PL da Devastação: vetos limitados, retrocessos mantidos
Os vetos propostos por Lula não evitam os retrocessos, pois o licenciamento ambiental segue enfraquecido e os biomas ameaçados, com base na lei aprovada.

Ato contra o PL da Devastação em Salvador (BA). Foto: Jornal O Futuro.
Por Fernanda Beatriz
No dia 8 de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, com vetos, o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido pelos movimentos socioambientais como “PL da Devastação”. Aprovada sob forte pressão da bancada ruralista, a proposta desmonta pilares históricos do licenciamento ambiental no Brasil, fragilizando instrumentos que há décadas funcionam como barreira contra a destruição de biomas e territórios tradicionais. Embora o governo tenha barrado alguns pontos considerados mais críticos, a maior parte da estrutura que flexibiliza regras e favorece grandes empreendimentos foi mantida.
O Planalto buscou apresentar os vetos como um gesto de responsabilidade ambiental, especialmente no contexto da preparação do país para sediar a COP30, em Belém, em 2025. No entanto, especialistas, organizações socioambientais e movimentos populares alertam que a lei, mesmo com cortes promovidos pelo Executivo, representa um enorme retrocesso. As mudanças aprovadas consolidam a lógica do licenciamento por adesão e compromisso, que permite a liberação automática de atividades potencialmente impactantes, sem estudos técnicos detalhados nem participação social. Assim, abre-se caminho para ampliar a degradação ambiental, legalizar práticas nocivas e enfraquecer o papel fiscalizador do Estado.
Esse movimento do governo ocorre em um momento delicado. A COP30, muito aquém de um espaço de compromisso real com o enfrentamento da crise climática, tende a se transformar em vitrine para os interesses do capital nacional e internacional, que se apresentam com discurso “verde” enquanto aprofundam o modelo predatório responsável pela crise ambiental. Lula tem apostado na narrativa da transição ecológica e da sustentabilidade como estratégia de projeção global, mas mostra-se incapaz de romper com as bases estruturais do desenvolvimento extrativista e destrutivo que sustentam o atual modelo econômico.
A opção por uma reação tímida diante de um projeto amplamente criticado reflete essa contradição. Interlocutores do Planalto confirmaram que, mesmo diante de pareceres técnicos contundentes de órgãos ambientais e especialistas, a decisão final coube ao presidente. A elevada politização do tema e o temor de desgaste com o Congresso pesaram mais que as críticas ambientais. Essa escolha pragmática expõe os limites da agenda socioambiental do governo, cada vez mais condicionada pela força do lobby ruralista e pelas pressões por maior “agilidade” nos processos de licenciamento.
Vetos do PL da Devastação
Entre os vetos mais relevantes promovidos pelo presidente Lula estão o §1º do art. 4º, os incisos XXXV e XXXVI do art. 3º e o §1º do art. 18. Esses dispositivos buscavam permitir que Estados e Municípios definissem livremente atividades dispensadas de licenciamento ou alterassem critérios técnicos de porte e potencial poluidor. Ao vetá-los, o governo preservou a uniformidade técnica nacional e a competência normativa da União, evitando a fragmentação da política ambiental em dezenas de legislações locais.
Também foram barradas ampliações abusivas de dispensas e simplificações previstas nos arts. 8º, 9º, 10, 11, 22 e em trechos dos arts. 25 e 26. Essas normas incluíam listas extensas de atividades isentas de licenciamento, possibilidade de aprovação automática por decurso de prazo e generalização da Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Com os vetos, empreendimentos de risco significativo seguem obrigados a passar por análise técnica e a realizar estudos ambientais.
Outros vetos importantes recaíram sobre os arts. 42, 43 e 44, que tentavam esvaziar o poder de órgãos gestores e excluir terras indígenas e quilombolas das salvaguardas legais. A decisão manteve a vinculação dos pareceres técnicos e garantiu que empreendimentos que ameacem povos e territórios tradicionais possam ser barrados ou condicionados. Dispositivos como os arts. 58 e 66 também foram rejeitados, impedindo retrocessos jurídicos e mantendo a competência federal na proteção da Mata Atlântica. Além disso, foram cortadas simplificações que poderiam permitir intervenções em Áreas de Preservação Permanente (APPs) ou a aprovação de obras de saneamento e energia sem análise dos impactos cumulativos, conforme previa o §7º do art. 9º e o caput do art. 10.
Apesar dessas salvaguardas, a lei mantém dispositivos que fragilizam o licenciamento, ignoram a consulta prévia prevista na Convenção 169 da OIT e abrem brechas para acelerar projetos sem proteção adequada. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) destacou que é fundamental o Congresso manter os vetos presidenciais e que o Governo Federal avance para recompor garantias suprimidas pelo Legislativo.
O maior ponto de controvérsia, entretanto, permanece sendo a Licença Ambiental Especial (LAE), incluída no texto pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e mantida pelo Planalto. O instrumento permite acelerar a autorização de empreendimentos considerados “estratégicos”, como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas ou grandes obras de infraestrutura. Regulamentada por medida provisória, a LAE prevê prazo de até um ano para análise do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), mas impede que o processo seja realizado obrigatoriamente em uma única etapa. Lula optou por não vetá-la e, em vez disso, editou uma Medida Provisória (MP) para regulamentar seu funcionamento. Isso significa que a LAE já está em vigor, com força de lei e validade imediata, mesmo antes da análise pelo Congresso, que terá 120 dias para decidir se a mantém, altera ou rejeita.
