Cúpula dos Povos entrega carta final a presidência da COP 30
O documento denuncia a financeirização da natureza, mas evita temas centrais como o mercado de carbono, políticas do governo Lula e contradições internas do ambientalismo institucional.

Banner com os patrocinadores da Cúpula dos Povos. Foto: Jornal O Futuro.
No âmbito do encerramento da programação da Cúpulas dos Povos que reuniu, desde o dia 11, lideranças, Organizações da Sociedade Civil, Organizações não Governamentais (ONGs) e partidos políticos em paralelo à COP 30, grupos de trabalho sintetizaram uma carta final, no dia 16 de novembro, que foi entregue a André Corrêa do Lago, presidente da Conferência. Também estavam presentes a Ministra do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, Marina Silva, a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara e o Ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos.
A Carta da Cúpula dos Povos apresenta denúncias relevantes em torno do que os movimentos sociais vêm chamando de “capitalismo verde”, especialmente no que diz respeito à financeirização da natureza. Esse aspecto também foi evidenciado ao longo do evento nas falas de inúmeras lideranças da luta ambiental e pela terra.
Contudo, as críticas colocadas na carta às políticas de capitalismo verde permanecem parciais: afirmam que é necessário combater as falsas soluções de mercado, mas não especificam quais são elas.
Nota-se que nem mesmo o mercado de carbono - uma das principais e mais danosas dessas soluções - chegou a ser citada. Essa omissão se explica, em parte, pelo fato de que muitas das ONGs que financiaram o evento da Cúpula, sobretudo a World Wide Fund for Nature (WWF), fazem parte do próprio mercado de carbono e atuam para que comunidades aceitem projetos ligados a mecanismos como a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD+) e suas variantes. Sob o pretexto de democratizar tais "acordos", elas buscam traduzir as regras para a realidade dos povos indígenas em uma tentativa de apresentar os contratos como transparentes.
Essas organizações, portanto, buscam expandir o mercado, atuando para que este se torne mais “democrático” e transparente e que as comunidades indígenas façam os acordos diretamente, sem a interferência de governos estaduais com seus diversos interesses, atual realidade desse setor, onde os acordos acontecem entre governos e empresas sem a consulta aos povos diretamente afetados.
Essa visão é comum no ambientalismo liberal: reconhecer problemas, mas propor apenas ajustes supostamente democratizantes, e não o enfrentamento estrutural da financeirização da natureza.
A carta também não defende o fim do Fundo de florestas tropicais (TFFF) de Lula, apesar de combater a financeirização, diz que projetos desse tipo devem ser democratizados. Uma proposta parecida com a que as ONGs defendem em relação ao Mercado de Carbono.
“Somos contrários a qualquer falsa solução a crise climática que venha a perpetuar práticas prejudiciais, criar riscos imprevisíveis e desviar a atenção das soluções transformadoras e baseadas na justiça climática e dos povos, em todos os biomas e ecossistemas. Alertamos que o TFFF, sendo um programa financeirizado, não é uma resposta adequada. Todos os projetos financeiros devem estar sujeitos a critérios de transparência, acesso democrático, participação e benefício real para as populações afetadas.”
A carta, mesmo mencionando os países imperialistas - como Estados Unidos e seus aliados europeus -, não explicita como essas falsas soluções, como Mercado de Carbono, são instrumentos diretos do imperialismo contemporâneo.
Outro problema recorrente no documento é a ênfase excessiva em responsabilizar exclusivamente os países do Norte Global pela crise climática. Embora esses países sejam de fato os principais responsáveis históricos, não são os únicos causadores da crise atual. Os países subdesenvolvidos, em seus modelos exploratórios (ainda que não industriais), são responsáveis por exportar commodities semimanufaturadas (tal como Argentina e Brasil), que são grandes causadores da crise climática na América Latina. É nesta toada que o modelo de agronegócio destruiu biomas inteiros como o Charco na Argentina, bem como Pantanal, Caatinga e Amazônia no Brasil, com grande influência da necessidade de commodities do norte global, mas com muita influência da burguesia nacional de países subdesenvolvidos.
