Não há alternativa ao Teto de Gastos? Esquerda brasileira se tornou refém do mercado financeiro
Desde 1999, todos os governos têm promovido a cartilha econômica do neoliberalismo à risca, inclusive os petistas.

Reprodução/Foto: Direito Brasil.
Com mais da metade do seu terceiro mandato concluído, o Governo Lula-Alckmin, até o momento, seguiu a grande maioria das medidas presentes na cartilha econômica ortodoxa. Entre elas, o exemplo mais emblemático tem sido a criação do chamado Regime Fiscal Sustentável (RFS), também conhecido como Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Apesar desses nomes, essa medida não apresenta qualquer sustentabilidade para sua continuação ou novidades em matéria de gestão do orçamento do Estado brasileiro, sendo diversas vezes chamado pelo seus críticos de “Novo Teto de Gastos”, em referência ao teto de gastos imposto em 2017, ainda durante o Governo Temer.
Essa lógica fiscalista continuada pelo RFS, na prática, restringe o Estado de utilizar o orçamento público como política fiscal para estabilizar a economia e retirar o país de uma eventual recessão. Recorda-se que esse foi o mesmo caminho percorrido pelo Governo Dilma em 2015 que, mesmo com aumento do desemprego, impôs medidas de austeridade, supostamente para controlar a inflação, aprofundando a crise econômica e contribuindo para sua perda de popularidade. Essa lógica de gestão das finanças do Estado foi sacralizada em 1999, no segundo mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso, mais conhecido como o “tripé macroeconômico”, uma vez que envolve três principais receitas: (i) câmbio flutuante; (ii) regime de metas de inflação e (iii) meta fiscal.
Na terceira medida, aceita-se que o Governo Federal, independente do caso, deve praticar superávit primário, ou seja, que as receitas do Estado sejam superiores às suas despesas. Assim, desde 1999, em efeito, todos os governos têm promovido essa cartilha à risca, inclusive os petistas. Ainda, durante o atual governo, tal regime foi aperfeiçoado, tornando sua gestão mais eficiente. Portanto, Lula, em seu terceiro mandato, dá continuidade ao abandono de qualquer autonomia que o Estado tem como papel de estabilizador da economia, de gastar quando ninguém mais pode gastar (especialmente durante uma eventual recessão, quando há uma onda de demissões). Essa autonomia é substituída por uma simples regra, que deve ser seguida, não importa a conjuntura econômica do país.
Todas as outras regras são secundárias a esta e operam sob sua restrição, dessa forma, qualquer aprimoramento de política pública que irá beneficiar os trabalhadores e os mais pobres, como o aumento dos gastos no orçamento com o Bolsa Família, deve operar dentro dos limites impostos pelo Novo Teto de Gastos. Até programas mais recentes como o Pé de Meia, que promete combater a evasão escolar, sofrem os riscos de cortes em seu orçamento. Nesse sentido, o RFS deverá, uma hora ou outra, impactar os pisos constitucionais da Saúde e Educação, que impõem ao Estado um orçamento mínimo nessas áreas – um dos lados terá de ceder, ou o piso ou o Novo Teto de Gastos. Entretanto, há uma terceira opção, que parece ser a atual escolha para evitar, por enquanto, enfrentar a opinião pública na derrubada dos pisos constitucionais. Essa é a opção de achatar, cortar, diminuir os gastos de outras medidas importantes – como a valorização do salário mínimo (ideia que já foi veiculada na grande mídia empresarial pelo economista ortodoxo Armínio Fraga) – de forma a garantir espaço para os pisos constitucionais.
Todavia, há gastos e gastos. Dentro do jogo hipócrita do parlamento brasileiro, o discurso de “equilíbrio fiscal” de diversos deputados só existe para cortar do orçamento programas importantes para a classe trabalhadora. Entretanto, todo tipo de benefício ou favorecimento para os grandes empresários, com impacto bilionário nas contas públicas, é aprovado com louvor. Ressalta-se que a Lei Kandir, que isenta os grandes produtores de soja e milho de impostos para exportação, teve um custo de R$ 4,2 bilhões no orçamento da União em 2024. Ainda, o regime de desoneração de tributos na folha de pagamento, que reduz o custo da mão de obra principalmente para as grandes empresas, também foi aprovado no ano passado.
Essa conjuntura caótica, espremendo diversos gastos para garantir a constitucionalidade dos pisos, explica o atraso no orçamento de 2025, que foi aprovado pelo Congresso Nacional apenas em 20 de março deste ano, prevendo um superávit de R$ 15 bilhões ao final do ano. Dessa forma, o quadro fica mais claro. Todos os dias os grandes veículos de comunicação fazem um enorme pânico em torno do aumento de gastos importantes para os trabalhadores. Entretanto, essa preocupação com as contas públicas desaparece quando os cortes atingem os bolsos cheios de dinheiro dos empresários.
Nos marcos restritos dessa lógica fiscalista, qualquer política pública relevante que promova algum tipo de justiça social em grande escala, seja na distribuição de renda, na geração de empregos de qualidade ou novos investimentos públicos, irá operar com severas restrições impostas pelo novo teto de gastos.
O arco de medidas neoliberais, na gestão econômica do capitalismo é bem simples. Entre elas, impedir que o orçamento público tenha papel de estabilizar a economia, negar a política fiscal como instrumento amenizador de uma recessão, e impor que os governantes, quaisquer que sejam os eleitos, tenham como objetivo principal o simples exercício de atingir o “equilíbrio fiscal”, promovendo o chamado superávit primário. Cabe ao Estado, contudo, uma única função, a de garantir a estabilidade da inflação e, para isso, é utilizada unicamente a política monetária. Esta, sempre que se julgar necessário, irá impor um choque de juros – não importando seus custos sociais – para impedir uma aceleração nos preços.
Nesse caso, atualmente a autoridade monetária, o Banco Central do Brasil (BACEN), vem promovendo um ciclo de alta no juros, supostamente com o objetivo de controlar a inflação, com a taxa básica de juros na economia, a Selic Meta, atingindo 14,75% na última reunião de 7 de maio, o maior nível desde 2006.
Na ata desta reunião, o BACEN, comandado pelo indicado do Governo Lula-Alckmin, Gabriel Galípolo, repete a cartilha ortodoxa: “O Comitê reforçou a visão de que o esmorecimento no esforço de reformas estruturais e disciplina fiscal, o aumento de crédito direcionado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre a potência da política monetária e, consequentemente, sobre o custo de desinflação em termos de atividade.”
Supostamente a estratégia é garantir uma redução na dívida pública que dará “confiança” aos grandes empresários, uma vez que a taxa de juros da economia cairá o suficiente que valerá a pena para o setor privado realizar investimentos produtivos, como a instalação de fábricas, lojas, além de pesquisa e desenvolvimento. Isso é negado ao Estado, que deve garantir apenas a maior eficiência desse processo, com menos dívida pública através de cortes no orçamento público enquanto a autoridade monetária garante uma inflação controlada.