As ilusões do multilateralismo e a expansão imperialista no Oriente Médio

O conflito já assumiu contornos de guerra regionalizada, na qual diversas potências – ainda que nem todas atuem com força militar direta – exercem funções complementares à ofensiva liderada por EUA e Israel.

4 de Julho de 2025 às 18h00

Reprodução/Foto: Reuters.

Em meio à regionalização acelerada da guerra no Oriente Médio, o mundo assiste a uma escalada sem precedentes de agressão militar protagonizada pelo eixo EUA-Israel-OTAN, com a conivência silenciosa de potências que se autodeclaram “contra-hegemônicas”. Ao mesmo tempo, expõem-se de forma nua e crua as limitações estruturais do multilateralismo liberal e os reais contornos do chamado projeto multipolar. A ofensiva genocida de Israel contra a Palestina evoluiu para um novo estágio de guerra generalizada, que agora atinge diretamente o território iraniano – colocando toda a região sob o risco de um conflito de proporções catastróficas.

A operação “Espadas de Ferro”, lançada por Israel em outubro de 2023, já havia demonstrado o caráter brutal da ofensiva sionista. Milhares de civis mortos, destruição em massa de infraestrutura e a aniquilação sistemática da Faixa de Gaza foram apenas o primeiro capítulo de um redesenho estratégico que visa redesenhar o tabuleiro geral no Oriente Médio. Mas o que se observou na sequência representou um salto qualitativo na dinâmica do conflito.

Em 22 de junho, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, autorizou uma nova etapa da guerra: a operação Midnight Hammer. Bombardeiros furtivos B-2, acompanhados por mais de 125 aeronaves, cruzaram o Atlântico em longas missões de 18 horas para atingir diretamente três instalações nucleares iranianas, entre elas o complexo subterrâneo de Fordow – marco do programa de enriquecimento de urânio do Irã. Ao todo, foram lançadas pelo menos 14 bombas de penetração profunda, provocando danos classificados como “severos” pelo Estado-Maior Conjunto dos EUA.

No dia seguinte, Trump elevou ainda mais a tensão ao declarar, publicamente, que “o tempo do regime dos aiatolás está chegando ao fim”. A sinalização de uma possível mudança de regime em Teerã provocou reações imediatas – não apenas no Irã, mas dentro da própria administração norte-americana. O secretário de Defesa, Pete Hegseth, tratou de minimizar os efeitos políticos das falas presidenciais, classificando a operação como “cirúrgica” e negando qualquer objetivo de ocupação ou imposição de novo governo. O vice-presidente Vance reforçou que os Estados Unidos “não planejam enviar tropas terrestres” ao Irã, limitando a ação ao suposto controle do programa nuclear.

Apesar da retórica de contenção, o significado estratégico da operação é inegável: trata-se de um ataque unilateral, sem qualquer respaldo do Congresso ou do direito internacional, que amplia exponencialmente os riscos de guerra total na região e explicita o esgotamento das instâncias multilaterais como mediadoras de conflitos.

Em resposta, o Irã lançou mísseis sobre áreas comerciais em Tel Aviv, ferindo dezenas de civis e ampliando a comoção internacional. Em paralelo, iniciou a Operação Boas Novas da Vitória, que atingiu com sucesso a base aérea americana de Al-Udeid, no Qatar – maior instalação militar dos EUA no Golfo Pérsico. Fontes iranianas afirmam que o número de mísseis foi calculado proporcionalmente à quantidade de bombas lançadas por Washington. A Guarda Revolucionária classificou a ação como “resposta legítima a agressões diretas à soberania e segurança nacional”.

Simultaneamente, Israel intensificou substancialmente seus ataques ao território iraniano. Instalações militares, universidades, centros de pesquisa e até mesmo a emissora estatal IRIB foram atingidas – esta última, pela segunda vez em dois dias. A Universidade Shahid Beheshti foi bombardeada, bem como a prisão de Evin e áreas industriais em Karaj e Shahr-e Rey. Um ataque a uma usina de energia causou apagões que afetaram milhares de residências na região metropolitana de Teerã.