Apontar para os grandes países imperialistas como os causadores da crise é importante, mas não no sentido da crítica feita pela carta, que ao final coloca que esses países devem “pagar” por sua dívida histórica de exploração. Ainda que seja uma proposta justa, dificilmente isso é realizável de maneira satisfatória nos marcos do capitalismo, isso porque os países imperialistas transferem dinheiro para o terceiro mundo através de projetos verdes com vistas a ter licença para sua exploração desenfreada.
Um exemplo claro disso é a Noruega, que destina milhões ao fundo Amazônia enquanto lucra bilhões com a produção exploratória de empresas como a Hydro Alunorte, onde é sócia majoritária. A Carta não aborda a existência de burguesias internas que administram, reproduzem e aprofundam a lógica imperialista dos países do norte global.
Da mesma forma, não há qualquer análise da conjuntura nacional. Embora critique processos estruturais dos governos do mundo, o texto evita mencionar o governo brasileiro. Movimentos e setores governistas - como MST, MAB e outras organizações da frente popular - monopolizaram a escrita da carta evitando críticas ao governo Lula.
Questões centrais foram omitidas: a aprovação, em 2025, do chamado PL da Devastação (2159/2021) que marca o maior retrocesso ambiental do Brasil dos últimos anos com aval do governo Lula, que não alterou o núcleo do projeto, que viabiliza grandes investimentos; A proposta de liberação acelerada de projetos de mineração, inclusive em terras indígenas pelo STF; e à manutenção do marco temporal (Lei 14.701/23), sancionado no próprio governo Lula.
Também não há referência do papel do governo Lula acerca da aprovação da exploração de petróleo na Foz do Amazonas e em novos blocos na região Norte, como em Rondônia. Do mesmo modo, a Carta trata a questão ambiental de forma separada da econômica, e não interliga a exploração de novos blocos de petróleo com a desnacionalização do setor de petróleo e a privatização de refinarias e a venda da Petrobrás. Ainda que critique a privatização de empresas e serviços, não cita quais setores estão sendo privatizados e a atuação do governo Lula nisso.
Outro ponto ignorado é o processo de privatização das hidrovias, rios e rodovias - muitos deles lançados ou aprofundados recentemente, incluindo hidrovias nos rios Madeira, Tocantins e Tapajós, e novas propostas anunciadas durante a COP, como a nova hidrovia do rio Negro.
Assim, tudo o que envolve a política interna brasileira - ações diretas do governo nos territórios - é deixado de lado, como se o país estivesse apenas sob ataque externo. Não há nenhuma referência à atuação do governo Lula e seus ministros como agente da burguesia nacional e internacional. Também não são mencionados os fundos verdes, como o fundo Amazônia, que funciona como uma forma de “licença” para que países imperialistas mantenham suas práticas de exploração.
No campo agrário, o documento limita-se a defender a Reforma Agrária, sem reconhecer que, nos moldes institucionais existentes, ela não é capaz de enfrentar a crise climática. A simples destinação de terras improdutivas não altera a estrutura fundiária brasileira. Nesse sentido, é necessário ir além: nacionalizar a terra e todos os minerais estratégicos, incluindo as terras raras essenciais para a transição energética. Esses recursos, cobiçados e hoje explorados por diversos países imperialistas, devem ser protegidos do processo de espoliação atualmente em curso.
Na questão agrária, a terra, segundo essa perspectiva, deve ser utilizada de forma coletiva; e isso implica expropriar não apenas áreas improdutivas, mas também as terras produtivas concentradas pelo latifúndio - onde menos de 1% dos módulos fiscais concentram quase metade das terras agricultáveis do país.
Por fim, no discurso de encerramento da Cúpula, a ministra Marina Silva leu uma mensagem do presidente Lula que classificou a COP 30 como a “COP da verdade”. Contudo, os compromissos anunciados foram interpretados por muitos militantes como destoantes das movimentações e dos resultados concretos esperados para a conferência, aprofundando a percepção de um descompasso entre a retórica oficial e as demandas reais das bases.
Na carta final ficou claro que apesar da ampla programação distribuída em seis eixos temáticos no decorrer da Cúpula, a participação efetiva de organizações populares foi limitada por mecanismos de controle político, falta de transparência e improvisação organizativa, o que reforçou a influência de grupos alinhados ao financiamento internacional.
