Linguagem neutra vira bode expiatório em novo ataque à população LGBTI+
A Política Nacional de Linguagem Simples foi transformada em parte de uma campanha reacionária, composta tanto por nomes da extrema direita quanto do governo e do campo "progressista".

Militantes do PCBR no Bloco Comunista da Parada LGBTI+ de Belém. Foto: Jornal O Futuro.
Por Daimar Stein
No dia 14 de novembro foi aprovada a Lei 15.263/2025, que institui a Política Nacional de Linguagem Simples (PNLS) nos órgãos e entidades da administração pública. A medida, que surgiu a partir do Projeto de Lei 6.256/2019, da deputada Erika Kokay (PT), e de início era algo amplamente positivo para a população, foi transformada em parte de uma campanha reacionária contra a população LGBTI+ composta tanto por nomes da extrema direita quanto do governo e do campo "progressista", que tem usado a linguagem neutra como bode expiatório.
"Linguagem simples", de acordo com o texto da PNLS, é o conjunto de técnicas usadas para a transmissão clara de informações. O objetivo principal de seu uso é permitir que o cidadão encontre, compreenda e utilize facilmente as informações divulgadas pelos órgãos públicos. A política lista 18 técnicas que devem ser usadas na comunicação oficial desses órgãos:
- usar frases curtas e em ordem direta;
- preferir palavras comuns, de fácil compreensão;
- evitar palavras estrangeiras;
- usar listas, tabelas e recursos gráficos;
- evitar frases intercaladas;
- evitar palavras desnecessárias ou imprecisas;
- usar linguagem acessível à pessoa com deficiência;
- quando a mensagem for dirigida a comunidades indígenas, o texto deve ser publicado em português e também na língua dos destinatários;
- não usar novas formas de flexão de gênero e de número;
- evitar redundâncias e palavras desnecessárias.
Essas medidas são extremamente positivas, simplificar a linguagem oficial de governo permitirá que uma parcela maior da população entenda o que está de fato sendo feito na política institucional e o acesso à informação em suas línguas-mãe é essencial para uma comunicação clara com os povos indígenas do nosso país. No entanto, durante a discussão na Câmara dos Deputados, antes da aprovação do projeto, foi adicionada, dentre outras mudanças, uma emenda pelo deputado Junio Amaral (PL), mais precisamente o Inciso XI do artigo 5º da PNLS:
Não usar novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas, ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) e ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, promulgado pelo Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.
Com a aprovação do projeto e a sanção sem vetos pelo governo Lula, fica definido que a redação de documentos oficiais dirigidos ao cidadão não pode usar novas formas de flexão de gênero e de número, incluindo formas de linguagem neutras, que, apesar de não fazerem parte das normas oficiais da língua portuguesa, vêm sendo utilizadas até mesmo por figuras do próprio governo, como forma de se dirigir a pessoas não binárias, que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou com o gênero feminino. Para essa parcela da população, o uso dessa flexão de gênero é importante por incluir uma forma de tratamento que não reduz sua identidade de gênero no binarismo masculino-feminino que a norma culta da língua portuguesa atual possui.
A medida é parte de uma campanha reacionária composta pela extrema direita e validada tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pela Academia Brasileira de Letras, que escolheu ignorar o aspecto vivo e mutável da língua em busca de um purismo da norma culta. Entre 2020 e 2025 partidos do "centrão" e da extrema direita apresentaram pelo menos 28 projetos que tentam proibir linguagem neutra em escolas, concursos, materiais didáticos, comunicações oficiais e documentos públicos. Só nos seis primeiros meses de 2023 foram apresentados dez projetos relacionados ao assunto.
A linguagem neutra não foi criada com o objetivo de ser um modelo imposto. Na verdade, sempre foi apenas mais uma forma de se comunicar de forma inclusiva, indo de encontro ao uso universal do pronome masculino como "neutro". Justamente por não ser um elemento que ataca os privilégios materiais da classe dominante, a mesma foi durante muito tempo um tema muito discutido no campo "progressista" e liberal, mas, na medida que a onda reacionária cresce, que vê nesse desafio do "masculino universal" uma afronta às definições e papeis de gênero criados dentro dessa sociedade patriarcal, e a linguagem neutra se torna mais impopular, está cada vez mais sendo abandonada por mais pessoas dentro desse mesmo campo, que agora se juntam a essa onda.
Até mesmo figuras mais à esquerda dentro do campo governista celebraram a decisão, como foi o caso do jornalista Breno Altman, que parabenizou o governo Lula pelos ataques ao suposto uso da linguagem neutra, tratando o mesmo como uma "afronta à língua portuguesa". Enquanto isso, a própria Érika Kokay foi às redes após a aprovação da Lei para denunciar a inclusão do Inciso XI, por desvirtuar a discussão e distorcer sua proposta. Com a aprovação da Lei sem nenhum veto, o governo Lula se une aos conservadores e usa da luta por acessibilidade para atacar em mais uma frente os direitos de outra parcela vulnerável da população em busca de um suposto aumento de popularidade entre a parcela conservadora da população.
O uso da linguagem neutra é vista como uma medida "impopular" precisamente por conta de suas origens, vinda de dentro da comunidade LGBTI+, como uma forma de incluir uma parcela da comunidade que ainda é invisibilizada, sendo um bode expiatório perfeito para o reacionarismo até mesmo de figuras que se dizem "de esquerda" e de pessoas LGBTI+ que não são diretamente afetadas pelo seu uso ou falta dele. Justamente por ser uma medida que afeta diretamente apenas em torno de 2% da população, e, ainda por cima, uma parcela sócio-político-economicamente vulnerável dessa população, é transformada no senso comum em uma questão "irrelevante" e o ataque contra ela é transformado em "aceitável", abrindo as portas para ataques cada vez maiores contra parcelas cada vez maiores da comunidade.
Ao mesmo tempo em que o pronome neutro é o alvo da vez e o "todes" é ridicularizado pela extrema direita, espaços seguros para pessoas LGBTI+ são atacados sob discursos reacionários de "devastação moral", o uso de banheiros para pessoas trans é cada vez mais restrito, e o Conselho Federal de Medicina ataca o acesso à terapia hormonal para pessoas trans. Somente em 2024, pouco menos de 300 pessoas LGBTI+ morreram de forma violenta, um aumento de 13,2% em comparação à 2023. O acesso ao mercado de trabalho continua extremamente restrito, com pessoas trans ocupando apenas 0,38% dos postos de trabalho no país, e mais de 90% das mulheres trans já tendo no trabalho sexual a sua única opção de subsistência em algum momento de suas vidas.
Não podemos nos enganar e acreditar que o uso ou não da linguagem neutra por si só mudará as estatísticas de LGBTIfobia e fará do Brasil um paraíso para pessoas trans e não-binárias, mas também não podemos nos enganar e acreditar que validar qualquer ataque à população LGBTI+, por menor que possa parecer de imediato, não abre o caminho para a onda reacionária que se expande a passos largos no Brasil. Ao mesmo tempo em que certos setores autoproclamados "de esquerda" reduzem toda e qualquer luta contra opressões a mero "identitarismo", não podemos cair nesse reducionismo e sim pautar essas lutas dentro de um programa de classe.
A extrema-direita não vai parar no "todes", sempre existirá um próximo bode expiatório contra a população LGBTI+, até o momento em que sua perseguição se tornar escancarada e parte ativa da política de estado, como já é feito em diversos estados dos EUA, mesmo anos antes do atual governo fascista de Donald Trump.