Na calada da noite, Câmara aprova PL da Devastação e desmonta a política ambiental brasileira
Projeto que fragiliza o licenciamento ambiental é aprovado em meio a críticas e sem debate público, expondo as contradições do governo. A proposta segue para decisão final do presidente Lula.

Imagem do plenário da Câmara dos Deputados durante a aprovação do “PL da Devastação”. Reprodução: Clima Info.
Por Fernanda Beatriz
O Brasil vive um dos maiores desmontes de sua legislação ambiental com a aprovação, em 17 de julho de 2025, do Projeto de Lei 2.159/2021 — apelidado por movimentos socioambientais de “PL da Devastação”. Aprovado na Câmara dos Deputados por 267 votos favoráveis e 116 contrários, o projeto agora depende apenas da sanção presidencial. Mesmo diante da possibilidade de veto por parte do presidente Lula, a correlação de forças no Congresso indica que um eventual veto pode ser facilmente derrubado, agravando ainda mais o cenário de retrocessos.
A votação final ocorreu de forma simbólica do descaso institucional com a agenda ambiental: durante a madrugada, às 1h53, em um plenário esvaziado, com parlamentares participando de forma remota e sem qualquer debate significativo. Enquanto a maioria da população dormia, a base aliada do governo e setores do centrão impuseram uma reforma profunda e acelerada na legislação ambiental, sinalizando o desprezo do parlamento pelas questões climáticas e pelo direito coletivo a um ambiente equilibrado.
O Projeto de Lei foi aprovado inicialmente pela Câmara dos Deputados em 13 de maio de 2025, com 290 votos favoráveis e 115 contrários. Na ocasião, o presidente Lula optou pelo silêncio e não prestou apoio à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que se posicionou publicamente contra o texto. Em seguida, o projeto seguiu para o Senado Federal, onde foi aprovado em 23 de maio com a inclusão de emendas que tornaram a proposta ainda mais prejudicial ao meio ambiente novamente sem qualquer manifestação por parte do chefe do Executivo. Na terceira semana de junho, o PL retornou à Câmara para a votação final, que culminou na sua aprovação definitiva.
O Projeto de Lei 2.159/2021 percorreu um longo e conturbado caminho até sua aprovação. Foram quase 21 anos de tramitação no Congresso Nacional, marcados por arquivamentos, desarquivamentos e sucessivas alterações. Nesse período, o texto foi analisado por diferentes comissões e recebeu mais de uma centena de emendas, além de incorporar outros projetos de lei com conteúdos semelhantes, o que contribuiu para sua complexidade.
Na reta final, a tramitação foi acelerada sob liderança do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que tem interesse direto na flexibilização das regras para viabilizar projetos de exploração petrolífera na foz do Rio Amazonas, uma das regiões ecologicamente mais sensíveis do planeta. Apesar da orientação oficial do Partido dos Trabalhadores (PT) pela rejeição do texto, o governo federal optou por não mobilizar sua base, mantendo-se omisso mesmo diante da oposição técnica de especialistas, instituições científicas e movimentos da sociedade civil.
O sistema de licenciamento ambiental no Brasil tem sido progressivamente enfraquecido desde que entrou em vigor em 1986, e desde a adoção da atual Constituição, em 1988, que assegura o direito a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Os retrocessos previstos no atual projeto de lei são ainda mais severos do que os ataques anteriores à política ambiental, superando inclusive as investidas do governo Bolsonaro, reconhecidamente anti ambientalista.
O “PL da Devastação” é vendido como uma simplificação burocrática para projetos de “baixo impacto”, mas na prática ultrapassa essa proposta. A definição de projetos de “baixo” e “médio” impacto é vaga e permite que empreendimentos com efeitos ambientais significativos sejam enquadrados nessas categorias e, portanto, tenham tratamento simplificado.
O fim do licenciamento é o início do caos climático
O licenciamento ambiental é hoje a principal barreira de proteção contra obras e empreendimentos que causam impactos socioambientais irreversíveis. É esse instrumento que obriga os empreendedores a realizarem estudos técnicos, considerarem alternativas menos impactantes, ouvirem as populações afetadas e respeitarem os limites ecológicos dos territórios. Mais do que um trâmite burocrático, o licenciamento é, muitas vezes, a única ferramenta que impede a concretização de crimes ambientais em larga escala. Mais grave ainda é que o projeto dispensa a análise dos impactos indiretos das obras, permitindo, por exemplo, que uma estrada seja licenciada sem que se avaliem os efeitos do desmatamento e da grilagem que ela pode estimular ao redor. O PL também institucionaliza a renovação automática de licenças e cria a figura da Licença Ambiental Especial para projetos considerados estratégicos, a serem aprovados por um conselho político, o que na prática legaliza a interferência do alto escalão do governo em processos que deveriam ser técnicos.
