Do Pará à China pelos trilhos da Ferrogrão
O papel estratégico da ferrovia na integração bioceânica e na expansão da fronteira agroexportadora e mineral.

Reprodução/Foto: Ecoa.
Por Mattheus Leal
A Ferrogrão (EF-170) é um projeto de ferrovia de aproximadamente 933 km que pretende ligar Sinop (MT), um dos maiores polos produtores de grãos do país, a Miritituba (PA), no chamado Arco Norte – conjunto de portos e rotas logísticas localizados na região Norte do Brasil, especialmente no Pará, Amazonas e Maranhão, que têm se consolidado como alternativa aos portos tradicionais do Sul e Sudeste (como Santos/SP e Paranaguá/PR).
O objetivo central é criar um corredor logístico ferroviário para escoar principalmente soja e milho do Centro-Oeste até os portos paraenses, reduzindo a dependência das rotas do Sul e Sudeste, mas que futuramente pode se ligar ao projeto de ferrovias ao Pacífico passando por Rondônia e Acre. Apresentada como solução para baratear em até 40% os custos de transporte e aumentar a competitividade das exportações brasileiras, a ferrovia também é tratada pelo governo como estratégica para reorganizar o sistema logístico nacional. No entanto, o traçado da obra cruza áreas ambientalmente sensíveis, como o Parque Nacional do Jamanxim, e incide sobre terras indígenas e unidades de conservação, o que gera intenso debate social e jurídico e levou o projeto a ser contestado no Supremo Tribunal Federal.
A ferrovia é apresentada pelo governo brasileiro e por setores ligados ao agronegócio como a solução logística que reduzirá custos e impulsionará a competitividade das exportações. Com quase 1.000 km de extensão, ela ligará Sinop, no Mato Grosso, a Miritituba, no Pará, acompanhando o traçado da BR-163, hoje principal rota de escoamento de soja e milho para os portos do Arco Norte. A promessa é clara: frete até 40% mais barato, descongestionamento dos portos do Sul e Sudeste e maior eficiência no transporte. Mas por trás desse discurso de modernização esconde-se um projeto que sintetiza as contradições do modelo de desenvolvimento brasileiro: expansão da fronteira agroexportadora sobre a Amazônia, aprofundamento da dependência externa e violação de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais.
O contexto internacional revela ainda mais o peso da iniciativa. A entrada da China no financiamento e planejamento da Ferrogrão e de outros corredores ferroviários (FIOL, FICO, Norte-Sul) demonstra que não se trata apenas de uma obra nacional, mas de um elo dentro de uma rede bioceânica. A estratégia chinesa, alinhada à sua Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), busca garantir corredores logísticos que conectem o interior do Brasil ao Porto de Chancay, no Peru, já controlado por empresas chinesas. Essa ligação direta entre Atlântico e Pacífico reduziria em até dez dias o tempo de transporte até a Ásia, fortalecendo a segurança alimentar da China (soja, milho, carne) e garantindo acesso ao minério de ferro, insumo vital para sua siderurgia.

Imagem: MAPA – Rotas de Integração do Centro Oeste aos Mercados.
Nesse tabuleiro, o Pará assume papel estratégico. O estado já se consolidou como corredor de exportação tanto de grãos quanto de minerais, com portos em Miritituba, Barcarena, Santarém e Vila do Conde. Além de ser a “porta de saída” da produção agrícola do Mato Grosso, o Pará concentra as maiores jazidas de minério de ferro do país, em Carajás, cuja exploração é dominada pela Vale. A Ferrogrão, embora oficialmente apresentada como “ferrovia da soja”, também cria condições para ampliar o escoamento mineral, conectando o interior amazônico a rotas internacionais controladas pela China. A ferrovia consolida o Pará como nó logístico global, ao mesmo tempo em que o subordina ainda mais à lógica primário-exportadora.
Mas os impactos sociais e ambientais são alarmantes. O traçado da ferrovia atravessa áreas sensíveis da Amazônia, incluindo o Parque Nacional do Jamanxim e ao menos 19 terras indígenas, como apontam estudos do Ministério Público Federal e do Mapa de Conflitos da Fiocruz. Estima-se que 48 áreas protegidas sejam atingidas direta ou indiretamente, seja pela fragmentação de habitats, seja pelo estímulo a novos desmatamentos. A experiência da BR-163 já mostra como a abertura de corredores logísticos atrai grilagem, especulação fundiária e violência contra comunidades locais. Povos indígenas e ribeirinhos denunciam a falta de consulta prévia, livre e informada, como determina a Convenção 169 da OIT, e alertam que a ferrovia poderá agravar conflitos territoriais, expulsões e ameaças à sobrevivência física e cultural dessas populações.
O discurso oficial tenta enquadrar a Ferrogrão como obra “verde”, ressaltando que o transporte ferroviário emite menos carbono do que o rodoviário. No entanto, essa leitura ignora os efeitos indiretos: ao baratear e acelerar o transporte, a ferrovia estimula a expansão da fronteira agrícola e mineral, ampliando o desmatamento e a pressão sobre a floresta. Trata-se de uma modernização conservadora: o modal logístico é atualizado, mas a lógica permanece a mesma — extrair commodities em grande escala, exportá-las in natura e concentrar os benefícios em grandes corporações (tradings agrícolas como ADM, Bunge, Cargill, Amaggi e Louis Dreyfus; mineradoras como a Vale), enquanto os custos sociais e ambientais recaem sobre a Amazônia e seus povos.
