A dois meses da COP 30 Lula prepara leilão de três hidrovias

As principais hidrovias do Arco Norte, rota estratégica do agronegócio, estão na mira da privatização. Enquanto o governo as apresenta como alternativa “sustentável”, sua implementação ameaça a vida das populações ribeirinhas.

8 de Setembro de 2025 às 21h00

Comboio de 30 barcaças navega o rio Madeira, em Porto Velho. Reprodução/Foto: Tr3s marketing.

Por Kauana Niz

Em 29 de agosto de 2025, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 12.600, assinado pelo presidente Lula (PT) no dia anterior, que abre caminho para futuros leilões das hidrovias dos rios Madeira, Tocantins e Tapajós. Esses projetos integram o Programa Nacional de Desestatização (PND) e vêm sendo planejados pelo governo federal desde o início do mandato. Os responsáveis pelos estudos técnicos e pelo planejamento das concessões são o Ministério dos Portos e Aeroportos e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Esses portos integram o Projeto Arco Norte, concebido em 2016 e impulsionado durante o governo Bolsonaro. A rota é formada por terminais estratégicos em Porto Velho (RO), Miritituba (PA), Santarém (PA), Itacoatiara (AM), Manaus (AM) e Itaqui (MA), alguns deles em obras de expansão e dragagem de rios. O corredor logístico conecta as regiões da AMACRO (AM, RO e AC) ao Matopiba (PI, BA, TO e MA), passando pelo Pará – estados que se consolidaram como polos do agronegócio e que, segundo dados da CPT de 2023 e 2024, registram os maiores índices de conflitos e mortes no campo.

Além disso, os portos do Arco Norte ocupam posição central no novo Plano de Rotas de Integração Sul-Americana, lançado pelo governo esse ano, voltado especialmente ao escoamento de commodities agrícolas e minerais para o Pacífico, em articulação com projetos ferroviários, rodoviários e hidrelétricos.

O projeto de concessão das hidrovias ocorre em paralelo à aprovação do PL da devastação e a  implementação da Licença Ambiental Especial (LAE), regulamentada por medida provisória, que permite acelerar o licenciamento de empreendimentos estratégicos, como extração de petróleo e grandes obras de infraestrutura, muitas vezes sem a realização completa de todas as etapas ambientais. Com esse novo marco, ficam asseguradas intervenções como dragagens de rios, construção de portos, hidrelétricas, ferrovias e rodovias, todas são demandas no âmbito do Arco Norte e do novo projeto de Rotas de Integração Sul-Americana do governo Lula.

A concessão das hidrovias segue a recomendação aprovada em 20 de maio de 2025 pelo Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que indicou a inclusão de hidrovias amazônicas no PND. Até o momento, o processo mais avançado é o da Hidrovia do Rio Madeira, que atravessa 11 municípios. O edital, inicialmente previsto para 2025, foi adiado para o primeiro semestre de 2026.

Já o processo da privatização da hidrovia do Rio Tocantins envolve polêmicas, devido à necessidade de dragagem do Rio e remoção do Pedral do Lourenço. Após o IBAMA conceder a licença para a dragagem em maio de 2025, o Ministério Público Federal solicitou à Justiça Federal a suspensão da obra, alegando riscos ambientais e impactos às comunidades de pescadores. Segundo o governo Federal, a  dragagem e o derrocamento do Pedral do Lourenço poderiam permitir o transporte de mais de 20 milhões de toneladas de grãos por ano - cerca de 500 mil caminhões - reduzindo custos logísticos em até 30% e beneficiando especialmente a região agrícola do MATOPIBA (MA, TO, PI e BA).

Os percursos das hidrovias contempladas segundo o decreto são:

Art. 1º Ficam incluídos no Programa Nacional de Desestatização – PND os seguintes empreendimentos públicos federais do setor hidroviário:
I - Hidrovia do Rio Madeira, considerada a navegação do Município de Porto     Velho, Estado de Rondônia, até a foz com o Rio Amazonas, no Município de     Itacoatiara, Estado do Amazonas, em um trecho de aproximadamente mil e             setenta e cinco quilômetros;
II - Hidrovia do Rio Tocantins, considerada a navegação entre o Município de    Belém, Estado do Pará, e o Município de Peixe, Estado do Tocantins, em um          trecho de aproximadamente mil setecentos e trinta e um quilômetros; e
III - Hidrovia do Rio Tapajós, considerada a navegação entre o Município de      Itaituba, Estado do Pará, até sua a foz com rio Amazonas, no Município de   Santarém, Estado do Pará, em um trecho de aproximadamente duzentos e       cinquenta quilômetros.

Comboio de 35 barcaças destinadas ao transporte de soja no trecho Itaituba - Barcarena (PA). Reprodução/Foto: Portos e Navios.

Comboios hidroviários com até 35 barcaças acopladas, carregadas de soja com capacidade total de até 75 mil toneladas, já circulam pelos rios Madeira, Amazonas e Tapajós. Essas composições podem atingir aproximadamente 343 metros de comprimento por 75 metros de largura, elas transportam soja que é posteriormente embarcada para o oceano Atlântico, assim, cerca de 70% é destinada à exportação para a China como produto primário.

