Bruno Huberman: Israel encaminha espécie de “solução final”

Prisões, massacres, bloqueios e a ascensão da extrema-direita israelense: o professor Bruno Huberman expõe como a colonização moldou o genocídio em Gaza e o contexto global da luta palestina.

3 de Outubro de 2025 às 15h00

Reprodução/Foto: Dawoud Abu Alkas / Reuters.

A escalada de violência em Gaza e a intensificação da repressão aos palestinos que deslindam da sequência dos eventos do 7 de outubro de 2023 colocam em evidência uma das crises humanitárias mais graves do século XXI, reconhecida recentemente pela comissão de inquérito da ONU como genocídio. A luta palestina, marcada por décadas de resistência anticolonial e anti-imperialista, se manifesta tanto em confrontos armados históricos quanto em formas de resistência não violenta, como o Sumud – resiliência diante da ocupação – e o movimento Boicote, Desinvestimentos e Sanções.

Apesar de medidas simbólicas do governo Lula, como a suspensão de relações diplomáticas com Israel, a manutenção de relações econômicas e comerciais, incluindo armamentos e investimentos privados, mostra os limites das ações oficiais. Nesse cenário de mais de 700 dias de contínua guerra genocida, em que a mobilização da sociedade civil e da classe trabalhadora surge como peça-chave para pressionar e ampliar a solidariedade internacional, O Futuro conversou com Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, pesquisador do Grupo de Estudos de Conflitos Internacionais (GECI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/INEU). Bruno é autor do livro Colonialismo Neoliberal em Jerusalém (Educ, 2023), e atua na análise de conflitos internacionais, com ênfase no Oriente Médio e na questão palestina.

O Futuro: Quais são os marcos centrais da colonização sionista da Palestina e como eles ajudam a entender o atual genocídio em Gaza?

Bruno Huberman: Um marco central que merece destaque é o caráter de assentamento de colonização exclusivamente judaico na Palestina. Isso decorre da necessidade, presente no movimento sionista, de constituir um Estado de maioria judaica – ou até mesmo de exclusividade judaica. Esse objetivo tem resultado na exclusão dos palestinos e em sua eliminação.
Inicialmente, essa eliminação se deu por meio da expulsão. Dentro do movimento sionista, havia uma ideologia chamada “transferência”, que defendia a remoção dos palestinos para outros países árabes. Essa lógica culminou na Nakba, em 1948, quando cerca de 750 mil palestinos foram expulsos e aproximadamente 500 vilarejos foram destruídos.
Posteriormente, essa ideia evoluiu para um sistema de apartheid, voltado ao controle dos palestinos que permaneceram nos territórios – tanto aqueles dentro de Israel quanto os que vivem em áreas ocupadas, na Jordânia e em Gaza – submetendo-os a um confinamento crescente em parcelas cada vez menores de terra.
O que se observa atualmente é um processo intensificado a partir dos anos 2000. O Estado de Israel passou a adotar de forma mais explícita uma política de eliminação pela morte – uma necropolítica – algo que não era predominante até os anos 1990, embora massacres já tivessem ocorrido antes.
Desde a Segunda Intifada, observa-se um crescimento vertiginoso nesse processo, que resulta no bloqueio completo de Gaza e nos ataques aéreos, que provocam mortes em uma escala nunca antes vista. Desde 2023, observa-se uma nova escala desse processo, provocada pela ascensão da extrema-direita ao poder em Israel, de modo que hoje o genocídio acontece.

O Futuro: Que formas de resistência têm sido construídas dentro e fora da Palestina, e como elas se articulam historicamente com outras lutas anticoloniais e anti-imperialistas?

