolvimento de software livre.

Encontro de Fernando Haddad, Ministro da Fazenda, com Jensen Huang, CEO da NVIDIA. Foto: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda.
Por Daimar Stein
O estudo Contratos, Códigos e Controle: A influência das Big Techs no Estado Brasileiro, realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo e Universidade de Brasília (e ironicamente disponibilizado através do Google Drive), revela que o Estado brasileiro gastou cerca de R$ 23 bilhões (sem ajuste de acordo com a inflação, então o valor real é ainda maior) nos últimos dez anos, em licenças de software, armazenamento em nuvem, segurança digital e softwares de comunicação e tecnologia da informação, com R$ 10 bilhões gastos somente no último ano, um aumento exponencial de um gasto que garante nada mais que a nossa dependência em tecnologia estrangeira e que é parte de um pacto de apagamento do legado brasileiro de vanguarda no desenvolvimento de software livre e nacional.
Colonialismo digital e o uso institucional de software proprietário
O Brasil tem uma comunidade de software livre que vem desde os anos 1990, quando computadores começaram a se tornar minimamente acessíveis no país, e que ganhou força dentro das universidades brasileiras até seu estopim no início dos anos 2000, quando o movimento construiu influência política o suficiente para, durante a gestão de Olívio Dutra (PT) enquanto governador do Rio Grande do Sul, se iniciar a luta pelo uso institucional de software livre no governo brasileiro. Em 2003, no primeiro governo Lula, o país apostou em utilizar e desenvolver software livre dentro das instituições públicas como incentivo ao desenvolvimento e como fomento da indústria nacional de tecnologia, que na época ainda se esforçava para ser competitiva com o resto do mundo.
O projeto fazia sentido e por anos foi bem sucedido. Utilizar software livre no serviço público foi uma forma de treinar parte da população a utilizar esses programas, que foram também utilizados pela indústria nacional de computadores para economizar com licenças de software, permitindo que seus produtos fossem competitivos economicamente com as empresas estrangeiras. Essa iniciativa veio junto com a onda de netbooks, mini computadores portáteis, que o governo buscava integrar com seu projeto de inclusão digital na educação pública. Ao mesmo tempo, fomentava a cultura hacker e grupos de ciência da computação nas universidades, integrando desenvolvedores formados com a infraestrutura nacional.
Infelizmente, os netbooks como formato não emplacaram devido ao seu hardware fraco e seus preços, que, para os produtos nacionais, não eram tão menores que computadores e notebooks de marcas estrangeiras, o que fez com que sua adoção nunca alcançasse grande sucesso, e, com a chegada da revolução dos smartphones, ao ser lançado o primeiro iPhone, o Brasil se encontrou cada vez mais para trás na corrida tecnológica, até eventualmente não se tornar nem sequer um competidor, perdendo cada vez mais sua indústria de computadores e peças para a China e os EUA. Já no serviço público, outra série de problemas se desencadeou.
Os programas livres, por sua natureza colaborativa, não tem, em sua maioria, uma empresa representante para oferecer suporte oficial, abrindo espaço para empresas terceirizadas que fornecessem suporte para a infraestrutura digital, em especial empresas subsidiárias da Red Hat, que, segundo o estudo da USP e UnB, até hoje tem presença forte no país, já que contratos com a mesma somam em torno de R$ 900 milhões. O problema nessa dinâmica é que esse mesmo lobby permitiu que a Microsoft ganhasse espaço novamente, se vendendo em cima da conveniência e dominância de mercado de seu ecossistema de programas, somado com acordos que forneciam licenças a preços baixíssimos, para sobrepor o argumento de economia financeira do software livre, até que em 2016, após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, o governo Temer anunciasse a migração dos softwares utilizados na administração pública federal de volta para os produtos da Microsoft.
Outros contratos foram feitos nos anos seguintes com a Google e a Oracle, cuja dependência nos seus serviços fizeram com que o uso e desenvolvimento de software livre pelo governo praticamente desaparecesse, levando as universidades federais e estaduais eventualmente consigo, dentre as quais poucas mantém grupos e pequenos coletivos de software livre, com pouca ou nenhuma influência sobre as políticas das instituições, e até hoje não se tem uma discussão real sobre investimentos nessa área novamente pelo governo Lula.