Segundo o Ministério da Saúde do Irã, os ataques israelenses já deixaram oficialmente 430 mortos e mais de 3.500 feridos. Organizações independentes de direitos humanos, no entanto, relatam que o número de mortos ultrapassa 900, apontando para a prática de crimes de guerra e bombardeios indiscriminados sobre alvos civis. O nível de destruição em Teerã revela que a ofensiva não está restrita a “alvos militares estratégicos”, como alega Israel, mas se configura como uma tentativa deliberada de desestabilização social e psicológica da população iraniana.

Enquanto isso, nenhuma sanção foi imposta aos agressores. Nenhum organismo multilateral condenou de forma clara e firme os bombardeios americanos e israelenses. Pelo contrário: a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), supostamente neutra, é agora acusada pelo Irã de parcialidade e de ter repassado dados sensíveis de seu programa nuclear à inteligência israelense – o que teria contribuído, entre outras consequências, para o assassinato de cientistas iranianos nos últimos anos. O parlamento iraniano iniciou discussões sobre a suspensão da cooperação com a agência, evidenciando o colapso da confiança nas instituições internacionais e o aprofundamento do isolamento diplomático.

A questão do programa nuclear iraniano é parte central deste quadro e expressão direta de soberania nacional. A postura do imperialismo ocidental – que nunca impôs qualquer controle real sobre o arsenal sionista – escancara a hipocrisia do regime de não-proliferação.

Neste cenário, as denúncias feitas por setores da esquerda revolucionária internacional ganham ainda mais relevância. Não se trata de uma guerra entre iguais – tampouco de um conflito regional isolado. A ofensiva liderada por Israel e endossada por Washington configura-se como uma agressão imperialista em grande escala, cujo objetivo é esmagar qualquer polo de resistência regional que ameace os interesses econômicos do bloco ocidental. Gaza foi o laboratório, Teerã é agora o novo front.

Sob o prenúncio de que a próxima escalada entre as partes poderá ser a última antes de uma ‘guerra mundial’, diversas análises titubeiam sobre o fato de que este já é um evento que extrapola o mero conflito entre dois Estados. O conflito já assumiu contornos de guerra regionalizada, na qual diversas potências – ainda que nem todas atuem com força militar direta – exercem funções complementares à ofensiva liderada por EUA e Israel. O envolvimento de países no entorno da região evidencia a existência de toda uma cadeia mobilizada pela rapina imperialista, alicerçada em interesses econômicos, estratégicos e geopolíticos que extrapolam a narrativa de confronto entre Teerã e Tel Aviv.

No Golfo, o Qatar, apesar de seus laços com o Irã, fornece suporte logístico vital à aviação militar israelense, permitindo que aviões de combate sejam reabastecidos em pleno voo por aeronaves decolando de Al-Udeid – a maior base aérea dos Estados Unidos na região. Esse apoio logístico qualifica o emirado como partícipe objetivo da ofensiva, ainda que sob o verniz diplomático de pretensa neutralidade. O Egito, por sua vez, segue permitindo o bloqueio e controle sobre a passagem de palestinos por Rafah, funcionando como agente de contenção para a resistência em Gaza. Não é coincidência que, em 2023, esse papel tenha gerado uma crise internacional diante da recusa em facilitar a saída de civis estrangeiros.

Na Jordânia, o monarca Abdullah intercepta drones iranianos e intensifica a repressão a palestinos em território jordaniano, em uma tentativa de neutralizar solidariedades internas. A Arábia Saudita, por sua vez, não apenas se abstém de denunciar a escalada israelense, como possui vínculos empresariais diretos com o complexo militar-industrial israelense, incluindo aportes na indústria da guerra que municia os ataques a Gaza e à Cisjordânia. A Turquia, apesar da retórica contraditória de sua diplomacia, permite o escoamento de petróleo para Israel através do Azerbaijão e colabora com o treinamento de pilotos israelenses – demonstrando que o pragmatismo econômico continua a ditar sua política externa.