Bruno: Os palestinos sempre buscaram se inserir nos movimentos de resistência anticoloniais e anti-imperialistas. A luta palestina é fruto de um processo duplo: de resistência ao colonialismo sionista e de oposição ao imperialismo britânico. Assim, ela se insere no contexto mais amplo das lutas contra o imperialismo europeu – inicialmente contra o Império Otomano, impulsionadas pelo nacionalismo árabe, e depois contra os imperialismos britânico e francês. Esse cenário deu origem ao movimento panarabista, mais progressista e radical, liderado por Gamal Abdel Nasser entre as décadas de 1950 e 1970, dentro do qual a resistência palestina encontrou espaço.
Com o fortalecimento do Estado de Israel e a crescente influência do imperialismo norte-americano, a resistência palestina também se alinhou às lutas terceiro-mundistas. Nesse período, estabeleceu alianças com a luta argelina, a luta cubana e a luta maoísta chinesa – considerados os principais aliados no lançamento da guerrilha palestina nos anos 1960. Essa luta armada se estendeu até os anos 1980, marcada pela inserção no contexto da Guerra Fria.
A partir da década de 1980, ocorre uma mudança significativa com a eclosão da Intifada, movimento de desobediência civil da população palestina nos territórios ocupados da Cisjordânia e de Gaza. Esse movimento representou o abandono da luta armada pela OLP (Organização para a Libertação da Palestina), que até então conduzia a guerrilha no exterior, no Oriente Médio. Passaram, então, a surgir novos movimentos guerrilheiros atuando diretamente no território palestino contra a ocupação israelense, como o Hamas e a Jihad Islâmica, além de outros grupos menores.
Na Segunda Intifada, ainda houve participação armada de facções ligadas ao Fatah e à FPLP, mas em escala reduzida. Nesse momento, o Hamas consolidou-se como o principal protagonista da luta armada.
A partir dos anos 1980 e 1990, a resistência não violenta passou a ganhar maior destaque, embora sempre tenha existido. Essa resistência se caracterizou principalmente pelo conceito de Sumud, que pode ser traduzido como resiliência ou firmeza, significando viver apesar da ocupação. Observa-se o crescimento de formas não violentas de resistência até os anos 2000, como o movimento internacional BDS – Boicote, Desinvestimentos e Sanções, inspirado na luta de libertação nacional sul-africana bem-sucedida, que serviu de referência aos palestinos. Além disso, surgiram outras formas de resistência, como greves e mobilizações populares, que se foram articulando ao longo do tempo.

O Futuro: Recentemente foi noticiado que, segundo documentos oficiais israelenses, 75% dos palestinos encarcerados em prisões israelenses são “não combatentes”. Embora o número não seja inesperado para aqueles que acompanham a questão, em sua visão, qual é a particularidade da questão prisional na luta palestina?

Bruno: As prisões israelenses para os palestinos não possuem profundas diferenças em relação ao sistema prisional brasileiro, por exemplo. Ambas são instituições de Estado voltadas para tortura e humilhação.
O processo de aprisionamento dos palestinos está mais vinculado à questão do suposto terrorismo, que criminaliza todas as formas de resistência. Isso faz com que a maioria dos homens, principalmente, seja ou tenha sido encarcerada – mais de 50%, se não me engano, em algum momento de suas vidas.
Lá também existem práticas que, no Brasil, normalmente acontecem de forma informal, como a falta de acesso ao devido processo legal e à ampla defesa. Em Israel, essas práticas são legalizadas, como prisões administrativas, sem necessidade de flagrante ou acusação formal. Crianças e adolescentes também são afetados: a maioridade penal é de 14 anos, e menores de 14 anos podem ser presos para interrogatório.
Métodos de tortura também são legalizados. Enquanto no Brasil essas práticas são geralmente informais, lá existem métodos oficiais, como manter a pessoa paralisada por um tempo, tocar música em volume elevado ou vendar a pessoa, além de formas de tortura mais duras e cruéis.
O que se observa desde o 7 de outubro é uma violência particularmente horripilante em relação aos presos, incluindo estupro sistemático, torturas físicas mais cruéis e, em alguns casos, assassinatos de pessoas sob custódia do Estado. Isso se assemelha ao que se vê nas prisões brasileiras atualmente e ao que ocorreu durante a ditadura. Nesse sentido, o sistema prisional israelense é bastante próximo do que conhecemos do sistema prisional brasileiro.

O Futuro: À luz da recente partida da Flotilha em busca de quebrar o bloqueio sionista a Gaza, quais são os impactos e a importância das campanhas de solidariedade internacional, como as Flotilhas e os boicotes?