A própria USP, instituição onde foi publicado o estudo mencionado no início dessa matéria, foi uma das várias universidades ao redor do Brasil que apostou, durante a pandemia da COVID-19, em um convênio com a Google, que se aproveitou do caos inicial causado pelo lockdown e o aumento exponencial pela demanda de serviços online, para prover serviços de e-mail e armazenamento em nuvem, que foi promovido nas universidades brasileiras como um grande negócio por ofertar espaço ilimitado de armazenamento para os estudantes de forma conveniente, já que a maioria esmagadora das pessoas já utiliza dos serviços da Google.
A promessa, baseada apenas nas garantias da Google, não durou, e o serviço foi descontinuado em 2024, limitando o armazenamento por pessoa, e efetivamente sequestrando dados dos estudantes, pesquisadores e da gestão da universidade, colocando a instituição sob ameaça de exclusão das informações em caso de não-renovação do contrato, com preços muito maiores. Originalmente anunciado em 2021, as universidades tiveram três anos para planejar uma migração, mas a dependência nessas ferramentas se tornou tão generalizada que, ao invés da criação de um plano para garantir a soberania das instituições, os contratos foram renovados ao redor do país e, na USP, divulgado de forma cínica como um “termo de cooperação técnica”.
Tecnologia israelense movendo o genocídio da periferia e a vigilância panóptica
Outro aspecto em que o Brasil continua a depender da tecnologia estrangeira é na área militar e de inteligência. No começo do ano, em meio a falas do presidente Lula denunciando o genocídio palestino, o governo firmou parceria com a Rafael Advanced Defense Systems Ltd., gigante de tecnologia militar controlada pelo estado colonial de Israel. Há anos o governo brasileiro vem também firmando diversos contratos para a compra de sistemas anti-drones piratas e drones israelenses para o equipamento das forças militares e policiais no país.
A situação piora ao analisar os governos estaduais. Nos últimos 14 anos, diversos estados firmaram contratos com as empresas de vigilância israelenses Corsight e Cellebrite para implementar sistemas de reconhecimento facial ao redor das suas capitais e regiões metropolitanas, minando a privacidade de todos os cidadãos em nome do combate ao crime, investindo em uma ferramenta que possui uma taxa de erro de 92%, principalmente afetando a população negra e pobre e reforçando a lógica racista do sistema prisional brasileiro.
A venda e a manipulação de informações sensíveis da população também seguem impunes. Em São Paulo, a OpenIA e a Tools for Humanity por meses compraram o escaneamento de íris de mais de 500 mil pessoas a preço irrisório, sem expor para quais fins, apenas com a desculpa de buscar “criar um sistema de segurança impossível de ser reproduzido por inteligência artificial”. O projeto só foi suspenso em fevereiro deste ano por decisão da Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Toda essa informação coletada garante o financiamento da máquina de guerra sionista e alimenta a máquina algorítmica estadunidense, que cada vez mais está sendo usada para impor sua hegemonia sobre o sul global.
Os ataques de Donald Trump e os efeitos diretos da dependência digital
Recentemente, o Brasil se tornou vítima de uma série de tentativas do governo estadunidense de interferir com a política interna do país, se valendo de sua dominância sócio-econômico-política para pressionar o governo brasileiro a se dobrar diante de suas exigências. Parte do motivo para esses ataques envolve minar a existência do Pix enquanto ferramenta nacional de pagamentos para impor em seu lugar o recém-lançado WhatsApp Pay, ferramenta do grupo Meta, empresa que conhecidamente usa e abusa do efeito de jardim murado para coleta de dados dos seus usuários com o objetivo de abastecer seus algoritmos a partir de seu ecossistema de aplicativos, composto principalmente por Facebook, WhatsApp e Instagram, que contam com uma base de usuários na casa dos bilhões. O principal interesse na imposição do WhatsApp Pay sobre o Pix é efetivamente uma disputa de quem controla os dados de transações financeiras brasileiras.
A empresa vem se aproximando cada vez mais abertamente da extrema-direita e se integrado rapidamente com a máquina de inteligência e militar estadunidense, removendo a máscara de “ferramentas democráticas” que seus aplicativos tentavam manter. Desde a eleição de Donald Trump, a equipe de moderação de seus aplicativos foi significativamente cortada e diversos ataques à midias contra-hegemônicas tem sido feitos, como a censura de conteúdos que denunciem o genocíodo palestino e a amplificação de discurso de ódio e desinformação, como os vídeos recentes do deputado Nikolas Ferreira (PL) aqui no Brasil, que rapidamente entraram na lista de vídeos mais assistidos nas primeiras 24h. Essa última mudança é muito similar à reação contra o PL das Fake News em 2023, que buscava criar pontos-base para a regulação da atuação das grandes empresas de tecnologia contra desinformação, recebido com uma onda de desinformação coordenada entre as Big Techs e grandes nomes da extrema-direita, incluindo o próprio Nikolas Ferreira e a produtora Brasil Paralelo, tentando transformar a imagem do mesmo em “PL da Censura” para influenciar na política interna do país.
