A bilionária presença do PCC no mercado formal

A Operação Carbono Oculto expôs não só o poder econômico do PCC, mas também a grande fragilidade do sistema de regulamentação sobre as fintechs no Brasil. Se antes a resposta para esconder e levar dinheiro eram os paraísos fiscais, hoje ficou evidente que essas movimentações podem ser feitas em território nacional.

30 de Setembro de 2025 às 21h00

Ação na Faria Lima. Reprodução/Foto: CNN.

Enquanto o combate ao narcotráfico é usado como justificativa para chacina nas periferias, investigações mostram a presença do narcotráfico nos setores formais.

Entre agosto e setembro, operações da Polícia Federal, da Receita Federal e do Ministério Público revelaram a sofisticação da lavagem de dinheiro praticada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e sua infiltração na estrutura formal de comércio, serviços e no setor financeiro.

A operação Carbono Oculto, deflagrada em 28 de agosto, concentrou-se na cadeia de combustíveis (da importação e produção à revenda) e mostrou o uso das fintechs e fundos de investimento para ocultar recursos do narcotráfico. Segundo estimativas, o grupo ocultou mais de 140 bilhões de reais em movimentações ilícitas nos últimos anos.

Em 25 de setembro houve um desdobramento das investigações, que identificou outras empresas também relacionadas ao esquema, passando por motéis, bets, franquias e mais postos de combustíveis, que teriam movido cerca de 52 bilhões de reais (além dos valores anteriores).

O caminho da lavagem

O complexo esquema de lavagem começa pela adulteração de combustível. Na prática, o custo real do litro caía (já que a mercadoria estava adulterada), mas seguia sendo vendida pelo preço cheio do mercado. Nessa venda, a diferença entre o “preço cobrado” do consumidor e o “preço real” daquele litro de combustível garantia uma margem de lucro muito maior, que era a brecha pela qual o dinheiro ilícito entrava no mercado formal. Além disso, eram feitas alterações na documentação da comercialização, com notas fiscais frias, volumes inflados de comercialização e fornecedores fictícios, para garantir uma aparência de contabilidade real ao negócio.

A partir daí, inserido numa cadeia formal de finanças, os valores eram encaminhados para a etapa financeira da lavagem. Fintechs (empresas financeiras de tecnologia) comandadas pelo PCC recebiam os valores, desenvolvendo um esquema de “camadas” para tornar os valores mais difíceis de rastreio, através de múltiplas transferências entre empresas diversas e por “contas-bolsão”. Essas contas recebem valores de diversas fontes e depois os repassam para seus destinos, sendo parte do modo de funcionamento dessas empresas financeiras, mas que foram convenientes para dificultar o rastreio dos valores relacionados aos setores ilegais.

Para garantir mais uma camada de complexidade (e irrastreabilidade) os valores das contas-bolsão eram transferidos para fundos de investimento, que funcionam como grandes contas nas quais as empresas fazem investimentos em múltiplos produtos do mercado financeiro. Essas “idas e vindas” de valores garantiram mais uma forma de ocultar o caminho das transações. Por fim, após essas etapas, os valores eram restituídos aos clientes, dentro do mercado legal, permitindo a compra de produtos de alto valor, como helicópteros, carros de luxo, caminhões, ou negócios como usinas e mais postos de combustíveis. Além disso, com esses valores eram constituídas sociedades em empresas maiores e menores, que também se inserem nesse fluxo de lavagem, como bets, padarias e motéis.

A conveniência da desregulamentação das fintechs

A Operação Carbono Oculto expôs não só o poder econômico do PCC, mas também a grande fragilidade do sistema de regulamentação sobre as fintechs no Brasil. Se antes a resposta para esconder e levar dinheiro eram os paraísos fiscais, hoje ficou evidente que essas movimentações podem ser feitas em território nacional.

Enquanto os bancos tradicionais são obrigados a enviar periodicamente à Receita Federal dados detalhados de movimentações financeiras, além de passarem por supervisão do Banco Central, o mesmo não ocorre às fintechs. Isso cria um ponto cego dentro do sistema financeiro que serve de espaço seguro para transações ilegais.

Nos últimos anos, ocorreram tentativas de corrigir essa assimetria. Em 2020, com o PIX, o Banco Central priorizou a competição no mercado e permitiu que fintechs que movimentassem menos de R$ 500 milhões se conectassem ao sistema sem licença plena. Isso serviu para a inclusão financeira, mas resultou na proliferação de instituições frágeis, abrindo margem para fraudes. O BC depois reforçou as exigências, pedindo mais capital próprio e autorização prévia, mas como são centenas de instituições, a previsão é de que a regulação completa só se consolide até 2029.

