Tramitação do PL Antifacção no Senado expõe contradições do governo Lula na segurança pública

A tramitação do PL Antifacção no Senado revela as contradições do governo Lula, que, ao adotar medidas punitivistas para responder à pressão política, reforça agendas da direita sem enfrentar as raízes do crime organizado.

14 de Dezembro de 2025 às 15h00

O relator, senador Alessandro Vieira, ao lado do senador Sergio Moro. Reprodução/Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado.

Após uma passagem turbulenta pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Antifacção (PL 5.582/2025) chegou ao Senado carregando polêmicas e disputas entre o governo e a própria Câmara. A proposta, concebida inicialmente pelo Executivo de Luiz Inácio Lula da Silva, foi profundamente alterada pelos deputados. Agora, no Senado, o relator Alessandro Vieira (MDB-SE) apresentou um substitutivo que resgata pilares centrais do texto original do governo e desfaz alguns dos pontos mais controversos aprovados na Câmara.

A redação feita por Vieira abandona as principais inovações propostas pelo relator da Câmara, Guilherme Derrite (PP-SP), que havia criado um novo “Marco Legal de Combate ao Crime Organizado”, baseado em tipos penais como “domínio social estruturado” e “favorecimento ao domínio social estruturado”, com penas que chegavam a 40 anos. A formulação, que funcionava como uma legislação paralela à Lei de Organizações Criminosas, apresentava o conceito de organização criminosa ultraviolenta — agora descartado pelo Senado.

No lugar disso, Vieira retoma a lógica original do governo: tipificar o crime de facção criminosa dentro da Lei de Orcrim, com penas de 15 a 30 anos. O relatório também iguala milícias privadas às facções, reorganiza regras de confisco de bens e devolve ao Tribunal do Júri a competência para julgar homicídios ligados ao crime organizado.

O substitutivo do Senado ainda elimina trechos considerados inconstitucionais por assessores da Casa, como o fim do auxílio-reclusão para dependentes de presos e a suspensão do voto de detentos provisórios. Outra novidade é a criação de um imposto sobre as apostas esportivas (“bets”) para financiar políticas de combate ao crime organizado. Segundo Vieira, embora tenha revertido vários pontos, o projeto preserva penas duras: somadas diversas tipificações, condenações de lideranças podem chegar a 120 anos, com cumprimento de até 85% da pena em regime fechado.

O texto recebeu apoio tanto da base governista quanto da oposição. O senador Sérgio Moro (União-PR) elogiou a “solidez técnica” do relatório, afirmando que parte das sugestões apresentadas por ele foram incorporadas. O líder do PT, Rogério Carvalho (PT-SE), também aprovou o parecer, destacando o rigor contra crimes graves e a tentativa de abarcar novas formas de atuação das facções.

Um governo que tenta racionalizar o punitivismo

Como já destacou O Futuro, o PL Antifacção foi apresentado logo após a megaoperação policial no Rio de Janeiro, em 28 de outubro, nos complexos do Alemão e da Penha — ação comandada pelo governador Cláudio Castro, que terminou com 121 mortos, a maior chacina da história em operações do tipo. O governo federal, pressionado pela percepção de fragilidade no tema da segurança pública, buscou reagir legislativamente, apresentando um projeto para demonstrar protagonismo na área.

No entanto, como ressalta o criminalista Marco Alexandre Souza Serra, em artigo ao Brasil de Fato, o governo evitou politizar o episódio e confrontar diretamente a política de segurança do Rio. Nada foi proposto em relação à responsabilização pelos mortos, à assistência às famílias ou à prevenção de novas chacinas. Em vez disso, o Executivo optou por uma agenda de endurecimento penal — historicamente bandeira da direita — com novos tipos criminais e aumento de penas já altas.

Serra observa que o projeto parte do “clichê” de que facções crescem por falta de instrumentos legais e penas brandas, algo desmentido por décadas de pesquisa no Brasil. O texto original do governo já apostava em expressões vagas e de apelo retórico, abrindo margem para interpretações discricionárias por parte de polícias, promotores e juízes, e ampliando riscos de uso abusivo do poder punitivo.

A situação se agrava pelo envio do PL em regime de urgência, o que impediu a realização de um debate público robusto, envolvendo movimentos sociais, especialistas e universidades. A estratégia do governo permaneceu restrita à esfera institucional, impedindo a construção de uma disputa na opinião pública capaz de superar o senso comum na segurança pública.

Extrema direita empurra o debate ainda mais para a direita

Se o governo deu o primeiro passo ao adotar um discurso mais punitivista, a extrema direita na Câmara tratou de radicalizar o conteúdo. Guilherme Derrite — ex-secretário de segurança de Tarcísio de Freitas — transformou o PL numa versão inflamada de populismo penal, com tipos vagos e penas exorbitantes.

Agora, mesmo com o recuo promovido pelo Senado, o governo comemora como vitória um texto que permanece mais à direita que sua proposta original. O projeto continua apostando no aumento de penas como resposta ao crime organizado, mantendo a hegemonia ideológica da direita e os interesses da burguesia no debate sobre segurança.

PL Antifacção ignora o verdadeiro debate sobre o crime organizado

Embora o substitutivo do Senado recupere diretrizes importantes para investigações, ele ainda passa ao largo das causas estruturais da criminalidade organizada no Brasil. Não há qualquer enfrentamento ao regime econômico das mercadorias que cruzam o mercado legal e ilegal — base financeira das facções.

A contradição se aprofunda quando se observa que a política econômica do governo Lula segue preservando o legado das privatizações nos setores de produção e distribuição de combustíveis — sem qualquer movimento de reversão ou recomposição da capacidade estatal — ao mesmo tempo em que mantém a lógica de austeridade fiscal do novo teto de gastos e convive com a desregulamentação de setores estratégicos. Nesse ambiente, a ausência de controle público robusto facilita que organizações criminosas capturem mercados como o de combustíveis, partes do setor financeiro e serviços de transporte público, disputando espaços, manipulando preços e lucrando com fraudes e adulterações.

Marco Alexandre Souza Serra lembra que o PCC, por exemplo, opera menos por domínio territorial violento e mais por governança prisional, disciplina interna e redes econômicas diversificadas. Assim, medidas como as do PL Antifacção têm impacto limitado e atingem apenas facções mais ostensivas, como o Comando Vermelho.

O endurecimento penal, portanto, tende a produzir efeitos mais simbólicos do que concretos. Sem atingir o núcleo funcional das organizações, o projeto não apenas amplia o encarceramento em massa — especialmente de jovens negros e periféricos — como também aprofunda o genocídio dessa juventude, reforçando a seletividade penal, a militarização policial e a reprodução das mesmas estruturas repressivas já existentes.