PL Antifacção: os riscos da proposta e a falsa polarização eleitoral

O Projeto de Lei (PL), lançado após a maior operação letal do Rio, intensifica a disputa política, mas mantém soluções punitivistas que podem ampliar o encarceramento sem reduzir o poder das facções.

9 de Dezembro de 2025 às 15h00

O presidente da Câmara, Hugo Motta, e o presidente Lula durante encontro no Palácio do Planalto. Reprodução/Foto: EFE/Andre Borges.

Em 31 de outubro, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou o Projeto de Lei Antifacção (PL 5.582/2025). A medida veio logo após a megaoperação realizada no Rio de Janeiro, em 28 de outubro, nos complexos do Alemão e da Penha, comandada pelo governador Cláudio Castro. A ação resultou na maior chacina da história brasileira nesse tipo de operação, deixando 121 mortos.

O governo buscou apresentar o projeto como resposta ao avanço das organizações criminosas e, ao mesmo tempo, fortalecer sua imagem numa área percebida como um de seus principais pontos fracos: a segurança pública — já mirando o cenário eleitoral de 2026.

Oposição tenta se rearticular em sintonia com o imperialismo estadunidense

Contrariando os interesses do Planalto, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), escolheu o deputado Guilherme Derrite (PP-SP), ex-secretário de Segurança Pública do governo Tarcísio de Freitas, como relator do PL. A nomeação gerou forte reação do governo e acirrou a disputa em torno da política de segurança no Congresso Nacional.

A oposição via na relatoria de Derrite uma oportunidade de reorganização após recentes desgastes, como os provocados pelo tarifaço de Trump, e diante da prisão de Jair Bolsonaro. A escolha do deputado por Hugo Motta conectou tentativas anteriores de direcionar o debate de forma atrelada a posições defendidas por integrantes do governo estadunidense de Trump. O campo oposicionista busca, nesse sentido, transformar o debate sobre segurança pública em plataforma política, tentando capitalizar a imagem de maior rigor no combate ao crime.

As mudanças defendidas pela oposição

Após assumir a relatoria em 7 de novembro, Derrite apresentou seis versões distintas de substitutivo ao projeto original do governo antes da aprovação do texto na Câmara dos Deputados — uma tramitação marcada por conflitos e impasses.

Logo na primeira versão, o relator incluiu duas alterações centrais que enfrentaram forte resistência do Executivo. A primeira classificava facções criminosas como organizações terroristas, proposta defendida por setores da direita alinhados à política de segurança dos Estados Unidos e já prevista no PL 1.283/2025. A segunda submetia as investigações da Polícia Federal sobre organizações criminosas à autorização prévia dos governos estaduais, restringindo a autonomia da corporação.

O governo rejeitou a classificação das facções como organizações terroristas, alegando que esses grupos têm finalidade essencialmente econômica — e não religiosa ou ideológica, como exige a legislação antiterrorista — e alertando para o risco de que tal enquadramento abra espaço para intervenções estrangeiras, inclusive por meio de sanções econômicas. A segunda alteração também foi rechaçada sob o argumento de que a medida buscaria limitar a atuação da Polícia Federal no combate ao crime organizado.

Sob forte pressão, Derrite recuou e retirou as duas propostas, movimento comemorado pela base governista. Ainda assim, o texto final aprovado pela Câmara em 18 de novembro, por 370 votos a 110, manteve pontos de atrito com o Executivo. O principal deles trata da destinação dos recursos apreendidos em operações contra o crime organizado.

Pelo texto aprovado, quando houver atuação conjunta de órgãos federais e estaduais, os bens confiscados deverão ser divididos entre fundos federais e estaduais, e não destinados exclusivamente à esfera federal. Segundo representantes do governo, essa mudança reduz a capacidade financeira da Polícia Federal e compromete ações de desmantelamento de organizações criminosas.

O governo repete a velha cartilha punitivista

Ainda que o governo denuncie “deturpações” promovidas pelo relator, o projeto original já repete uma fórmula conhecida da política de segurança aplicada no Brasil há décadas. O PL não apresenta medidas estruturais capazes de enfrentar as raízes sociais, econômicas e institucionais que alimentam o crime organizado.

A essência do texto segue a mesma lógica punitivista da extrema direita: aumento de penas, criação de novas tipificações e endurecimento de dispositivos legais — sem tocar nos fatores estruturais que sustentam o poder das facções.

Entre as principais propostas do PL estão o aumento das penas para o crime de organização criminosa, que passariam de 5 a 10 anos; a criação da figura qualificada “facção criminosa”, aplicável quando houver domínio territorial ou controle de atividades econômicas mediante violência ou intimidação, com pena de 8 a 15 anos; a possibilidade de aumento da pena em até o dobro nos casos de atuação transnacional, conexão com outras facções, domínio de unidades prisionais ou quando houver morte ou lesão corporal contra agentes de segurança.

Assim como ocorreu com a Lei de Drogas (2006) e a Lei de Organizações Criminosas (2013), ambas aprovadas durante governos petistas, especialistas alertam que o PL Antifacção tende a reforçar o encarceramento em massa, atingindo sobretudo jovens negros e periféricos. Sem estudos prévios de impacto carcerário, o projeto pode agravar um sistema prisional já dominado por facções e que funciona como seu principal centro de recrutamento.

O advogado Antonio Pedro Melchior, presidente do Ibccrim, também alerta para possíveis retrocessos democráticos. Segundo ele, a criminalização da conduta de “embaraçar investigação de organização criminosa”, prevista no projeto, pode ser utilizada para intimidar moradores de áreas periféricas e até mesmo juízes que concedam direitos a acusados.

No campo investigativo, o PL amplia técnicas especiais como infiltração policial e colaboração premiada, prevê cooperação internacional e busca reduzir a comunicação entre membros de facções. No entanto, ignora medidas essenciais como o fortalecimento dos setores de inteligência e a ampliação de quadros profissionais.

Esse vazio se agrava diante da agenda central do governo: o novo arcabouço fiscal. Ao limitar o investimento público, a austeridade inviabiliza qualquer reconstrução estrutural da segurança pública — seja na inteligência, seja nas políticas sociais que poderiam reduzir o recrutamento pelo crime organizado.

Da mesma forma, o governo não sinaliza disposição para enfrentar debates decisivos: regulação rígida de mercados lucrativos controlados por facções, intervenção no sistema financeiro — por onde circula o grosso do dinheiro ilícito — e estatização de setores estratégicos.

Populismo penal e disputa eleitoral

O PL Antifacção, longe de representar um enfrentamento substantivo à extrema direita, acaba por reforçar a lógica do populismo penal. Sua apresentação em regime de urgência, sem amplo debate social, demonstra o caráter eleitoral e imediatista da proposta.

Com isso, o governo abre espaço para que a oposição capitalize o tema e potencialmente aprove uma das legislações mais punitivistas da história recente, numa disputa em que a polarização é mais aparente do que real — já que ambos os campos partilham, em maior ou menor grau, a mesma cartilha repressiva.