O Nepal no fogo cruzado das disputas interimperialistas

O Nepal se tornou palco de um jogo geopolítico, no qual a ascensão subimperialista da Índia, as tensões comerciais entre EUA e China e o poderio das Big Techs se chocam, transformando a revolta local em laboratório para a soberania na era digital.

18 de Setembro de 2025 às 21h00

Manifestantes atearam fogo na sede do Parlamento nepalês. Reprodução: Redes Sociais.

Por Guilherme Sá

A renúncia do primeiro-ministro nepalês Khadga Prasad Oli, no último dia 9, após três dias de protestos massivos que causaram a morte de pelo menos 70 pessoas, marcou o ápice de uma crise política que se arrasta há anos no Nepal. O estopim foi o banimento de 26 plataformas digitais — incluindo Facebook, WhatsApp e YouTube — por não cumprirem regras de registro local. A medida, revogada sob pressão popular, cortou uma importante via de subsistência dos nepaleses que dependem dessas plataformas para pagamentos em pequenos comércios e para recebimento de remessas vindas de familiares que trabalham no exterior.

O que se viu nas ruas de Katmandu, porém, foi muito mais do que uma revolta geracional por liberdade digital, como seguem afirmando os veículos da mídia hegemônica ocidental ao divulgarem o mote “Geração Z”. Em realidade, o Nepal tornou-se, subitamente, o palco de um jogo geopolítico global, no qual a ascensão subimperialista da Índia, as tensões comerciais entre EUA e China e o poderio absoluto das Big Techs se chocam, transformando a revolta local em um laboratório para a soberania nacional na era digital.

O Nepal moderno forjou-se em revoltas contra a autocracia da dinastia hindu dos Rana, derrubada em 1951, e contra a monarquia absoluta, que depois de três décadas cedeu ao multipartidarismo como consequência do Jana Andolan, movimento popular da década de 1990 encabeçado pelos diferentes partidos comunistas do país. Contudo, a instabilidade política e econômica persistente levou a uma década de guerra civil (1996-2006), liderada pelo Partido Comunista do Nepal (Maoísta), que culminou na abolição da monarquia em 2008.

Nos anos de consagração da República e seus debates sobre uma nova constituição, uma frágil aliança dos partidos comunistas trouxe esperanças, mas falhou na luta pela superação das estruturas feudais, contra a corrupção endêmica e na atenção às demandas de grupos étnicos marginalizados. A união eleitoral dos maoístas e o Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista Unificado), lançada em 2018, desintegrou-se rapidamente em 2021 por acusações mútuas de corrupção, mergulhando o país num ciclo de governos de coligação ineficazes.

Este vácuo de legitimidade, agravado por desastres naturais e um desemprego massivo que força a diáspora de mais de meio milhão de nepaleses, criou um grande barril de pólvora social. Sem precedentes, a revolta levou milhares às ruas num descontrolado movimento que, apesar de dominado pela despolitização e apartidarismo, segue com significativo apoio dos maoístas, que lideravam a oposição ao governo de Khadga Prasad Oli, principal representante da fração direitista do PCN-MLU.

Bandeira é hasteada em prédio queimado por manifestantes. Reprodução: Redes Sociais/ NepalPress.

A crise nepalesa, no entanto, não é um evento isolado; ela é parte integrante da acirrada disputa geopolítica entre Índia (aliada aos EUA) e China pelo domínio econômico e político do Sul da Ásia. Historicamente, a Índia perpetuou formas coloniais de dominação sobre os Estados do Himalaia, garantindo uma esfera de influência natural e encarando-os como estados-tampão cruciais contra o crescimento da China. Esta visão é herdeira direta da doutrina Akhand Bharat (Grande Índia), que move de formas distintas a burguesia indiana e o atual governo Modi. No entanto, a ascensão econômica e militar chinesa, materializada em investimentos massivos em infraestrutura no Nepal através da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), desafia constantemente esta hegemonia indiana.

É neste contexto que a estratégia dos Estados Unidos se entrelaça com os interesses indianos. Em grande medida, a Índia é o parceiro ideal, segundo Washington, na sua campanha para conter a China. Esta parceria é cementada por uma arquitetura de acordos militares que garantem interoperabilidade, como a assinatura do Logistics Exchange Memorandum of Agreement (LEMOA), que permite, entre outras coisas, que as forças norte-americanas utilizem bases indianas, e os exercícios navais Malabar – inicialmente bilaterais e agora expandidos para incluir Japão e Austrália no formato do Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral).

