A grave crise hídrica do Irã e suas causas

A declaração do presidente Masoud Pezeshkian, sugerindo, no início do mês de novembro, a possível evacuação da capital, Teerã, escancara a gravidade de uma crise que agrava todas as outras num país já asfixiado por sanções e constantes ameaças militares.

4 de Dezembro de 2025 às 21h00

Rio Karaj, acima da represa Amir Kabir, com baixo nível da água fluindo em pequenos canais pelo seu leito. Reprodução/Foto: BBC.

Por Guilherme Sá

No sexto ano consecutivo de uma seca histórica, o Irã vê o fantasma de um colapso hídrico se tornar realidade. A declaração do presidente Masoud Pezeshkian, sugerindo, no início do mês de novembro, a possível evacuação da capital, Teerã, escancara a gravidade de uma crise que agrava todas as outras num país já asfixiado por sanções e constantes ameaças militares.

Em paralelo, o diretor da empresa de água da capital, Behzad Parsa, divulgou na TV estatal que a Represa Amir Kabir, principal fornecedora de água potável para Teerã, operava com apenas 8% de sua capacidade, o que levaria a apenas mais duas semanas de abastecimento.

Há meses, o país vive uma rotina marcada pela escassez. Com impressionantes baixas nos níveis de precipitação, que não encontram precedentes há mais de um século, o fornecimento de água e mesmo de eletricidade foram atingidos, gerando apagões diários que oscilam com torneiras secas.

Agravando a totalidade deste cenário, o país vem registrando, segundo a Organização Meteorológica do Irã, ondas de calor que superaram os 50ºC em algumas regiões, fazendo o governo declarar feriados nacionais para amenizar seus efeitos.

Sem chuvas à vista e com outras cerca de 19 barragens operando abaixo de 5% da capacidade, a crise hídrica não atinge a todos. Ao norte de Teerã, região mais abastada da metrópole com mais de 10 milhões de habitantes, a refinada infraestrutura de distribuição e armazenamento faz com que seus residentes permaneçam alheios ao problema, consumindo cerca de dez vezes mais água que o restante da cidade, que são obrigados a racionar.

Desde a chamada Revolução Iraniana, em 1979, Teerã vive um boom populacional e industrial, gerando contradições urbanas como a favelização e a não adequação para receber o recente êxodo rural, gerado também pelas secas. Nesse sentido, todavia, o natural aumento do consumo e a ausência de chuvas estão longe de explicar as verdadeiras causas da crise hídrica no país.

Técnicas ancestrais e colapsos do presente

Há milhares de anos, o local onde atualmente se localiza o Irã viu nascer diversas técnicas de abastecimento que garantiram o assentamento de diversas populações no clima árido e seco da região.

Os chamados Qanats persas, transformados em patrimônio da humanidade pela UNESCO, configuravam um sistema que captava água dos lençóis freáticos, navegando posteriormente por grandes túneis subterrâneos através da gravidade até o local onde as populações se encontravam. Técnica autorreguladora, os qanats captam apenas o excedente dos chamados ventiladores aluviais, que “jogam” a água para cima, permitindo que os aquíferos se recuperem naturalmente, sem esgotar o recurso.

Os túneis do Qanat de Moon. Reprodução/Foto: UNESCO.

Com a ocupação da Pérsia pelo Reino Unido, ainda no século XVIII, sua inserção no sistema global e a exploração de seus recursos ao longo das décadas levou ao abandono e destruição dos modos de vida de diversas populações em todo território. O colonialismo e a supremacia dos Xás sobre o bem estar da população, assim, rapidamente incrustaram o capitalismo e a lógica do lucro, exigindo ao máximo os parcos recursos hídricos.

A Revolução de 1979, imersa no mar da luta de classes, acabou com a derrota dos comunistas e a consagração da República Islâmica e a figura do Aiatolá Ruhollah Khomeini como representantes do seu futuro, levando o Irã a caminhos tumultuosos, tanto pelo seu crescimento enquanto Estado nacional, quanto pelas disputas surgidas pelas provocações dos EUA e seus aliados sionistas.