Nesse contexto, torna-se ainda mais gritante o silêncio – ou a ambiguidade – das potências tidas como “contra-hegemônicas” na mundialização do conflito. A Rússia, embora critique pontualmente a escalada sionista, mantém relações diplomáticas e comerciais com Tel Aviv. Já a China, amplamente vista como principal alternativa ao bloco ocidental, age com profunda cautela – para não dizer cumplicidade. Em nome da “estabilidade regional” e de seus interesses econômicos, Pequim mantém intactos seus acordos com Israel, inclusive nas áreas de inovação tecnológica e segurança, ignorando o genocídio palestino e os bombardeios a Teerã.

O Vietnã, por sua vez, aprofundou relações com Israel em pleno massacre – assinando acordos agrícolas milionários que contribuem materialmente para o financiamento da guerra. Tal postura demonstra que a multipolaridade proposta pelo bloco emergente não rompe com a lógica imperialista – apenas redistribui o poder entre frações distintas da burguesia global. A guerra em curso revela, portanto, os limites históricos desse projeto.

A chamada “comunidade internacional” se mostra paralisada, impotente ou deliberadamente omissa. A ausência de ruptura com Israel, a manutenção dos fluxos comerciais e os apelos genéricos por “cessar-fogo” revelam um quadro de normalização da barbárie, no qual se insere o Brasil.

A projeção contemporânea de uma chamada “ordem multipolar” tem se apresentado como pretensa alternativa ao esgotamento do unipolarismo norte-americano e da velha arquitetura geopolítica pós-Guerra Fria. Contudo, essa nova roupagem do capitalismo global não representa ruptura com a lógica imperialista, mas antes sua continuidade sob novas bandeiras, disfarçada em discursos de soberania, desenvolvimento e cooperação sul-sul.

O que se apresenta como “diversificação de polos de poder” na verdade configura-se como uma reorganização das formas de dominação capitalista global, onde potências emergentes — como China, Rússia, Índia, entre outras — reproduzem e aprofundam os mecanismos de exploração do trabalho e da pilhagem de recursos nos marcos do imperialismo contemporâneo. Trocar Washington por Pequim não altera a substância da dominação — apenas redistribui as posições no tabuleiro.

A legitimação dessa nova ordem é construída sobre os escombros da luta de classes. Em vez de romper com a ordem capitalista internacional, os blocos multipolares buscam estabilizá-la, adaptando-a aos seus próprios interesses monopolistas. A retórica de valores tradicionais, soberania e cooperação esconde os acordos de saque entre burguesias, a repressão às greves operárias, a precarização do trabalho e a intensificação da superexploração nos países periféricos e semiperiféricos – tendo a guerra como seu trunfo.

A pulverização dos blocos não significa a democratização do poder internacional, tampouco fortalece a luta dos povos. Pelo contrário: fragmenta a resistência de classe, dilui o internacionalismo proletário e pavimenta o caminho para as guerras imperialistas. Nos conflitos em curso, cada bloco busca instrumentalizar as lutas populares conforme seus interesses estratégicos, disputando rotas comerciais, reservas energéticas e zonas de influência — os mortos continuam sendo os trabalhadores.

Assim, é necessário afirmar com clareza que a multipolaridade não é bandeira dos comunistas. Ela constitui a aparência modernizada do mesmo imperialismo que sustenta o sistema capitalista global. Qualquer conciliação com essa estrutura leva, inevitavelmente, à desmobilização popular e à manutenção da ordem burguesa.

As ilusões do multilateralismo ruíram sob os escombros de Gaza, Teerã e Beirute. A única alternativa real à opressão dos povos e à guerra é a construção de um bloco revolucionário independente — enraizado na organização da classe trabalhadora internacional, na solidariedade entre os povos e na luta pelo socialismo-comunismo.