Apesar desta ampla parceria estratégica com os EUA, a Índia desenvolveu ao longo de décadas medidas significativas para promover sua autonomia, utilizando a guerra comercial como forma de angariar vantagens. No campo militar, isto se reflete na recusa em alienar completamente a Rússia, sua principal fornecedora histórica de armamentos. New Delhi prossegue com a compra do sistema de defesa aérea S-400 Triumf, um contrato multibilionário que desafia as sanções norte-americanas, e mantém pagamentos em rúpias para garantir o fluxo de petróleo e fertilizantes russos, crucial para sua economia.

Financeiramente, a Índia promove ativamente a internacionalização de sua moeda em transações bilaterais, um movimento estratégico para reduzir sua dependência do dólar e do sistema financeiro ocidental. Esta postura de "alinhamento múltiplo" demonstra que a Índia não é um mero satélite, mas um ator que busca derivar o máximo de vantagem do conflito entre as grandes potências. É precisamente esta autonomia que alimenta os planos para reafirmar sua influência política no Nepal, assegurando que Katmandu permaneça dentro de sua esfera de influência primordial.

Esta projeção de poder indiana no Nepal vai além da diplomacia e é amplificada por uma agenda ideológica: o Hindutva, uma ideologia de extrema-direita que define a identidade nacional indiana em termos fundamentalmente religiosos, promovendo a ideia de uma nação hindu. Organizações indianas como o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) e sua afiliada internacional, o Hindu Swayamsevak Sangh (HSS, ativo no Nepal), trabalham há décadas para promover esta visão, formando quadros e estabelecendo shakhas (unidades de treino) de forma discreta.

Membros da organização Hindutva de extrema-direita, Vishwa Hindu Parishad, em protesto no Nepal. Reprodução: Redes Sociais.

No Nepal, esta ideologia se alia a forças políticas locais que se opõem ao secularismo, defendendo o retorno à monarquia hindu abolida em 2008. Partidos como o Rashtriya Prajatantra Party (RPP) e grupos como o Shiv Sena Nepal são veículos desta agenda, que encontra ressonância em segmentos da pequena burguesia nepalesa frustrada com a corrupção.

Dito isso, as recentes taxações impostas pelo governo Trump, que também atingem a Índia, representam uma movimentação geopolítica calculada para realinhar cadeias de produção globais e garantir o controle ocidental sobre recursos estratégicos. Esta estratégia visa tanto enfraquecer a China economicamente quanto assegurar o acesso a matérias-primas críticas, como as terras-raras brasileiras, essenciais para a indústria de alta tecnologia, de semicondutores a baterias de veículos elétricos.

Paralelamente, há uma pressão constante para proteger o lucro e a hegemonia das Big Techs norte-americanas, cujos modelos de negócios dependem não apenas de dados, mas também de uma infraestrutura física global. Esta demanda por recursos estende-se à garantia de fontes de água estáveis e abundantes para resfriar os data centers que sustentam a nuvem digital, tornando o controle hídrico uma nova fronteira de disputa geoeconômica.

Protestos no Nepal tomam as ruas da capital, Katmandu. Reprodução: Redes Sociais.

O Nepal – sem soberania digital, sem mercado consumidor de massa e assolado por instabilidade política – não oferece às Big Techs um interesse econômico direto. Sua relevância é quase puramente geopolítica e ideológica. A recusa das plataformas em cumprir as leis nepalesas de registro não foi um erro de cálculo; foi uma demonstração de poder.

A "Geração Z", dependente dessas plataformas para comunicação, remessas e subsistência, tornou-se a força de choque que defende os interesses corporativos globais, ao mesmo tempo que expõem de forma legítima as fragilidades e a crise da esquerda nepalesa em seus governos desde a derrubada da monarquia.

A crise nepalesa, assim, é mais uma demonstração do padrão de enfrentamento nas grandes disputas interimperialistas. Ela ilustra como a disputa entre grandes potências pela tecnologia e recursos, a exploração subimperialista da mão-de-obra e o poder corporativo transnacional das Big Techs se conjugam para esvaziar a soberania de Estados vulneráveis. O Nepal não queimou apenas o seu Parlamento; ele testemunhou a combustão da própria ideia de autodeterminação na era digital, onde a vontade popular, instrumentalizada por algoritmos e interesses geopolíticos distantes, pode ser mobilizada tanto para derrubar governos quanto para consolidar novas e mais sutis formas de colonialismo.