Congresso derruba vetos e ressuscita PL da Devastação, maior retrocesso ambiental em mais de 40 anos

Derrubada dos vetos aprofunda insegurança jurídica, ameaça territórios e acelera a devastação ambiental.

20 de Dezembro de 2025 às 0h00

Reprodução/Foto: Brasil de Fato.

No dia 27 de novembro, apesar da mobilização popular contrária, o Congresso Nacional derrubou 56 dos 63 vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à nova Lei do Licenciamento Ambiental (Lei nº 15.190/2025). A decisão, tomada em sessão conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, recoloca em vigor dispositivos que desmontam o sistema de licenciamento ambiental no Brasil e consolida o que ambientalistas classificam como o maior retrocesso ambiental das últimas quatro décadas.

Aprovado pela Câmara em julho, o texto ficou conhecido como “PL da Devastação” ou “a mãe de todas as boiadas”, em referência às profundas flexibilizações impostas às normas de proteção ambiental. Embora Lula tenha vetado trechos considerados mais graves em agosto, o Congresso optou por restaurar quase integralmente a versão original do projeto, esvaziando o papel técnico dos órgãos ambientais e transformando o licenciamento convencional, baseado em estudos prévios de impacto, em exceção.

A derrubada dos vetos representa uma derrota significativa para o Palácio do Planalto, ocorrida poucos dias após o encerramento da COP30, realizada em Belém (PA), onde o governo brasileiro buscou se apresentar como liderança global na agenda climática.  Ainda assim, o episódio expõe uma contradição central da política ambiental do próprio governo Lula: ao mesmo tempo em que sustenta um discurso de protagonismo climático no cenário internacional, o Executivo passou meses incentivando a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, pressionando órgãos técnicos como o Ibama e tratando o licenciamento ambiental como obstáculo a projetos considerados estratégicos.

Embora a derrubada dos vetos tenha sido uma derrota pública, o PL do Licenciamento Ambiental também atende a interesses do governo, ao abrir caminho para acelerar grandes empreendimentos e reduzir resistências institucionais a obras e projetos alinhados à sua agenda de crescimento econômico.

Para organizações ambientalistas, o episódio reforça uma dinâmica recorrente de chantagem política do Legislativo, em que pautas ambientais são sacrificadas em nome de interesses econômicos imediatos. “O Congresso acabou de enterrar o licenciamento ambiental ao derrubar os vetos do Poder Executivo”, criticou Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.

Com a restauração dos vetos derrubados, a nova lei promove:

  • Autolicenciamento como regra: a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), obtida por simples autodeclaração via formulário eletrônico, passa a valer não apenas para empreendimentos de pequeno porte, mas também para os de médio potencial poluidor.
  • Dispensa prévia de licenças: pelo menos 13 atividades econômicas, incluindo agricultura, pecuária e obras de saneamento, ficam isentas de licenciamento ambiental.
  • Ameaça à Mata Atlântica: municípios poderão autorizar desmatamentos sem análise técnica prévia de órgãos ambientais estaduais ou federais, mesmo sem estrutura institucional adequada.
  • Territórios invisibilizados: Terras Indígenas e territórios quilombolas ainda não regularizados deixam de ser considerados no licenciamento. Estima-se que mais de 80% dos territórios quilombolas em processo de titulação e cerca de 32% das Terras Indígenas em reconhecimento sejam desconsiderados.
  • Fim das condicionantes ambientais: empreendimentos privados poderão ser isentados de obrigações de prevenção, mitigação ou reparação de impactos socioambientais, transferindo os custos para o poder público e a população.

Segundo o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Rodrigo Agostinho, a nova lei abre caminho para uma verdadeira “guerra de flexibilizações” entre estados e municípios. “Um governador pode dizer: ‘venha para cá, que aqui te dou a licença no mesmo dia’. Isso incentiva a migração de atividades econômicas para onde a legislação for mais frágil”, alertou.

Agostinho também rebate o argumento de que a flexibilização acelera obras estratégicas. “Não se agiliza licenciamento ambiental mexendo na regulação. O problema costuma ser a baixa qualidade técnica dos projetos e estudos apresentados”, afirmou.

O Supremo Tribunal Federal já possui decisões contrárias a dispositivos semelhantes adotados por alguns estados, como a LAC para empreendimentos de médio porte e a dispensa de licenças para atividades agropecuárias.

A votação dos sete vetos restantes, relacionados à criação da Licença Ambiental Especial (LAE), foi adiada após acordo entre governo e oposição. O tema será tratado por meio de uma Medida Provisória. A LAE permite acelerar o licenciamento de empreendimentos considerados “estratégicos”, abrindo margem para decisões políticas e aumento do risco de corrupção. A proposta é defendida pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), interessado na facilitação de projetos como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.

Afagos políticos, contradições climáticas e a consolidação da Lei da Devastação

Antes da derrubada dos vetos, o governo federal promoveu ajustes pontuais no texto do PL do Licenciamento Ambiental, apresentando-os como um esforço de contenção dos danos mais evidentes da proposta. No entanto, essas alterações ocorreram tardiamente e não apagam o fato de que o próprio Executivo permitiu o avanço do projeto no Congresso. Durante a tramitação do PL, o governo optou por não orientar sua base parlamentar a votar contra a proposta, liberando as bancadas e abrindo caminho para a aprovação de um texto amplamente criticado por especialistas e organizações socioambientais.

Entre os dispositivos vetados posteriormente estava a ampliação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor, um mecanismo de autolicenciamento baseado exclusivamente na autodeclaração do empreendedor. O veto restringia formalmente esse instrumento a atividades de pequeno impacto ambiental, mas sua derrubada restaurou integralmente a lógica do autolicenciamento em larga escala.