Na coletiva de imprensa, a ministra Marina Silva e outros representantes do governo defenderam a LAE como uma “inovação positiva”, argumentando que o caráter estratégico não implica aprovação automática e que empreendimentos inviáveis podem ser negados. Ainda assim, especialistas alertam que a medida provisória mantém espaço para pressões políticas sobre órgãos ambientais, sobretudo em contextos de governos menos comprometidos com a pauta socioambiental. Até 15 de agosto, parlamentares já haviam apresentado mais de 800 emendas ao texto, incluindo “jabutis” que tendem a ampliar ainda mais a flexibilização.
O cálculo político em torno da LAE evidencia a dificuldade do governo em equilibrar compromissos ambientais e pressões parlamentares. A antecipação de sua vigência foi interpretada como gesto de deferência a Davi Alcolumbre, aliado estratégico do Planalto, reforçando a tensão entre compromissos internacionais do Brasil e os interesses de grandes empreiteiras, mineradoras e petrolíferas. A secretária-executiva da Casa Civil, Míriam Belchior, chegou a confirmar que projetos como a BR-319 e empreendimentos estratégicos de mineração e petróleo poderão ser analisados no conselho de governo que define a aplicação da LAE.
A polêmica em torno da Licença Ambiental Especial (LAE) ganha ainda mais peso quando relacionada a outros retrocessos legislativos em curso. Paralelamente à edição da Medida Provisória que já coloca a LAE em funcionamento, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou um projeto que regulamenta a exploração econômica em Terras Indígenas. O texto permite atividades de altíssimo impacto, como a extração de minerais, inclusive via garimpo, a exploração de petróleo e gás natural, além de prever ecoturismo e etnoturismo nesses territórios.
Mais grave ainda, a proposta revoga dispositivos da Lei 7.805/1989, que assegurava aos povos indígenas a exclusividade sobre a exploração de suas próprias terras e proibia o garimpo nesses territórios. Ou seja, retira garantias históricas e abre espaço para interesses privados avançarem sobre áreas constitucionalmente protegidas.
Nas redes sociais, Lula buscou reafirmar que os vetos asseguram critérios técnicos sólidos, respeito à Constituição, proteção de povos indígenas e quilombolas e segurança jurídica para investidores. Essa narrativa, no entanto, contrasta diretamente com o cenário descrito: de um lado, a Medida Provisória da LAE, que acelera licenças para grandes empreendimentos estratégicos sem garantir a aplicação integral do licenciamento trifásico; de outro, a tramitação de projetos no Congresso que avançam sobre Terras Indígenas, permitindo mineração, petróleo, gás e até o garimpo em áreas constitucionalmente protegidas. Diante dessas contradições, advogados e especialistas alertam que ainda há espaço para contestação no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte já considerou inconstitucionais licenças simplificadas para atividades de grande impacto, o que abre margem para questionamentos sobre a LAE e até mesmo sobre a revogação de garantias históricas previstas na Lei 7.805/1989. Em ambos os casos, o núcleo do problema é o mesmo: a tentativa de flexibilizar instrumentos de proteção ambiental e territorial em nome de interesses econômicos imediatos, colocando em risco não apenas os povos indígenas e quilombolas, mas também a integridade dos biomas.
Conflitos internos e o rebaixamento do governo frente ao PL da Devastação
Uma ala significativa do governo federal chegou a defender a sanção integral do PL 2.159/2021, mesmo diante das críticas de especialistas e movimentos socioambientais. Os ministérios da Agricultura (MAPA) e de Minas e Energia (MME) pressionaram abertamente para que Lula não realizasse vetos, ainda que isso significasse enfraquecer o licenciamento ambiental e abrir caminho para a destruição de biomas e territórios tradicionais.
Um levantamento da Agência Pública mostrou que, poucos dias após a aprovação do projeto na Câmara, a Casa Civil solicitou manifestação de 17 ministérios, além da AGU e da Secretaria de Análise Governamental. No MME, pelo menos dez departamentos apoiaram a sanção total; já no MAPA, apenas uma coordenação defendeu vetos, propondo inclusive ampliar a autonomia de Estados e Municípios - ponto que acabou rejeitado pelo presidente.
O governo tentou sustentar uma imagem de diálogo e consenso, mas os fatos revelam um Executivo acuado e fragmentado, pressionado por ministérios alinhados a interesses econômicos e pela bancada ruralista. A sinalização de derrubada de vetos por parte do Legislativo deixou clara a dificuldade do governo em manter medidas de proteção ambiental, enquanto a articulação política para preservar os poucos vetos efetivos se mostrou limitada. A reação do Executivo diante do Congresso também expôs fragilidade: até 15 de agosto, já haviam sido apresentadas mais de 800 emendas à medida provisória da LAE, muitas com “jabutis” que ampliam ainda mais as brechas de flexibilização do licenciamento.
Em coletiva à imprensa, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, buscou resgatar sua imagem histórica como liderança ambiental ativa, apresentando os vetos como prova de preocupação com a proteção de povos indígenas, quilombolas e da integridade do licenciamento. No entanto, a defesa feita por Marina funciona mais como malabarismo político, reforçando uma narrativa de responsabilidade ambiental que não se traduz em ação concreta para conter os retrocessos.
O resultado é um governo que se mostra rebaixado e fragilizado, tentando equilibrar pressões do agronegócio e da construção civil, mas incapaz de implementar mudanças estruturais que garantam proteção ambiental efetiva. Mesmo com esses vetos, a maior parte da lei segue em vigor, incluindo a LAE e a expansão da LAC para pequenas atividades, mantendo flexibilizações que podem acelerar empreendimentos sem avaliação adequada ou participação da sociedade. Ou seja, os vetos funcionam mais como uma fachada de responsabilidade ambiental, sem mudar a essência do retrocesso do licenciamento no país.
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