Em resposta aos ataques estadunidenses, o governo Lula respondeu com um discurso que, apesar de limitado, se recusou a se dobrar e “deu nome aos bois” quanto aos traidores da pátria da extrema-direita que defendem e articulam esse projeto no exterior, na tentativa de conquistar a anistia e restauração dos direitos políticos do ex-presidente Jair Bolsonaro. Enquanto o discurso de Lula é muito bonito no papel, e existem pequenas iniciativas que vão no caminho correto, como a Nuvem de Governo, o foco do governo brasileiro em nenhum momento se encontra em reduzir nossa dependência nas tecnologias estrangeiras, e sim reduzir o custo de seus contratos com empresas como a Microsoft, regulamentar as Big Techs a partir das demandas estadunidenses, e abrir ainda mais espaço para empresas estrangeiras no país, através de projetos como o Plano Nacional de Data Centers.
Os impactos sócio-ambientais do colonialismo digital
O Plano Nacional de Data Centers foi criado após reuniões bilaterais entre o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a CFO da Google e, Ruth Porat, o CEO da NVIDIA, Jensen Huang, isentando Big Techs de impostos para trazer sua infraestrutura digital para o país. O país atualmente depende de “alugar” grande parte de sua infraestrutura digital com essas empresas, com gastos de 9 bilhões de reais nos últimos 2 anos somente na área de soluções de computação em nuvem. Para além disso, devido aos gastos serem em dólar, esses custos flutuam de acordo com o câmbio, o que foi um grande problema para o governo no final do ano passado com o repentino aumento do dólar.
O plano prevê um regime tributário diferenciado para empresas que cumprirem requisitos de sustentabilidade, garantirem reserva de 10% de poder computacional para o mercado brasileiro e investirem 2% de sua receita bruta em pesquisas relacionadas no país, medidas tecnicamente difíceis de verificar seu cumprimento. Note que, para além da conivência silenciosa de Luciana Santos, Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, não houve diálogo com nomes da indústria nacional, como representantes da Serpro ou da Dataprev, com universidades brasileiras, com representantes de órgãos ambientais, como o Ibama e ICMBio ou até mesmo com nomes da burguesia nacional envolvidos nessa área, como a Magalu Cloud. O resultado não poderia ser outro: o plano, para além de não envolver transferência tecnológica real, que nos permitiria desenvolver nossa indústria nacional, trará impactos ambientais gigantescos.
Com o recente boom das inteligências artificiais, diversos países do norte global, em especial os EUA, com seu trio Google Cloud, Microsoft Azure e Amazon Web Services, maiores empresas da área de hospedagem de sites e serviços, tem procurado, através de seu projeto colonial, levar seus data centers, infraestruturas físicas com milhares de computadores de alta capacidade, responsáveis pelo armazenamento, processamento, distribuição de informação e hospedagem de sites e servidores, para outros países para evitar seus impactos diretos em seu território nacional, especialmente em relação aos recursos hídricos. Em 2023, somente a Google usou em torno de 24 bilhões de litros de água para resfriar sua infraestrutura digital, o equivalente ao gasto anual de água de uma cidade com 400 mil habitantes.
Em 2024, o Brasil enfrentou a pior seca da sua história, precisando aumentar seu uso de usinas termelétricas, que possuem alto impacto ambiental, para evitar apagões. Para além de competir pelos escassos recursos hídricos, esse projeto também afeta diretamente o acesso da população à energia elétrica. A cidade de Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul, recentemente devastada pelas enchentes, se prepara para construir o Scala AI City, uma “cidade de data centers”, cujo consumo de energia elétrica é comparável ao de 40 milhões de pessoas. A conta, na atual conjuntura de colapso climático, não fecha.