O presidente também havia vetado a dispensa de licenciamento ambiental para determinados tipos de obras de pavimentação, o que teria impacto direto sobre empreendimentos altamente sensíveis, como o asfaltamento da BR-319, na Amazônia. Com a derrubada dos vetos, esses dispositivos retornaram ao texto legal, ampliando os riscos de desmatamento.

Paralelamente, o governo realizou um movimento explícito de acomodação política ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ao encaminhar por Medida Provisória a criação da Licença Ambiental Especial (LAE). Idealizada por Alcolumbre, a LAE estabelece um licenciamento acelerado e concentrado para obras consideradas “estratégicas”, reforçando a subordinação dos critérios técnicos a decisões políticas. Apesar do discurso oficial de que as salvaguardas ambientais seriam mantidas, o próprio governo reconheceu a necessidade de negociar o conteúdo da MP com o Congresso, um espaço historicamente hostil à regulação ambiental.

Nesse processo, a Medida Provisória foi ainda mais flexibilizada. Em nota técnica divulgada em 9 de dezembro, o Observatório do Clima alertou que o texto aprovado ampliou dispensas de licenciamento, reduziu salvaguardas e consolidou a lógica de licenciamento por decisão política. Segundo a entidade, a MP reforça a expansão da LAC para atividades de risco e cria condições para viabilizar obras como a pavimentação da BR-319, por meio da classificação genérica de rodovias preexistentes como projetos “estratégicos de integração territorial”.

A BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), atravessa uma das regiões mais preservadas da Amazônia. Estudos científicos indicam que sua pavimentação pode desencadear um processo acelerado de desmatamento, como já ocorreu durante o governo Bolsonaro, quando o simples anúncio da obra foi suficiente para duplicar a derrubada da floresta em seu entorno.

Entidades como a Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA) afirmam que a nova legislação viola ao menos 13 dispositivos constitucionais, tornando praticamente inevitável sua judicialização no Supremo Tribunal Federal.

Mais do que uma derrota isolada, a consolidação da Lei do Licenciamento Ambiental após a derrubada dos vetos expressa a convergência entre interesses do Congresso e limites estruturais do próprio governo. O resultado é um marco legal que aprofunda a crise climática, institucionaliza o racismo ambiental e fragiliza, de forma inédita, a proteção dos bens comuns no Brasil, enquanto o discurso ambiental segue sendo mobilizado como vitrine internacional, dissociado das práticas efetivas no plano interno.

A contradição do discurso verde no capitalismo: não há salvação climática sem ruptura estrutural

O episódio da derrubada dos vetos expõe uma contradição central do debate ambiental contemporâneo: a tentativa de conciliar uma retórica climática progressista com a manutenção intacta de um modelo econômico baseado na expansão ilimitada, na mercantilização da natureza e na superexploração da força-de-trabalho no campo. Ao tratar o licenciamento ambiental como um “entrave” ao desenvolvimento, o Congresso reafirma a lógica segundo a qual rios, florestas, territórios e corpos são meros insumos para a acumulação de capital.

As tragédias socioambientais recentes demonstram que os problemas do licenciamento não decorrem de excesso de rigor, mas da fragilidade histórica da fiscalização, da captura dos órgãos ambientais por interesses privados e do enfraquecimento deliberado do controle social. Desmontar o licenciamento, longe de corrigir falhas, significa retirar uma das poucas barreiras institucionais existentes contra o avanço do colapso ecológico.

No Brasil, a crise ambiental está profundamente ligada à questão agrária e à estrutura de um capitalismo dependente, marcado pelo latifúndio, pelo agronegócio exportador e pela apropriação privada da terra. Esse modelo aprofunda desigualdades, concentra poder político e econômico e transforma a natureza em mercadoria, ampliando conflitos territoriais e a vulnerabilidade de povos indígenas, quilombolas, camponeses e populações periféricas, justamente aqueles que mais sofrem com a degradação do meio ambiente e suas consequências.

Nesse sentido, o chamado “PL da Devastação” não é um desvio pontual, mas parte de uma ofensiva estrutural sobre territórios e direitos coletivos. A agenda verde apresentada em fóruns internacionais convive internamente com a flexibilização de normas, o incentivo a grandes empreendimentos e a precarização dos órgãos ambientais, revelando os limites de um ambientalismo subordinado às exigências do capital.

A experiência recente deixa claro que não haverá enfrentamento efetivo da crise climática sem enfrentar as bases desse modelo de desenvolvimento. Soluções reais exigem que a questão seja resolvida no sentido dos interesses do proletariado, com o controle social da terra pela classe trabalhadora, possibilitando planejar a economia de forma a reorganizar a produção sem destruir a natureza, garantindo que o proletariado lidere as demais classes e os setores do campo no uso racional da relação entre o ser humano e a natureza. Enquanto a produção social seguir subordinada à lógica do lucro, o aprofundamento da crise climática se expressará como resultado do rompimento sociometabólico provocado pela dinâmica do capitalismo em sua fase imperialista, fazendo com que eventos climáticos extremos, a destruição de biomas e a violência territorial sejam tratados como danos colaterais aceitáveis. Esse processo se manifesta em mudanças abruptas na amplitude térmica, no regime de chuvas, na seca de rios, na elevação do nível dos mares e na extinção de espécies, impulsionadas pelo avanço do capital privado no campo — por meio da grilagem, do agronegócio, da mineração e de grandes barragens —, além da intensificação das violências, perseguições e do extermínio de comunidades.