A plenária final refletiu essas contradições: intervenções de movimentos menores foram reduzidas, e a elaboração da carta final ocorreu de forma pouco aberta. Na audiência pública, representantes da Cúpula apresentaram o documento, sem espaço para falas de outras organizações.

Plenária final do terceiro dia da Cúpula dos Povos. Foto: Jornal O Futuro.
Resistência indígena
Em paralelo à Cúpula, o movimento indígena do Baixo Tapajós protagonizou as maiores denúncias às contradições do evento. Já na abertura, em 10 de novembro, estes ocuparam em marcha a Blue Zone (área onde só credenciados oficiais e a mídia podem transitar) fazendo com que o Estado convocasse a Guarda Nacional para realizar a segurança do evento nos dias seguintes. No dia 14, o movimento protestou em frente a entrada oficial com falas que denunciavam a farsa lobista da COP, os inúmeros projetos de infraestrutura e mineração realizados em territórios indígenas, além da Ferrogrão e a privatização do Rio Tapajós. Tal manifestação fez com que a Organização das Nações Unidas (ONU) enviasse uma carta ao governo brasileiro exigindo mais segurança na COP 30.
Auricélia Arapium, liderança do povo Arapium do Baixo Tapajós, concedeu uma entrevista contundente para O Futuro, expondo as contradições da COP, falando do governo de Helder Barbalho, dos ataques aos povos indígenas e as tensões profundas no movimento indígena, além do papel do governo Lula nesses conflitos. Ela foi direta ao apontar o governo estadual como um agente de divisão entre os povos originários: “O governo tem colocado parentes contra parentes; ele usa essa tática há muito tempo”, declarou Auricélia.
A liderança detalhou que a estratégia governamental ficou mais evidente após a ocupação da SEDUC-PA, quando “o governo buscou isolar lideranças combativas e enquadrar setores autônomos do movimento como ‘vilões’, enquanto a verdadeira violência segue sendo cometida pelos próprios agentes estatais e pelos interesses econômicos que o Estado representa”, denunciou.
Apesar das tentativas de fragmentação, Auricélia expressou forte confiança na capacidade de resistência e coesão do movimento indígena. Ela enfatiza que a unificação não significa homogeneização, mas o fortalecimento da luta coletiva respeitando as diferentes formas de organização: “Eu acredito muito na unificação do movimento indígena… nós fazemos da nossa forma porque temos autonomia para fazer da nossa forma”, afirmou.
Além do cenário, também pontuou as questões nacionais do Movimento indígena e o governo Lula. A liderança reconheceu que, após diálogos com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), houve um ajuste de posições e um reconhecimento da pauta do Baixo Tapajós. No entanto, ela observa que um tensionamento ideológico persiste, alimentado pelo medo e pela pressão política:
“Muitos discordam silenciosamente dos encaminhamentos oficiais por receio ou pressão política”, observou, reforçando que este cenário é alimentado pelas instâncias governamentais.
Para Auricélia, a força do movimento indígena reside em sua diversidade e ação política direta. Ela descreveu um efeito cascata de empoderamento que caracteriza a luta atual: “Isso aqui é protagonismo indígena… a gente inicia uma manifestação, e outros vêm depois, porque um encoraja o outro. É levante de voz”, reafirmou.

Marcha dos Povos Pelo Clima, no dia 15 de novembro, em Belém. Foto: Jornal O Futuro.
Marcha dos povos pelo Clima
Um dia antes da entrega da Carta, foi realizada a Marcha dos Povos pelo Clima no dia 15 de novembro, que reuniu mais de 70.000 pessoas nas ruas de Belém, configurando-se como um marco das lutas populares durante a COP. A presença massiva dos povos originários, bem organizados, com cantos, pinturas, faixas e lideranças à frente, revelou que as lutas indígenas são vitais para qualquer projeto sério de enfrentamento à crise climática.
O PCBR e a UJC concentraram-se com outras organizações no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, às 7h da manhã, e marcharam em bloco unificado, denunciando o papel do capitalismo na destruição dos territórios e na produção da catástrofe ambiental.