Foi nesse contexto que a Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC na sigla original), organismo criado durante a Revolução para atuar ideologicamente em sua defesa, passou a controlar setores chave da economia, particularmente após a guerra com o Iraque, na década de 1980.

O principal veículo para essa expansão foi a empreiteira Khatam al-Anbiya Construction Headquarters (KAA). Por meio dela, veteranos da IRGC passaram a executar, sem concorrência pública, megaprojetos de infraestrutura em todo o país. Os contratos, concedidos ao longo das últimas décadas, incluíram a construção de túneis e estradas, além da exploração de recursos como minérios, petróleo e gás.

Todavia, foi justamente no setor de recursos hídricos que a atuação da KAA encontrou seu terreno mais fértil (e mais devastador). Seu braço especializado, a empresa Sepasad Engineering Company, tornou-se a principal construtora das grandes barragens que redesenharam à força a hidrografia iraniana. A lógica, no entanto, não era a conservação do recurso, mas o lucro e o controle político da IRGC, visando teoricamente garantir a demanda.

Erguidas com uma engenharia agressiva que ignorou solenemente o conhecimento milenar dos qanats e a crise climática, essas barragens interromperam o fluxo vital de rios que alimentavam ecossistemas inteiros, fazendo com que a capital, Teerã, recebesse cada vez mais recursos através dos desvios e se tornasse dependente de um sistema finito.

Acima, 22 de fevereiro de 2025, em comparação com uma imagem de 5 de junho de 2023, que mostra o rio Zayandeh Rud fluindo abaixo da ponte Si-o-se-pol (a Ponte dos 33 Arcos). Reprodução/Foto: BBC.

O resultado foi uma catástrofe ambiental: o Pântano de Gavkhouni, bacia terminal do rio Zayandeh localizado na província de Isfahan, secou completamente devido á má gestão e captação excessiva dos recursos deste corpo d’água. Na mesma toada, o gigante Lago Urmia, no noroeste, foi reduzindo de tamanho ao longo das décadas pela ação das barragens e captação desenfreada.

Além disso, estudos apontam que cerca de 70% das reservas subterrâneas de água foram esgotas, o que vem causando o afundamento do solo em diversos distritos devido ao colapso de aquíferos.

Estas graves consequência de longo prazo causadas pela política adotada pelo governo iraniano vem convergindo com o estado alarmante em que se encontra a população para criar uma situação de crise aguda, capaz de quebrar violentamente qualquer coesão social existente no país.

Sanções e autossuficiência

Após 1979, a posição política do Irã na conjuntura global culminou no choque frontal com as forças ocidentais, o que foi acompanhado de inúmeras sanções impostas ao país, limitando sua zona de manobra e levando a contínuas crises econômicas. Mesmo assim, a linha adotada pelo Aiatolá e os grupos que assumiram a presidência do Irã ao longo dos anos, apesar de suas divergências políticas, foi capaz de manter a hegemonia, mesmo que às custas dos recursos.

Morad Kaviani, professor de geografia e hidropolítica na Universidade Kharazmi do Irã, apontou à TV estatal iraniana que “A lei [iraniana] estipula que 85% dos alimentos nacionais sejam produzidos localmente”, como maneira de evitar um possível colapso do abastecimento causados eventualmente pelas sanções. Contudo, o professor acrescenta que “o Irã não tem capacidade de água e solo [para isso] e quase 30% dos produtos agrícolas são desperdiçados devido à falta de infraestruturas, práticas de irrigação obsoletas e seleção equivocada de culturas.”

Hoje, tanto KAA quanto Sepasad são sancionadas por diversos países do ocidente e a impossibilidade de receber investimentos e aplicar um possível desenvolvimento de sua tecnologia levaram a obsolescência e consequente sucateamento da infraestrutura. Nesse sentido, o Irã buscou assinar acordos com estatais chinesas para dar continuidade a construção de barragens, como no caso da joint venture com a China Gezhouba Group Corporation (CGGC) para construir a barragem e usina elétrica de Rudbar Loresta, concluída em 2016.

