Comboios e destruição na nova Rota da Soja

Expansão do escoamento fluvial no Arco Norte para commodities é apresentada como solução verde, mas aprofunda desigualdades e pressiona territórios tradicionais.

6 de Junho de 2025 às 21h00

Comboio de 35 barcaças destinadas ao transporte de soja no trecho Itaituba - Barcarena (PA). Reprodução/Foto: Portos e Navios.

Em março deste ano, o G1 comemorou um fato “inédito”, o transporte de um comboio de 35 barcaças carregadas de soja que saiu de Porto Velho (RO) e seguiu até Santarém (PA). Mas isso não é novidade no Rio Madeira, que já conta com um porto inserido no chamado Arco Norte ou Portos do Arco Amazônico. Em outra matéria do BNC Amazonas, de pouco mais de um ano, também comemorava-se um feito supostamente inédito de mais de 60 mil toneladas de soja em um único comboio de 30 barcaças.

A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) divulgou que esse tipo de operação poderá ser um marco na redução de emissão de CO₂. Entretanto, esse que parece ser um fenômeno merecedor das comemorações, é apenas a intensificação de um processo de expansão do agronegócio e aceleração de concentração fundiária, capital e poder político, esmagamento de populações originárias e ribeirinhas, aprofundamento do modelo primário exportador brasileiro e degradação ambiental que mais cedo do que se imagina atingirá um ponto sem retorno. 

Nos últimos anos, a região amazônica tem se consolidado como uma das principais rotas de escoamento de grãos no Brasil, especialmente por meio do Arco Norte, que já rivaliza com as rotas tradicionais do Sul e Sudeste em volume de exportações do Centro-Oeste. Os transportes são realizados há muito tempo por rodovias, e nos últimos anos os Portos foram se expandindo.

Comboios formados por embarcações com até 35 barcaças acopladas, carregadas de soja e com capacidade total de até 75 mil toneladas, navegam pelos rios das bacias do Amazonas e do Tapajós. As composições impressionam pelo porte, chegando a medir aproximadamente 343 metros de comprimento por 75 metros de largura.

Os portos que compõem a região são Itacoatiara e Manaus (AM), Porto Velho (RO), Santarém, Miritituba e Belém (PA) e Itaqui (MA), além de portos privados do Sul do Amazonas. Deles, a soja é carregada em navios para seguir viagem pelo oceano Atlântico. Cerca de 70% desta soja é exportada para a China como produto primário.

Transporte por comboios hidroviários foi comemorado como uma operação de magnitude nunca experimentada antes pela mídia, porém, outras embarcações do mesmo tipo já vinham sendo usadas em outras partes da Região Norte. Há pouco mais de dois anos a empresa privada, Hidrovias do Brasil, postou em seu perfil no Youtube, um vídeo comemorando o primeiro comboio de 35 barcaças cheias de soja.

Para garantir que essas operações continuem, foi aprovado pelo Ministério de Portos e Aeroportos um projeto financiado pelo Fundo da Marinha Mercante (FMM) de aproximadamente R$180 milhões para a modernização da infraestrutura portuária na região. A empresa Cidade Transportes também receberá quase R$160 milhões para construir 30 balsas graneleiras.

O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, disse que o país está vivendo “uma nova fase de retomada da indústria naval”, e que será uma grande oportunidade para inovação no setor, e para escoar a produção de grãos com mais eficiência e alinhada com a agenda ambiental do governo Lula.

Um ponto enfatizado tanto pelo ministro quanto por empresas privadas e veículos de comunicação é o caráter ecológico do transporte hidroviário. Esse modal é considerado estratégico para a redução das emissões de carbono por tonelada transportada, contribuindo diretamente para a “descarbonização” da logística nacional.

Empresas como Amaggi, Cargill, entre outras multinacionais que operam no Brasil, mostram-se preocupadas com a preservação da Amazônia e, supostamente, não compram grãos produzidos em áreas de desmatamento.

É imprescindível evidenciar a ironia existente nessa afirmação, uma vez que, de acordo com o Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Probes), do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), no município de Itaituba, umas das principais cidades da região, teve entre agosto de 2023 e julho de 2024, uma taxa de desmatamento 25% maior que a registrada no período anterior. Nos municípios produtores de Soja – Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos – os dados de 2008 a 2022 demonstram que a situação é ainda mais surpreendente. Em Santarém, houve um aumento de 172% na taxa anual de desmatamento, um salto de 600 para 1,6 mil hectares; em Belterra, o aumento foi de 613%, de 70 para 1,6 mil hectares em 2021; mas o mais impressionante foi em Mojuí dos Campos com uma taxa anual de desmatamento que saiu de 400 hectares para 6,1 mil hectares em 2021, um aumento de 1443%.

Para compactuar com esse processo intenso de desmatamento, a Cargill – multinacional norte-americana, maior empresa do ramo no mundo e maior produtora de soja em território brasileiro – sinalizou em seu último relatório de sustentabilidade que vem deixando de seguir as regras previstas na Moratória da Soja (política que impede a indústria de comprar grãos produzidos em área desmatada a partir de 2008). Passou, então, a considerar o ano de 2020 como referência para compra de grãos. Assim, ao mesmo tempo que ampliou sua compra de grãos, também divulgou que 99,4% dessas compras são oriundas de plantações em áreas “não desmatadas”.