Bruno: A solidariedade internacional é absolutamente central. Os acampamentos dos estudantes, as campanhas por boicote, desinvestimentos e sanções, e a flotilha de ajuda humanitária têm uma dimensão simbólica de trazer à tona a questão palestina, com um impacto político sobre o conhecimento produzido em torno do tema, além de furar o monopólio dos meios de comunicação de massa, que frequentemente fazem uma narrativa muito favorável a Israel.
Por exemplo, quem acompanha a questão palestina exclusivamente pelo noticiário da grande mídia brasileira não terá acesso à verdadeira dimensão do genocídio. Saberá apenas que estão ocorrendo problemas e mortes, mas não compreenderá a escala do genocídio. Esse ponto ficou evidente no recente relatório de uma comissão da ONU, que concluiu que há um genocídio em curso. No noticiário diário, porém, esse fato raramente é afirmado; a cobertura geralmente busca legitimar as instituições palestinas, apresentando-as como controladas pelo grupo “terrorista” Hamas.
Nesse contexto, a mídia alternativa, como o jornal O Futuro, é fundamental para furar esse bloqueio e trazer conhecimento que motive e mobilize as pessoas a realizar ações concretas de solidariedade. Essas ações podem variar, desde intervir, por exemplo, em um mercado está importando tâmaras israelenses, fazendo a denúncia para o mercado, para que deixar de importar tâmaras israelenses e comece a importar tâmaras palestinas – algo que aconteceu no mercado do meu bairro – até atuar em sindicatos, movimentos sociais, igrejas ou outros espaços coletivos.
A solidariedade também possui uma dimensão política: enquanto classe trabalhadora, não se trata apenas de uma obrigação moral, mas de compreender que a libertação da Palestina é fundamental para a emancipação da classe trabalhadora brasileira. Ambos os contextos enfrentam o mesmo inimigo: o imperialismo americano, junto às classes dominantes brasileiras, israelenses e palestinas, que de alguma forma contribuem para a manutenção desse sistema de dominação. Essas dinâmicas tornam a solidariedade internacional e a mobilização social fundamentais.

O Futuro: No início de setembro (03) noticiamos a partida de um navio cargueiro carregado de aço brasileiro rumo a Israel. Qual tem sido o papel econômico, político e militar do Brasil na sustentação da ocupação israelense e do genocídio do povo palestino?

Bruno: O atual governo Lula tem adotado medidas simbólicas importantes de afastamento e condenação ao genocídio israelense em Gaza. Entre essas medidas estão discursos do presidente e a redução ao mínimo possível das relações diplomáticas: não há embaixador israelense no Brasil, nem embaixador brasileiro em Israel.
O Brasil também se retirou da aliança internacional na memória do Holocausto, um organismo que atualmente tem como propósito central manipular o antissemitismo e tem atuado de forma dura no Brasil, perseguindo pessoas críticas ao genocídio e limitando a liberdade de imprensa e de expressão.
No entanto, o Brasil continua mantendo relações econômicas com Israel. Há manutenção da importação de armamentos; notícias indicam que o governo federal aparentemente interrompeu novas aquisições após barrar a compra de blindados israelenses pelo Exército, no valor de um bilhão de reais, mas os governos estaduais e o setor privado continuam promovendo relações comerciais. Por exemplo, a polícia de São Paulo, sob o governo de Tarcísio de Freitas, segue adquirindo armamentos, e fundos de investimento ligados a igrejas evangélicas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, continuam investindo em empresas israelenses de tecnologia.
Houve também o caso do aço brasileiro, destinado à fabricação de armas israelenses utilizadas no genocídio ou exportadas para outros locais do mundo, o que muito provavelmente configura violação de direitos humanos. Isso evidencia a importância do boicote econômico. Embora o Brasil não seja exportador de armas para Israel, a nossa cadeia de produção continua, de alguma forma, auxiliando a execução do genocídio. Quanto à exportação de petróleo, informações recentes indicam que, neste ano, o Brasil interrompeu essas vendas para Israel.
Além das medidas econômicas e diplomáticas, a mobilização da sociedade é crucial. Foi muito relevante a ação dos trabalhadores que foram ao Porto de Santos tentar barrar um comboio de aço destinado a Israel. Mesmo que o governo não atue diretamente, a mobilização dos trabalhadores e da classe trabalhadora em solidariedade ao povo palestino é fundamental, e esse tipo de ação tem ocorrido em várias partes do mundo, reforçando a importância da solidariedade de classe.