Projeções da Esalq-LOG indicam que a região abrangida pelo Arco Norte poderá exportar mais de 80 milhões de toneladas de grãos nos próximos anos, já as estimativas do setor privado projetam que pode chegar a 100 milhões de toneladas anuais até 2030.

Não bastasse a privatização de rodovias – estimada em 15 concessões até o fim deste ano –, Lula já havia, nos primeiros dois anos de seu terceiro mandato, superado o número de rodovias privatizadas por Bolsonaro em seus 4 anos de governo. Todo esse processo ocorre por meio de leilões, sem qualquer consulta às comunidades diretamente afetadas.

Agora, a mesma lógica avança também sobre as hidrovias, ampliando a predominância de portos privados frente ao número reduzido de portos públicos na Amazônia e impondo altos custos de transporte para os moradores locais.

A redação do jornal O Futuro tem destacado que os projetos do Arco Norte avançaram com ainda mais força no governo Lula em comparação com o governo Bolsonaro, tornando realidade o sonho de expansão do agronegócio. Idealizado há anos pelos interesses da burguesia, o plano não se consolidou plenamente no governo anterior, mas agora ganha novo fôlego com investimentos em ferrovias, rodovias, hidrelétricas e portos, principalmente na Amazônia.

Essas obras incluem a duplicação de estradas, a construção de novos portos e ferrovias e a utilização crescente de comboios de barcaças.


Leia mais: Comboios e destruição na nova rota da soja


Nos Portos há o fluxo diário de milhares de caminhões para as Estações de Transbordo de Carga (ETCs) como acontece em Santarém e Mirituba (PA) que trouxe aumento de acidentes, poeira, problemas respiratórios e barulho constante para os moradores, além da  morte em massa de peixes e a contaminação dos que restam por produtos químicos. Embora os portos pudessem atender às populações ribeirinhas, sua função principal tem sido o escoamento da soja. Segundo a Amport, os principais terminais do Tapajós – controlados por Cargill (Santarém), Unitapajós (Bunge e Amaggi, em Miritituba), Hidrovias do Brasil S.A. e Cianport – movimentaram cerca de 8 milhões de toneladas de soja e milho em 2019 e 12,9 milhões em 2022. Esse avanço vem acompanhado de crescimento desordenado, aumento do custo de vida e maior violência nas regiões impactadas.

O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, afirma que o país vive “uma nova fase da indústria naval”, com oportunidades de inovação e escoamento mais eficiente da produção de grãos,  alinhado à agenda ambiental do governo. O transporte hidroviário é destacado por reduzir emissões de carbono por tonelada transportada, contribuindo para a “descarbonização” da logística, um importante “avanço” frente a Conferência das Partes (COP) que terá sua trigésima edição em Novembro em Belém do Pará. Em julho, o ministro destacou que as concessões das hidrovias do Madeira e Tocantins podem reduzir até 40% dos custos logísticos, substituindo 500 caminhões por 25 barcaças. Apesar desses discursos, os projetos logísticos priorizam os interesses do agronegócio, principal responsável pelo CO₂ e pela degradação ambiental.

Embora o transporte hidroviário seja defendido como mais eficiente e até ecológico por emitir menos CO₂, ele provoca sérios impactos sociais e ambientais: desmatamento, deslocamento de comunidades, violência e doenças, demonstrando que essa suposta defesa ecológica não é mais do que a tentativa de pintar de verde a destruição feita pelo Agronegócio. A lógica central para o desenvolvimento dessa infraestrutura logística é a do lucro e da expansão da exportação, aumentando monoculturas e a destruição florestal.

Mas isso não é uma contradição diante da COP 30? De maneira nenhuma. Esse evento também expressa os interesses do agronegócio: na 29ª edição, a delegação brasileira contou com representantes da Cargill, Bayer, JBS e outras grandes empresas do setor. Além disso, é público o vínculo estreito dessas conferências com magnatas e países do capital fóssil.

A COP funciona como uma salvaguarda do capitalismo: garantir a continuidade da acumulação de lucros sob o rótulo de “sustentável”. O agronegócio, revestido de uma plumagem verde, seria apresentado como capaz de frear a crise climática. No entanto, essas iniciativas “sustentáveis” apenas reforçam o mesmo modelo de exploração e destruição fazendo com que as populações desses territórios e a classe trabalhadora em geral sofram com a crise climática.

Entre as iniciativas atuais de privatização do governo Lula, estão as 15 rodovias previstas para privatização até o fim do ano, das quais quatro já foram concluídas integralmente e outras aguardam data para leilão, segundo levantamentos da Redação. No setor ferroviário, os planos também são ambiciosos: a Ferrogrão, por exemplo, se concluída, poderá escoar até 58 milhões de toneladas de grãos, quase três vezes mais que a BR-163, cuja capacidade gira em torno de 20 milhões de toneladas.

A própria burguesia admite que poderia aumentar a produção caso as limitações logísticas fossem superadas. Apoiar esse projeto, no entanto, significa sustentar um modelo econômico marcado por graves consequências: destruição ambiental, violência e perseguição contra aqueles que resistem a ele.


Leia mais: Do Pará à China pelos trilhos da Ferrogrão