Isso mostra que a empresa não segue nenhum princípio, e aponta que, uma empresa do tamanho da Cargill, agir livremente sem que o estado brasileiro cobre que as medidas sejam cumpridas, sinaliza para outras empresas que podem fazer o mesmo.

O governo adota uma política de apoio total e fomento das ações tomadas pelo agronegócio, isso fica evidente nas palavras do ministro Costa Filho, “tudo para potencializar a exportação do agro Brasileiro”. Em novembro, O Brasil sediará a COP30, porém, os cientistas Philip Fearnide do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e Walter Leal Filho, da Universidade de Ciências Aplicadas de Hamburgo, disseram em entrevista para a BBC News em março, que “como anfitrião, o Brasil não está liderando pelo exemplo”. Além disso, os pesquisadores alertam para cenários irreversíveis de degradação ambiental se as políticas de exploração não mudarem urgentemente.

Dentre as cidades onde o agronegócio opera com mais violência, Itaituba é uma das mais atingidas. Não tem grandes plantações de soja, mas sim instalações (pátios, silos e portos) que movimentam até 18 milhões de toneladas de grãos por ano. Moradores de Miritituba , distrito de Itaituba (PA), que é ponto estratégico na rota da soja que sai do Mato Grosso, relatam que a chegada do agronegócio trouxe, além do desmatamento para construir essas grandes estruturas, trouxe também milhares de caminhões todos os dias para descarregar a mercadoria nas Estações de Transbordo de Carga (ETCs) e isso vem acarretando o aumento dos acidentes, muita poeira e problemas respiratórios e um barulho incessante. Também relatam que os animais, principalmente botos, sumiram desta parte do rio, peixes morrem aos milhares e os que são pescados para o consumo têm gosto de produtos químicos.

Centenas de caminhões estacionados aguardando para descarregar em Mirituba (Pará). Reprodução/Foto: Notícias Agrícolas.

Os portos que deveriam facilitar o transporte da população ribeirinha e alimentos internos para a população, são destinados majoritariamente ao transporte da soja. A Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de Cargas da Bacia Amazônia (Amport) informa que os principais portos da bacia do Tapajós são dirigidos pelas empresas Cargill (Santarém), Unitapajós, que é a união entre Bunge e Amaggi (Miritituba), e Hidrovias do Brasil S.A., além da Companhia Norte de Navegação e Portos (Cianport). Estima-se que essas empresas movimentaram aproximadamente 8 milhões de toneladas de soja e milho em 2019. Em 2022 foram 12,9 milhões de toneladas. Isso tudo vem acompanhado pelo crescimento desordenado, que também se torna responsável pelo aumento no valor dos aluguéis, e no aumento da violência. Em Itaituba, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 demonstrou que o município ficou em quarto lugar entre as maiores taxas de estupro de vulnerável e, em 2023, apareceu em 15º na lista das cinquenta cidades mais violentas do Brasil.

Além de tudo isso, não podemos deixar de mencionar o papel que a integridade do Arco Norte, junto às rodovias e as ferrovias ocupam neste processo. O Arco Norte é um mega projeto de integração logística que abrange partes das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, e também os Portos dessa região, que agora integram as Rotas de Integração Sul-americana no novo projeto do governo Lula. Outra parte desta infraestrutura para o escoamento de grãos é a Ferrogrão: quase mil quilômetros de ferrovia entre Sinop (MT) e Miritituba (PA); e as rodovias estratégicas: BR-163, BR-364, e BR-319.


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O Brasil tem investido na expansão de sua infraestrutura logística para o escoamento de grãos, com destaque para a ampliação de rodovias, ferrovias e hidrovias. Essas obras incluem a duplicação de estradas, a construção de novos portos e ferrovias e a utilização crescente de comboios de barcaças, especialmente na região amazônica. No entanto, esse avanço vem acompanhado de impactos sociais e ambientais significativos.

Diversas obras de infraestrutura atravessam territórios indígenas, comunidades tradicionais e áreas de floresta nativa, resultando em desmatamento, deslocamento de populações, aumento da violência e disseminação de doenças. Embora o transporte hidroviário seja frequentemente apontado por autoridades e representantes do setor como uma alternativa mais ecológica, por emitir menos carbono por tonelada transportada, especialistas e organizações sociais alertam que a lógica por trás dessas iniciativas está centrada na eficiência logística e na aceleração das exportações, em uma lógica de lucro que aumentará ainda mais o plantio de monoculturas e consequentemente o desmatamento.

Ao mesmo tempo, em que o governo federal afirma estar comprometido com a preservação ambiental e com a proteção de comunidades vulneráveis, há críticas ao apoio financeiro e político concedido ao agronegócio, responsável pela degradação da região e o maior emissor de carbono. O governo tem defendido e executado a infraestrutura logística pensada pelo agronegócio e tem demonstrado quais são suas prioridades políticas.