A Ferrogrão deve ser lida não apenas como infraestrutura de transporte, mas como um projeto geopolítico. Ela conecta o agronegócio do Mato Grosso, a mineração do Pará e o consumo chinês em um único corredor bioceânico, inserindo a Amazônia em uma cadeia global controlada por interesses externos. Para o Brasil, o risco é cristalizar a dependência de commodities e a submissão da política de infraestrutura à lógica de grandes investidores estrangeiros. Para o Pará, a ameaça é dupla: tornar-se ao mesmo tempo corredor e fronteira de exploração, sacrificando territórios, florestas e modos de vida em nome de um progresso que beneficia poucos. Para os povos indígenas e comunidades ribeirinhas, trata-se de uma nova onda de invasão e despojo, repetindo velhos ciclos de violência em nome da integração nacional.
Além dos impactos sociais, a degradação ambiental associada à Ferrogrão é de proporções alarmantes. O traçado da ferrovia atravessa áreas de alta sensibilidade ecológica, como o Parque Nacional do Jamanxim, mosaicos de florestas primárias e bacias hidrográficas vitais para a manutenção dos ciclos hídricos da Amazônia. A abertura da ferrovia, ainda que apresentada como um modal de “baixo carbono”, implicará na supressão direta de vegetação, fragmentação de habitats e interrupção de corredores ecológicos essenciais à fauna. Estudos e pareceres técnicos de órgãos ambientais apontam que a ferrovia funcionará como um vetor de degradação indireta, pois, ao reduzir custos logísticos do agronegócio, estimulará o avanço da fronteira agrícola e intensificará o desmatamento em seu entorno imediato e em áreas adjacentes. Trata-se de um efeito cascata: a ferrovia não apenas corta a floresta, mas reorganiza territorialmente a pressão econômica sobre a região.
Outro aspecto é o efeito cumulativo da Ferrogrão quando somada a outros grandes empreendimentos na Amazônia. A região do Tapajós já está marcada por planos de hidrelétricas, hidrovias e concessões rodoviárias, compondo um verdadeiro mosaico de pressão sobre a floresta. A ferrovia, ao se integrar a essa rede, ameaça acelerar o chamado “ponto de não retorno” ambiental da Amazônia, em que o bioma perde sua capacidade de regeneração e passa a sofrer savanização. A degradação do entorno inclui ainda riscos de contaminação dos rios por obras de terraplanagem e cruzamento de eixos ferroviários, alteração dos regimes de chuva locais e perda irreversível de biodiversidade. Assim, longe de ser um projeto “sustentável”, a Ferrogrão representa uma ameaça estrutural à integridade ecológica da Amazônia, mascarada sob o discurso de eficiência logística.
A Ferrogrão é apresentada como promessa de desenvolvimento, mas se revela como um projeto de expansão do agronegócio e da mineração às custas da Amazônia. Sob a fachada de modernização logística, reforça-se a velha matriz primário-exportadora, aprofunda-se a influência chinesa sobre corredores estratégicos e sacrificam-se populações e ecossistemas. O Pará, ao mesmo tempo “protagonista” e vítima, torna-se o espelho das contradições do Brasil: entre integração e subordinação, entre eficiência econômica e devastação socioambiental.
A contradição se aprofunda quando se observa que o mesmo Pará que sedia a COP-30, anunciada como a “COP da Floresta”, é também o epicentro de projetos como a Ferrogrão, que ameaçam povos tradicionais e aceleram a devastação ambiental. O governo estadual, sob o comando da família Barbalho, e o governo federal, ao mesmo tempo em que projetam para a comunidade internacional uma imagem de liderança climática, mantêm a lógica de financiar e viabilizar grandes obras de infraestrutura a serviço do agronegócio, da mineração e de interesses estrangeiros, em especial da China. A conferência climática, nesse sentido, funciona como uma vitrine internacional de “sustentabilidade”, enquanto na prática legítima políticas que intensificam a pressão sobre territórios indígenas e ecossistemas amazônicos.
A COP-30 e a Ferrogrão não estão em campos opostos, mas sim integradas na mesma narrativa de um capitalismo verde que promete modernização ecológica enquanto perpetua a exploração da Amazônia. Em Belém, as obras bilionárias associadas à conferência já provocam gentrificação, remoção de comunidades ribeirinhas e degradação ambiental, reforçando o padrão de racismo ambiental que marca a história do estado. No campo logístico, a ferrovia é alçada a símbolo de “infraestrutura sustentável”, ainda que seus efeitos diretos e indiretos ameacem empurrar o bioma amazônico para o ponto de não retorno. Assim, o Pará torna-se o palco perfeito para escancarar a contradição entre o discurso oficial de liderança climática e a realidade de um projeto de desenvolvimento que transforma a floresta em mercadoria global.