Com a aprovação do PL da Devastação, o licenciamento ambiental necessário para a implementação segura desses projetos e para garantir os “requisitos de sustentabilidade” é completamente descartado, facilitando ainda mais a exploração total de áreas de risco, especialmente no Nordeste, reforçando o racismo ambiental. O respeito à opinião das comunidades e moradores das áreas onde serão construídos esses data centers é outro aspecto que desaparece com esse PL, impedindo que casos como o dos data centers barrados pelos moradores de Cerrillos, no Chile, aconteçam aqui no Brasil.
A justificativa para esse todo esse dano potencial, após a repercussão extremamente negativa do plano de Haddad, foi uma estimativa de 2 trilhões de reais em investimentos, apresentada de forma desesperada sem nenhuma base material nem calculando os custos dos seus impactos sócio-ambientais. Segundo Igor Marchesini Ferreira, assessor de Haddad: “o Brasil hoje não consegue atender às próprias necessidades de serviços de data center”. A solução de Haddad e seus assessores, ao invés de investir internamente para atender essas necessidades, é reforçar nossa dependência da tecnologia estadunidense e fazer greenwashing, ao tentar desmerecer críticas aos impactos ambientais garantindo de forma abstrata e sem base material que “nossa produção de energia renovável será suficiente para alimentar as estruturas dos data centers.”
O arcabouço fiscal reforça o domínio das big techs e o sucateamento da ciência
Se o ditado “se algo é gratuito, você é o produto” se tornou senso comum, é porque o modelo de negócio das big techs fez com que, para muitos, não fosse possível acessar outro tipo de contato com a tecnologia. Enquanto o discurso do governo é, de forma submissa, de que o Brasil hoje não consegue atender a própria necessidade de serviços de data center e que por isso precisa de data centers estrangeiros, o estudo Contratos, Códigos e Controle mostra que, só com o dinheiro gasto com software proprietário estrangeiro nos últimos dez anos, o país poderia ter construído 86 data centers totalmente nacionais.
Porém, o que de fato impede esse desenvolvimento não é uma “falta de dinheiro”, e sim a lógica de austeridade reforçada pelo arcabouço fiscal, que, enquanto garante dinheiro para os rentistas e para os conglomerados estrangeiros de tecnologia, limita o investimento em todas as áreas dentro do país, garantindo que as universidades, que são a vanguarda da nossa pesquisa e desenvolvimento, estejam por um fio de não terem condições básicas de funcionamento e garantindo que não exista um projeto nacional de desenvolvimento a partir de investimento estatal. Segundo Ergon Cugler, coordenador do estudo, em entrevista para o Jornal da USP:
“Cada contrato fechado com uma multinacional é uma porta fechada para startups brasileiras, institutos públicos e redes de universidades que já têm competência técnica para entregar soluções de ponta. [...] Estamos perdendo a chance de transformar demanda pública em motor de desenvolvimento. A tecnologia comprada de fora não volta em forma de emprego, renda ou autonomia. A tecnologia feita aqui dentro, sim. [...] Com os mesmos recursos, que hoje sustentam big techs, poderíamos financiar datacenters nacionais, ciência aberta, segurança digital sob jurisdição própria e gerar milhares de empregos qualificados. É uma escolha que pode mudar nossa ciência.”
Se hoje o Brasil não consegue atender a demanda de data centers e não consegue abandonar o software proprietário de forma institucional, é necessário construirmos novamente um projeto nacional que busque reduzir nossa dependência tecnológica no curto e médio prazo, e acabar com essa dependência no longo prazo, com iniciativas como o Encontro Soberania Já sendo um ótimo ponto de partida vindo dos movimentos sociais e comunidades de software livre. Se hoje o Brasil não está na vanguarda da pesquisa e desenvolvimento, é necessário investirmos nas universidades públicas em um projeto de universidade realmente popular e integrada com as demandas de desenvolvimento nacional.
Enquanto não construirmos um ecossistema de tecnologia realmente nacional, baseado em software livre desenvolvido de forma colaborativa e estratégica com todo o sul global e hospedado de forma descentralizada em data centers nacionais, estaremos constantemente sob os desmandos dos países do norte global, sempre à beira de um precipício onde uma aplicação de sanções sobre o país ameaça destruir toda a nossa cadeia de ferramentas de trabalho, comunicação, acesso à informação e até mesmo de segurança nacional. Um futuro diferente e melhor é possível, mas para construí-lo é necessário enfrentar o imperialismo estadunidense e lutar por um projeto de soberania nacional para além do discurso.