Do lado da Receita Federal, houve uma tentativa de estender o e-Financeira, o seu sistema de fiscalização, às fintechs por meio de uma Instrução Normativa em 2024. Essa medida teria dado ao Fisco acesso automático às informações de transações, acelerando fiscalizações que hoje podem levar meses. No entanto, a norma foi revogada após forte campanha de desinformação protagonizada pela extrema direita, que acusava falsamente o governo de “taxar o PIX”, como no popular vídeo do deputado bolsonarista Nikolas Ferreira. Esse recuo abriu um novo flanco regulatório que só agora, após as megaoperações contra o PCC, está sendo retomado: o ministro da Fazenda já anunciou a reedição da regra, obrigando fintechs a prestar informações como os bancos

A própria Febraban alerta há tempos sobre um desequilíbrio entre inovação e segurança: enquanto os bancos arcam com altos custos de regulamentação, muitas fintechs não estão sujeitas ao mesmo rigor, o que fragiliza o sistema financeiro. Já a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) declarou apoio às novas regras, reconhecendo que a equiparação é necessária para reduzir o espaço usado por organizações criminosas.

A resposta institucional veio tarde e a reboque da operação. O Senado aprovou o PLP 125, que cria a figura do devedor contumaz e autoriza a prisão de grandes sonegadores, rompendo com a regra de que o simples pagamento da dívida extingue processos. O projeto ainda impõe capital mínimo para empresas do setor de combustíveis e equipara fintechs a bancos tradicionais, obrigando-as a fornecer dados à Receita.

A Receita também reeditou as normas que obrigam fintechs a reportar movimentações financeiras, dessa vez sem a mesma reação dos bolsonaristas que no passado recente abriram alas para o bilionário esquema do narcotráfico, ao atuar publicamente contra a regulamentação do pix. Agora, com a retomada da norma, a expectativa é que os dados permitam fiscalizações mais efetivas e ampliem a articulação entre Receita, BC e CVM, inclusive sobre criptomoedas.

Mais uma vez: as bets

Reportagem recente publicada pela Piauí deu visibilidade também a outro ponto simbólico revelado pela operação: a sala 1513 do edifício Patrimônio, localizado na Avenida Paulista. Esse endereço de 28m² serve de sede para 108 empresas com capital social declarado de 530 milhões de reais, entre holdings, imobiliárias, joalherias e escritórios de contabilidade.

Uma das empresas sediadas nessa mesma sala é B3T4 International Group, operadora de três casas de apostas online (Bet4, Aposta Bet e Faz o Bet). Investigadores apontam que a empresa integra o circuito de lavagem da facção, valendo-se da facilidade das plataformas digitais para simular apostas e legitimar o capital do tráfico. O elo com o PCC se fortalece pela atuação do empresário Mohamad Hussein Mourad, conhecido como “Primo” e considerado o epicentro do esquema de inserção do grupo criminoso no setor formal. Mohamad, foragido desde agosto, é o CEO da empresa G8LOG, que transportava cargas, como combustível, no esquema de lavagem, e tem relação com múltiplas das empresas sedadas na sala 1513.

Outro destaque fica por conta das conexões internacionais: a B3T4 tem como sócia uma offshore em Curaçao, cujo diretor também intermediou o contrato de patrocínio da Vaidebet com o Corinthians. Parte desse contrato milionário teria irrigado empresas ligadas à facção, mostrando como o crime já alcança setores de entretenimento e esporte com projeção nacional.

A diversidade e a concentração de firmas em um único endereço configuram um “hub empresarial” usado pelo PCC para lavar dinheiro e blindar patrimônio, apoiando-se nas bets, um setor promissor e desregulamentado, para ampliar e legitimar suas transações.

O fracasso do combate ao narcotráfico

Enquanto o capital criminoso se infiltra nas engrenagens da economia, fica cada vez mais evidente que a militarização da segurança pública funciona como fachada para um projeto de extermínio. Tropas nas ruas, operações em favelas e discursos sobre guerra ao tráfico produzem a criminalização da periferia, o assassinato de jovens negros e o encarceramento em massa, sem jamais ameaçar o núcleo do crime organizado. Pelo contrário: enquanto o braço armado do Estado reprime territórios pobres, é na Avenida Paulista e na Faria Lima que se multiplica a cadeia de valores bilionária que sustenta o tráfico. A megaoperação que expôs essa engrenagem deveria reorientar o debate público, deslocando o foco da criminalização periférica para o enfrentamento do capital ilícito, mas o tema continua sendo sistematicamente escanteado.

O faturamento do crime organizado no Brasil rivaliza com setores inteiros da economia formal. A megaoperação revelou não apenas a dimensão dessa estrutura, mas também a fragilidade das vias de combate do Estado, que permitiram tamanha organização nas brechas da regulamentação.

As brechas da desregulamentação sobre os setores financeiros, porém, não devem ser vistas como uma falha do Estado, mas sim como parte de seu projeto, já que é também por esse meio que múltiplos setores da burguesia, para além do PCC, conseguem ampliar seus lucros e facilitar suas transações financeiras. A regulamentação do setor financeiro é fundamental, mas não ameaça o poder dos grandes grupos de narcotráfico. Afinal, a lavagem de dinheiro é atacada, mas a cadeia internacional de produção e comércio segue ativa e lucrativa, sem qualquer estimativa sobre seu tamanho real e sua influência tanto no setor privado, quanto no Estado burguês brasileiro.