Ao mesmo tempo em que o Congresso acelera esse retrocesso, o governo federal vem enfraquecendo e constrangendo o Ibama, nosso principal órgão de fiscalização ambiental. O sucateamento da instituição, com redução de orçamento, nomeações políticas e perseguição a servidores, faz parte de um projeto mais amplo: tirar da frente todos os obstáculos institucionais à destruição dos biomas brasileiros. O caso da exploração de petróleo na foz do Amazonas é simbólico. Quando o Ibama, com base em pareceres técnicos, negou a licença à Petrobras para perfuração na região, sofreu ataques públicos de setores do próprio governo. Nenhuma autoridade de peso veio em defesa da decisão técnica. Ao contrário: foram feitas pressões e ameaças veladas para que o órgão reconsiderasse a decisão.
Para ilustrar os riscos dessa flexibilização, basta lembrar o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), em 2019. O desastre, que matou 272 pessoas e causou um dos maiores danos ambientais da história do país, ocorreu em um empreendimento classificado como de médio impacto pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais,como alerta a nota técnica do Observatório do Clima sobre o PL 2159/21.
Os principais ataques ao licenciamento ambiental previstos no PL 2159/2021
Um dos pontos mais polêmicos do Projeto de Lei 2159/2021, é a ampliação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), um mecanismo de autodeclaração pelo qual o empreendedor afirma, por conta própria, que sua atividade não causará danos ambientais. A concessão dessa licença será automática, sem a necessidade de estudos prévios, análise técnica ou consulta às comunidades impactadas. Atualmente restrita a atividades de impacto insignificante, a LAC poderá ser aplicada a obras de médio porte, como saneamento básico, duplicação de rodovias, dragagens e projetos em áreas sensíveis, aumentando o risco de danos ambientais irreversíveis. Segundo a ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, esse modelo pode representar até 90% dos licenciamentos no país, com fiscalização reduzida e alto potencial de impunidade, pois o monitoramento será feito por amostragem.
Além disso, o PL enfraquece o papel do ICMBio ao permitir o licenciamento de empreendimentos em unidades de conservação sem a manifestação obrigatória do órgão gestor, minando a proteção dos ecossistemas mais frágeis. Também limita a responsabilidade das empresas por crimes ambientais, inclusive em desastres como Mariana (2015) e Brumadinho (2019), isentando os empreendedores de reparar os danos causados por suas atividades.
Outro ponto alarmante é que o projeto não estabelece uma lista mínima de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental, transferindo essa definição para estados e municípios. Isso pode gerar profundas distorções regionais, com regras fragmentadas e sujeitas a pressões políticas locais, comprometendo a segurança jurídica e a proteção ambiental em todo o país.
A seguir, os principais pontos da proposta:
1. Exclusão de terras indígenas em processo de demarcação
O PL considera apenas terras indígenas já homologadas nos processos de licenciamento ambiental, ignorando territórios em processo de demarcação ou reivindicação. Essa exclusão favorece invasões, grilagens e projetos predatórios em territórios tradicionalmente ocupados, violando direitos constitucionais e abrindo margem para novos conflitos e violência contra os povos originários.
2. Autolicenciamento: sem análise técnica e sem controle
O projeto permite que empreendimentos se autolicenciem, por meio da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), em que o empresário apenas preenche um formulário online declarando seguir as regras, sem qualquer análise prévia ou vistoria ambiental. A LAC tende a se tornar a regra, enquanto o licenciamento tradicional, com avaliação técnica, torna-se exceção.
Nos estados onde já há práticas semelhantes, os efeitos têm sido desastrosos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o autolicenciamento levou à retirada de matas ciliares, contribuindo para a tragédia ambiental que assolou o estado em 2024 e 2025.
3. Falta de estrutura nos municípios: quem vai licenciar?
O projeto transfere responsabilidades para estados e municípios, sem garantir estrutura técnica mínima para realizar licenciamento. Como esperar que pequenos municípios, muitos sem sequer uma Secretaria de Meio Ambiente, consigam realizar análises técnicas complexas? Imagine a pressão de grandes empresários do agronegócio sobre prefeituras de cidades pequenas, sem qualquer contrapeso institucional.
