Quando a crise climática encontra a negligência do Estado burguês

Os fenômenos extremos deixaram de ser uma exceção para tornarem-se a nova norma de um planeta em desequilíbrio, impulsionado por décadas de emissões descontroladas.

16 de Dezembro de 2025 às 21h00

Crianças se locomovem em meio aos escombros e lama das enchentes que atingiram a Indonésia. Reprodução/Foto: Al Jazeera.

Por Guilherme Sá

Desde o início de dezembro, inundações catastróficas vêm assolando o Sudeste Asiático, deixando um saldo de aproximadamente duas mil mortes. Os números oficiais da Indonésia, Sri Lanka, Tailândia e Malásia, principais países atingidos pelas tempestades, contabilizam os corpos, mas não explicam a magnitude da tragédia humana: comunidades inteiras soterradas, infraestruturas públicas colapsadas e milhões de pessoas desalojadas ou isoladas, sem acesso a água, comida ou assistência médica.

Esta hecatombe, no entanto, não é um fato isolado. Ainda no mês de novembro, o Vietnã enfrentou tempestades históricas, com o Centro Nacional de Previsão Hidrometeorológica vietnamita apontando que a magnitude dos eventos não eram vistas há mais de 50 anos. Ao todo, o país enfrentou ao longo de 2025, 19 tufões, que causaram cerca de 400 mortes e mais de 700 desaparecidos.

Nesta toada, em setembro, a formação do supertufão Ragasa atingiu Filipinas, Taiwan, Hong Kong e o sul da China, causando dezenas de mortes e um cenário de destruição e caos, afetando a população diretamente e a longo prazo, atingindo zonas rurais e deslocando milhões de pessoas. Nas semanas seguintes, a região enfrentou ainda os tufões Bualoi e Matmo, que provocaram estragos severos no Vietnã, Filipinas e novamente no Sul da China, inundando plantações e destruindo casas, gerando prejuízos milionários e centenas de milhares de deslocados.

Menina caminha na lama em enchente em Aceh Tamiang, província de Aceh, Indonésia, em 5 de dezembro de 2025. Reprodução/Foto: AFP.

Explicitado o cenário catastrófico, o que emerge deste mosaico de destruição é um retrato inequívoco de como a crise climática deixou de ser uma projeção futura para se tornar uma realidade imediata e letal. Os fenômenos extremos deixaram de ser uma exceção para tornarem-se a nova norma de um planeta em desequilíbrio, impulsionado por décadas de emissões descontroladas.

Contudo, a escala da tragédia humana não é determinada apenas pelos ventos mais fortes ou pelo volume maior de chuva. Ela é amplificada exponencialmente pela negligência histórica do Estado burguês, um aparato que, subordinado aos interesses do capital, sistematicamente se recusa em investir em planejamento urbano popular, em infraestrutura de adaptação e em proteção social para os mais vulneráveis.

Clima e protestos

Com a gravidade dos fenômenos climáticos aumentando a cada ano, fica cada vez mais evidente que seus impactos não são sentidos da mesma forma. A perda de moradias, as inundações recorrentes, os deslizamentos e as consequentes crises alimentares impostas por chuvas extremas, ciclones e tufões geram um sentimento natural de revolta sobre a classe trabalhadora, criando cenários complexos de instabilidade política.

Nas Filipinas, o devastador tufão Kalmaegi atingiu a região central do país no início de dezembro, deixando cerca de 200 mortos e dezenas de desaparecidos, além de destruir infraestruturas essenciais. O cenário de descaso e negligência completa do Estado em relação a medidas preventivas contra eventos climáticos serviu como estopim para grandes mobilizações populares. Segundo reportagem do Brasil de Fato, mais de 9.800 obras de infraestrutura no país estão sob investigação, incluindo diques e sistemas de drenagem declarados concluídos, mas que sequer existem ou apresentam falhas graves, deixando comunidades intencionalmente vulneráveis.

Esta mesma lógica se repetiu em outubro, quando o Nepal e o norte da Índia foram atingidos por chuvas torrenciais que causaram dezenas de mortes e desaparecimentos, soterraram vilarejos e destruíram pontes e estradas que ligavam regiões isoladas à capital nepalesa, Katmandu. A situação, que revelou o despreparo e a inação do governo para amparar a população e prevenir danos previsíveis do regime de chuvas, somou-se a outras tensões políticas, inflamando o cenário que culminou, como noticiado pelo jornal O Futuro, na derrubada do governo de Khadga Prasad Oli, em meio a manifestações massivas.

A revolta diante das consequências cada vez mais severas da crise climática expõe ao fim e ao cabo o esgotamento do modelo econômico do sudeste asiático, outrora vigorosamente elogiado durante a maré neoliberal, onde periódicos e intelectuais burgueses surpreenderam seu público com os “tigres asiáticos”. Apesar de expressivos crescimentos econômicos e de uma integração regional avançada, calcada numa doutrina diplomática de não interferência externa, que só recentemente ganhou novo protagonismo chinês, os Estados burgueses da região revelam-se incapazes de priorizar a vida da classe trabalhadora ou mesmo superar sua dependência. Para além de terem sido financiados pelo imperialismo como alternativa ao socialismo, num período marcado pela superação da besta fera pelos vietnamitas, a tendência destes Estados e suas lideranças é favorecer os lucros das multinacionais e de suas burguesias internas, integrando a cadeia de produção global em níveis estratégicos, transferindo o custo humano das catástrofes para a população explorada.