O Futuro: Temos visto o sionismo no Brasil hoje articulado enquanto elemento ideológico censor, persecutório e revisionista. Como você vê o potencial ideológico e político do sionismo no Brasil? Em que medida isso afeta os movimentos de solidariedade?

Bruno: Mais do que nunca, desde 7 de outubro de 2023, temos observado que organizações sionistas no Brasil, como a CONIB, a Stand With Us Brasil, o Instituto Brasil-Israel e outras, atuam como um braço relevante da extrema-direita brasileira. Em maior ou menor grau, cada uma dessas organizações exerce um papel de coibir a expressão de solidariedade com a causa palestina, conduzida particularmente pela esquerda brasileira.
Vemos políticos de extrema-direita envolvidos nesse processo, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), vereadores do Partido Novo em São Paulo e em outros locais, e a bancada evangélica no Congresso Nacional. Entre eles estão deputados como Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder da oposição e representante dos interesses israelenses, e Eduardo Pazuello (PL-RJ), que apresentou um projeto de lei que busca criminalizar a solidariedade com a Palestina, classificando-a como crime de antissemitismo.
A atuação das organizações sionistas é sólida e importante, no sentido de proteger, defender e justificar o genocídio e a desumanização dos palestinos, além de impedir a solidariedade e fortalecer a extrema-direita brasileira. Essa influência também se manifesta nas alianças que essas organizações tiveram com o governo de Jair Bolsonaro. Por exemplo, Claudio Lottenberg, atual presidente da CONIB, foi cogitado para ser ministro da Saúde durante a pandemia; ele é médico e está ligado ao Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Nesse sentido, as organizações sionistas desempenham um papel fundamental na extrema-direita brasileira, buscando deslegitimar as ações simbólicas de solidariedade do governo Lula em relação à causa palestina, acusando-as sistematicamente de antissemitismo e atribuindo essa pecha ao governo. Para camadas da população brasileira, especialmente a evangélica, isso certamente tem impacto eleitoral e político. Assim, o movimento sionista exerce um efeito bastante deletério na coibição e limitação da democracia e dos direitos no Brasil.

O Futuro: Depois de 700 dias de guerra contínua contra Gaza, quais são os efeitos mais profundos na vida cotidiana do povo palestino e a perspectiva para os próximos dias?

Bruno: É importante ressaltar que não são apenas os palestinos de Gaza que têm sofrido, embora eles certamente sejam os mais afetados desde o início do genocídio. A violência, no entanto, está crescendo contra todos os palestinos que vivem sob a soberania israelense: os palestinos cidadãos de Israel, os palestinos que vivem em Jerusalém e os que vivem na Cisjordânia.
Na Cisjordânia, tem havido um crescimento significativo da colonização e dos processos de expulsão dos palestinos de suas casas e terras. Em Jerusalém, a repressão é muito intensa. Em Gaza, observa-se um processo de expansão da limpeza étnica de forma bastante significativa. As estimativas do número de mortos variam de 200 a 800 mil. Se o número de fato chegar a 800 mil, estaríamos falando de mais de um terço da população de Gaza assassinada, além de milhares de pessoas que já fugiram.
O que está sendo encaminhado, de certa forma, é uma consolidação de Israel de uma espécie de “solução final”. Não se trata do extermínio de todos os palestinos, mas de um confinamento crescente em parcelas cada vez menores do território, com um número menor de palestinos vivendo sob a soberania israelense e com a anexação de territórios palestinos na Cisjordânia e em Gaza. Em outras palavras, trata-se de um aprofundamento do apartheid.
Esse projeto deve se intensificar nos próximos meses. O principal ator internacional nesse processo é o governo Trump nos Estados Unidos, que tem permitido que isso aconteça de forma impune e, pelo contrário, incentivado de maneira bastante relevante. Nesse sentido, é isso que se espera para a vida dos palestinos nos próximos tempos.