4. Dispensa de licença para o agro
O PL dispensa de licenciamento as atividades de agricultura e pecuária extensiva, permitindo que quem quiser literalmente “passar a boiada” o faça sem qualquer controle ambiental. Isso abre caminho para desmatamento, contaminação de solos e águas e violação de direitos sem qualquer responsabilização.
5. Risco à água e à segurança hídrica
A proposta retira a obrigatoriedade de outorga de uso da água, essencial para proteger mananciais e garantir o abastecimento público. Isso compromete a quantidade e a qualidade da água disponível, especialmente em regiões já afetadas por secas, desertificação e conflitos pelo uso da água.
6. Isenção de responsabilidades e prejuízo à sociedade
Ao fragilizar ou eliminar os condicionantes socioambientais (obrigações de prevenção, compensação e reparação de danos), o PL isenta os empreendimentos privados de custos com mitigação de impactos e transfere o prejuízo para a sociedade e os cofres públicos. É a lógica do lucro privado, prejuízo público.
7. Carta branca para estados e municípios
O PL delega aos estados e municípios a definição de quais empreendimentos estão ou não sujeitos ao licenciamento, sem critérios nacionais unificados. Isso pode gerar uma verdadeira guerra entre estados, com regras ambientais cada vez mais frágeis para atrair investidores, com a flexibilização como estratégia de competição predatória.
Racismo ambiental institucionalizado: como o PL ameaça indígenas e quilombolas
Além do impacto geral, o “PL da Devastação” ameaça diretamente os povos indígenas e quilombolas. Ao eliminar a obrigatoriedade do licenciamento ambiental em áreas cuja demarcação e titulação não foi concluída, situação que afeta mais de 30% das Terras Indígenas e 80% dos Territórios Quilombolas, o projeto aumenta a vulnerabilidade desses territórios e populações tradicionais. Isso ocorre sem consulta prévia ou avaliação ambiental, agravando danos como contaminação por agrotóxicos, destruição de locais sagrados e perda de recursos naturais, aprofundando o racismo ambiental e a marginalização histórica desses povos.
O projeto também revoga dispositivos da Lei da Mata Atlântica, abrindo caminho para a destruição legalizada desse bioma, que já perdeu cerca de 88% de sua cobertura original e é vital para a biodiversidade, a produção de água e a qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras. Com a revogação, áreas de Mata Atlântica primária e secundária poderão ser desmatadas sem necessidade de autorização do Ibama, bastando uma licença estadual ou municipal.
Na Amazônia, o PL facilita o desmatamento ao isentar de licenciamento obras de manutenção em rodovias, como a BR-319, que corta uma das regiões mais preservadas da floresta. Estudos indicam que a pavimentação da rodovia pode multiplicar o desmatamento local, e a aprovação do projeto ignora o impacto ambiental e as consultas às comunidades afetadas.
O avanço do PL da Devastação ocorre em um momento crítico para o clima global e para a floresta amazônica, que está próxima de um ponto de não retorno. A destruição da floresta liberaria grande quantidade de gases de efeito estufa, contribuindo para acelerar o aquecimento global, enquanto prejudica o ciclo hidrológico que mantém a agricultura e o abastecimento de água em vastas regiões do Brasil, incluindo São Paulo, que depende dos chamados “rios voadores” de vapor d’água originados na Amazônia.
No setor de petróleo, o governo aposta na extração “até a última gota”, ignorando as metas globais de redução de emissões necessárias para conter o aquecimento. Um grande leilão de áreas para exploração na foz do Amazonas está programado, e o Ibama tem sido pressionado a liberar projetos sem as avaliações ambientais adequadas, colocando em risco a biodiversidade marinha e o equilíbrio climático.
A justificativa para esses projetos, como a alegação de “segurança energética”, é questionável, já que o Brasil exporta grande parte do petróleo produzido e as reservas atuais são suficientes para o consumo interno durante a transição energética, que deveria ser acelerada. Além disso, o governo destina uma parcela mínima da receita petrolífera para investimentos em energias limpas.