Liderança global no processo de construção de usinas hidrelétricas, a China vem atuando no setor hídrico globalmente há décadas. No entanto, longe de buscar soluções que visem a conservação dos recursos iranianos, a construção de barragens e outras infraestruturas, além de garantirem como contrapartida o fornecimento do petróleo do Irã, visam estruturar um laboratório para solucionar problemas chineses de fornecimento.

“Aviso: água não potável”, diz a garrafa de um manifestante em protesto contra a falta d'água no Irã. Reprodução/Foto: Getty Images.

O cenário, contudo, permanece inalterado e a Sepasad é continuamente responsabilizada pelos iranianos pelas recorrentes crises. Em reportagem da Al Jazeera, o professor de engenharia civil e ambiental na Universidade Tufts, Farshid Vahedifard, aponta que “a escassez de água [de 2025] já está alimentando tensões e protestos locais, que podem se transformar em conflitos sociais mais amplos, especialmente porque grandes dificuldades econômicas [aumento da inflação, desemprego, problemas de moradia e o alto custo de vida] prejudicam ainda mais a capacidade das pessoas de lidar com a situação.”

Efeito Placebo e escassez global

Em uma pesquisa acerca das consequências da chamada Guerra dos 12 dias, protagonizada por Irã e Israel há meses atrás, uma esmagadora maioria de 75% culpou a má gestão e ineficiência como principal causa para a crise hídrica, enquanto 14% atribuiu a fatores naturais, e somente 4% apontou para sanções estrangeiras ou internacionais.

Represa Latyan, que abastece Teerã, operando com níveis baixíssimos. Reprodução/Foto: Getty Images.

Nos diversos comunicados e discursos televisivos, contudo, autoridades iranianas recomendam às pessoas que restrinjam o consumo de água, além de anunciarem o racionamento e recomendarem que a população compre tanques de armazenamento, sugerindo que a mudança de comportamento alteraria o cenário.

No entanto, fato é que o consumo doméstico corresponde a apenas 8% do total, sendo a quase totalidade dos recursos empregados na agricultura doméstica, priorizada na lógica das sanções citada anteriormente. 

Diante desse cenário, as medidas paliativas do governo iraniano atuam como um efeito placebo para uma doença estrutural. A insistência em soluções individuais, atribuindo às massas o ônus da crise, mascara a incapacidade do regime em confrontar as verdadeiras causas da escassez: a submissão dos recursos naturais à lógica do lucro e os incontáveis erros do governo iraniano.

Este não é um problema isolado do Irã. Vizinho, o Iraque sofre com a seca dos rios Tigre e Eufrates, e o mundo todo ingressa em uma era de mercantilização da água, onde conglomerados financeiros e corporações se posicionam para controlar o recurso.

A resposta global a essa tendência, no entanto, já surge: cidades como Paris e Berlim já reestatizaram seus serviços de água, reconhecendo o fracasso da gestão privada em garantir acesso universal. No Brasil, a tendência perversa é a inversa, com a privatização de companhias estaduais – como a Sabesp em São Paulo – que, ao colocar o lucro acima do direito humano à água, nos coloca no mesmo caminho perigoso que secou o Irã.

Nesse contexto, a superação da crise hídrica exige mais do que reformas técnicas; demanda uma nova relação com a natureza, incompatível com a mercantilização capitalista que trata a água como uma commodity. Para a classe trabalhadora iraniana, que sofre diretamente com a escassez e a seca dos rios, a organização e a luta por um projeto socialista tornam-se uma questão de sobrevivência. Trata-se de reivindicar o controle social sobre os recursos hídricos, desafiando tanto a “Máfia da Água” doméstica quanto a pressão imperialista que assola a região.