Contradições à vista

Em meio às calamidades recentes na região, as medidas adotadas pelo Partido Comunista da China (PCCh), especialmente no sul do país, destacaram-se pela eficácia em reduzir a letalidade dos desastres.

Nos diversos eventos climáticos que atingem o território chinês, grande parte das consequências são mitigadas por evacuações preventivas em massa e por uma resposta rápida na reconstrução. Em setembro, por exemplo, escolas e comércios foram fechados nas províncias de Guangdong, Hainan e Fujian, com o governo evacuando mais de 400 mil pessoas de áreas costeiras e de baixa altitude. Ainda em junho, cerca de 70 mil pessoas foram retiradas preventivamente no sudoeste do país devido a inundações, evitando vítimas do transbordamento de rios e deslizamentos.

Vila na província de Guizhou, sudoeste da China, em 28 de junho de 2025. Reprodução/Foto: Brasil de Fato.

No topo da lista de maiores emissores globais de CO2, a China vem alterando a imagem de seu desenvolvimento (não sua realidade), antes baseado no uso desenfreado de combustíveis fósseis. Conceitos como "cidades-esponja", que visam a absorção natural das águas da chuva, tornaram-se referências internacionais para a adaptação climática e grandes centros urbanos são usados como exemplo de integração com o ecossistema.

A severidade dos impactos em países vizinhos evidencia, assim, a diferença abissal no investimento estatal em prevenção, mostrando uma peculiaridade chinesa frente aos Estados burgueses da região. Esta é, notoriamente, consequência não apenas do processo revolucionário que o país vivenciou no século passado e todos os seus caminhos trilhados ao longo das décadas, mas de determinadas características chinesas no manejo dos eventos climáticos, herdados de milhares de anos de existência e sociabilidade dos povos chineses.

No entanto, parte dos valores imputados na priorização da vida e nas políticas de planejamento e prevenção, se dissolve quando se analisam as ações chinesas no mercado global. O país que lidera a pesquisa e o desenvolvimento (P&D) de veículos elétricos e energias renováveis, é também um protagonista do extrativismo predatório nos países periféricos. Um dos exemplos mais marcantes talvez seja o controle de cerca de 70% da extração mineral na República Democrática do Congo, onde extrai coltan e cobre as custas da exploração das classes oprimidas e de conflitos regionais.

A presença chinesa avança também nos mercados de petróleo da Nigéria, Sudão, Chade, Níger, Guiné e Togo, frequentemente preenchendo vácuos deixados por potências ocidentais.

No Brasil, a contradição se coroa e ganha coordenadas geográficas precisas. O interesse chinês materializa-se no financiamento e planejamento de megaobras de infraestrutura logística que têm um objetivo claro de otimizar e ampliar o escoamento de commodities brasileiras para o mercado asiático. O projeto mais emblemático é o complexo ferroviário que visa conectar o Centro-Oeste ao Porto de Chancay, no Peru – um terminal de águas profundas no Pacífico controlado por capitais chineses e considerado estratégico por Pequim.

Segundo reportagem do jornal O Futuro, os planos, discutidos em alto nível pelo governo Lula e por comitivas técnicas chinesas, preveem um corredor Leste-Oeste. Este corredor interligaria ferrovias como a Fiol (na Bahia) e a Ferrogrão (no Pará), passando por Goiás e Mato Grosso, com ramais direcionados ao Acre. O estado acreano é visado como um eixo logístico crucial, com rotas estudadas a partir de Cruzeiro do Sul (via BR-364) ou de Brasiléia (via BR-317) para criar uma ligação terrestre mais curta até o Pacífico, contornando os gargalos dos Andes.

Nesse sentido, é possível inferir que o direcionamento chinês para o investimento a longo prazo na prevenção de catástrofes é paradoxal, uma vez que financia ao redor do globo a destruição ambiental em larga escala. Destaca-se o caso brasileiro, em que a cada ano vivencia-se eventos cada vez mais extremos, das ondas de calor a ciclones extratropicais, que continuarão atingindo a população enquanto a burguesia estiver a frente do monopólio do Estado e o agronegócio, financiado pelo capital chinês, continuar a destruir os ecossistemas.

Futuro incerto

Com eventos climáticos extremos se tornando a nova norma, as populações na base da pirâmide imperialista se veem cada vez mais desamparadas. O crescimento urbano desordenado, somado ao sucateamento de serviços públicos em benefício do capital privado, gera colapsos sistêmicos sem precedentes.

O caso do Irã em 2025 é emblemático. O uso predatório dos recursos hídricos e a priorização do lucro industrial levaram a uma crise humanitária de seca extrema. É significativo que, menos de um mês após a COP 30, um evento midiático pouco consequente, fomentado por grandes corporações, milhares enfrentem as consequências de um modelo de desenvolvimento que sacrifica territórios periféricos no altar da acumulação centralizada.

Não há futuro sob o Estado burguês e o regime capitalista. Enquanto o aparato estatal servir a uma classe que vê a prevenção de catástrofes como "gasto" e o lucro como prioridade, os próximos anos trarão mais desastres, mais vidas desperdiçadas e mais revolta generalizada. A tragédia asiática prova que a adaptação real exige um projeto político radical: somente um sistema que priorize a vida sobre o lucro, e a planificação democrática sobre a anarquia do mercado, pode frear as consequências do colapso climático. A escolha imposta pela crise é clara: socialismo ou barbárie.