Não há salvação climática sem ruptura com o capital
“Uma legislação que possa, verdadeiramente, des-tra-var o Brasil”, discursou, sílaba por sílaba, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Sua performance revela a lógica perversa que sustenta o projeto: a visão predatória e mercantilista do capitalismo, que enxerga a natureza não como bem comum, mas como recurso explorável a serviço do capital. O licenciamento ambiental tem falhas, tragédias como Mariana e Brumadinho ocorreram mesmo com licenças emitidas. Mas isso apenas reforça a urgência de fortalecer os órgãos de fiscalização e o controle social, e não desmontar a única formalidade jurídica que ainda oferece alguma barreira ao avanço do colapso ecológico.
A questão agrária, a luta pela terra, a crise climática e a questão ambiental no Brasil estão intimamente entrelaçadas com a estrutura de um capitalismo dependente e predatório. O Brasil é um país marcado pela superexploração da força de trabalho no campo e pela transferência desigual de valor para o centro do sistema capitalista. O agronegócio, expressão concreta da consolidação do capital no campo, e o latifúndio, herança direta da exploração escravista, são os pilares desse modelo de dominação econômica e política que transforma o meio ambiente em mercadoria, aprofundando a miséria e a dependência.
Nesse contexto, o PL 2159/2021, é a face mais recente da ofensiva burguesa sobre os territórios e sobre os direitos coletivos. Sob a lógica do capital, a natureza é vista como “trava” para o lucro, e não como bem comum. Essa visão reduz o licenciamento a um mero entrave burocrático, desconsiderando a sua importância como instrumento de precaução e justiça socioambiental.
O PCBR defende que não é possível resolver a crise ambiental dentro dos marcos do capitalismo. O agravamento da crise climática é resultado direto da ruptura sociometabólica provocada pela dinâmica imperialista, que avança sobre os territórios com grileiros, latifundiários, mineradoras, e especuladores, destruindo ecossistemas, expulsando comunidades e minando a própria possibilidade de vida no planeta. As populações que mais sofrem com a degradação ambiental, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, trabalhadores das periferias urbanas, são também as que menos contribuem para essa crise, e as que mais resistem. A única saída real está na superação do latifúndio, do agronegócio e da monocultura, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção e avançando para a nacionalização de todas as terras, com usufruto para os pequenos agricultores e sua incorporação progressiva à produção socializada e controlada socialmente. Só o controle social das terras permitirá uma reorganização racional e planejada da interação metabólica entre a sociedade e a natureza, construindo um modelo produtivo não predatório, capaz de atender às necessidades do povo trabalhador e garantir a preservação dos bens comuns. Não há como salvar o meio ambiente sem enfrentar o poder das classes dominantes.
A recente investida do governo Lula, que tenta se equilibrar entre concessões ao capital e a imagem ambientalista, evidencia os limites do campo democrático-popular, que permanece subordinado à lógica do capital e incapaz de oferecer uma saída estrutural para a crise ecológica. A aprovação do PL do Licenciamento Ambiental é mais um dos contínuos ataques, e a única forma de barrá-lo é com a mobilização popular, a organização combativa dos movimentos sociais e a denúncia sistemática da falência do modelo capitalista e da sua “agenda verde” de fachada.
Por isso, devemos fortalecer os núcleos de base, a articulação entre movimentos camponeses, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e setores populares urbanos, construindo uma ampla frente de resistência que não apenas denuncie o avanço predatório do capital, mas também apresenta saídas concretas baseadas na justiça social e na planificação ecológica. Não haverá preservação ambiental real sem luta pela terra, sem combate ao latifúndio e sem superação do capitalismo.
No Brasil, enquanto a COP30 é utilizada como vitrine governamental, para mostrar ao mundo a “preocupação ambiental” do país, a realidade mostra o contrário: destruição de biomas, avanço do agronegócio, precarização dos órgãos ambientais e violência contra povos indígenas e trabalhadores rurais. As enchentes no Rio Grande do Sul, os desastres climáticos no Cerrado, Pantanal e Amazônia, e os conflitos fundiários em Roraima e Pará são a expressão de uma política que favorece os grandes empreendimentos e destrói vidas e territórios.
Assim, não podemos alimentar ilusões: o PL da Devastação e a COP30 são duas faces da mesma moeda, representam o avanço da lógica de mercantilização e destruição ambiental, patrocinada pelo grande capital, com a conivência do governo federal e o apoio do imperialismo. As soluções reais para a crise climática e ambiental não virão dos acordos das burguesias e das corporações globais, mas sim da organização independente da classe trabalhadora, dos povos indígenas, quilombolas, camponeses e ribeirinhos, que lutam diariamente para defender seus territórios e garantir um futuro digno para todos.