Ação judicial tenta acabar com festas LGBTI+ no centro de Brasília sob acusações de “devastação moral”
O governador Ibaneis Rocha (MDB-DF), que já acena para o Senado em 2026, é um dos ‘donos’ de Brasília com diversos imóveis na região, e é um dos agentes ativos dessa política segregacionista e reacionária que cresce no DF.

Reprodução/Foto: @shakeitbsb.
Por Mateus Filgueira
Nas vésperas do mês do orgulho LGBT, a Prefeitura do Conic (Prefeitura do Setor de Diversões Sul, Brasília-DF) entra com ação na justiça reivindicando o fechamento de festas do Birosca – espaço tradicional de Brasília – sob alegações lgbtfóbicas e de “depravação” e “devastação moral”.
O Setor de Diversões Sul (SDS) é um complexo de 14 prédios na Asa Sul (Brasília), localizado entre a estação de metrô Galeria e a Plataforma Superior da Rodoviária do Plano Piloto, no coração da capital federal. Projetado por Lúcio Costa em 1957, foi somente uma década depois, com subsídio federal, que o primeiro prédio do complexo – Edifício Conic – foi inaugurado, marcando o lançamento do SDS, seguido pela inauguração do Cine Atlântida e dos Edifícios Venâncio II ao VI.

Construção no Conic em 1967. Foto: Arquivo Público do DF.
Além dos prédios, dentre as áreas públicas do Conic destaca-se o Calçadão, a Praça Zumbi dos Palmares, a Praça do Chapéu, o Largo do Acropol, a Faculdade de Artes e o Teatro Dulcina (primeira instituição de ensino a licenciar bacharéis em artes cênicas, plásticas e visuais no país), a Biblioteca Salomão Malina e o Quiosque Cultural. O complexo é uma cidade própria. Entres os edifícios, corredores, becos, vielas, praças e galerias tornam o Conic irreverente e caótico. Projetado no ponto central da capital federal, pensado a ser um espaço sofisticado e cosmopolita, de frente a Esplanada dos Ministérios, sua transgressividade está na sua insolência em não respeitar a tradicional organização setorizada de Brasília.
A boemia brasiliense transformou o complexo em ambientes múltiplos que representavam a igual multiplicidade dos moradores do DF, vindos de todos os cantos do Brasil. De cafés, casas de chás, teatros e bares a cinemas pornô, bordeis e eventos de rock e punk, o Setor de Diversões Sul foi – e continua sendo! – um polo cultural e artístico no DF que conseguiu sobreviver à repressão da ditadura empresarial-militar; principalmente com o movimento Jegue Elétrico que atraiu diversos artistas, bandas e músicos independentes de várias partes do Brasil e fez o Conic a vanguarda cultural brasileira, na época, o Setor contava com dez livrarias, oito cinemas, seis boates, cinco botequins e duas saunas.

Buraco do Tatu e Conic ao fundo em 1982. Reprodução/Foto: Histórias de Brasília (Facebook).
Nos anos 70 foi inaugurada a primeira boate gay do DF, a New Aquarius que, em meio a epidemia do HIV/AIDS lutou contra os estigmas e preconceitos das pessoas LGBT no DF. No processo de redemocratização, o Conic recebeu a sede de diversos partidos políticos recém-fundados e/ou que puderam sair da ilegalidade. Em 1990 abrigou o famoso Cine Pornô e, muito antes de receber o nome Porão do Rock, o subsolo do Conic abrigou o festival que foi casa de bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e tantos outros.
O arquiteto Marcelo Teixeira postou em suas redes sociais os vídeos “Sociologia Urbana: as transformações do CONIC” e “Higienização Social - CONIC” onde mostra os vestígios da cena ‘submundana’ de Brasília dos anos 70-90. Em um dos vídeos, Marcelo aponta: “Arquitetos, artistas, estudantes, punks, poetas, todos passavam por ali. Era um espaço de convivência e de expressão, com suas luzes, bares, sons e histórias. Hoje, o cenário é outro. O que antes era vida, virou vazio. ‘higienização social’ afastou tudo que dava identidade ao lugar. E Conic, símbolo de uma Brasília plural, foi sendo apagado aos poucos”. Nos comentários dos vídeos é latente a importância do SDS para a construção da identidade brasiliense e do imaginário popular dos moradores do DF.

Cine Ritz, popular cinema pornô do Conic, em 1980. Reprodução/Foto: Jornal de Brasília.
A cena clandestina que se desenvolveu na região, com crescentes pontos de tráficos, prostituição e aumento da população em situação de rua tanto no Conic, como no Setor Hoteleiro e na Rodoviária transformaram o SDS em outra realidade. Como causa e consequência desse processo, hoje, o Setor de Diversões Sul não possui mais cinemas, suas galerias do subsolo foram fechadas e mais de 10 igrejas foram abertas. O comércio de roupas, acessórios e cosméticos, clínicas, dentistas e bancos e lotéricas, se desenvolveram junto com o que restou de lojas de instrumentos musicais, de discos, lojas de skate, de cultura urbana, lojas de eletrônicos, salões de beleza, trancistas e restaurantes.
Apesar de já haver produções culturais no local desde 2015, em 2019 foi inaugurado o Birosca do Conic que ousou resgatar a cena underground e minoritária do Conic. O Birosca é responsável por festas, festivais, feiras de moda, de vinil, de brechós e artesanato, rodas de samba, debates político-culturais e muito mais. Por ser perto da Rodoviária do Plano Piloto, o Birosca do Conic recebe público de todo o DF e os eventos públicos gratuitos ou com liberação de cortesias, e com lista de gratuidade para pessoas trans e não binárias, garantem a democratização e pluralidade do espaço.

Área interna do Conic/Fachada Birosca. Reprodução/Foto: @technogamia.
No dia 8 de maio, o produtor e empresário Igor Albuquerque, postou nas redes sociais do Birosca um vídeo em que denuncia a articulação da Prefeitura do Conic - formada pelos síndicos dos prédios - de uma ação contra o Governo do Distrito Federal (GDF) para proibir festas nas áreas comuns (públicas) do SDS.
A ação que tramita no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) requer a proibição de expedição de alvarás para festas no local, maioria organizada pelo Birosca do Conic, afirmando que as festas seriam “degradadas [..] com ruídos infernais e devastação moral, com corpos praticamente nus, com contato ostensivo com pessoas do mesmo sexo”, além disso, segundo os síndicos, a festa seria frequentada por “pessoas sem valores éticos que assustam os cidadãos honrados”, o espaço dominado por igreja também se manifestou na ação alegando que os eventos eram como as festas de “Gomorra e Sodoma” e “exemplos bíblicos da figura de satanás”.
Como o Setor de Diversões Sul não está perto de áreas residenciais, e justamente por ter sido fundado para eventos, festas, clubes, boates e etc recebe este nome, as únicas assinaturas foram de 12 pessoas. Em resposta, a associação “Estruturação - Grupo LGBT+ de Brasília” e o deputado distrital Fábio Félix (PSOL-DF) abriram representações contra a Prefeitura no Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) sobre homofobia e pagamento de indenização por danos coletivos a ser revertida em favor de campanhas públicas de combate à LGBTfobia no DF; o Birosca, também em resposta, levantou um abaixo-assinado em apoio a realização de festas e eventos no SDS.

Reprodução/Foto: @shakeitbsb.
Em matéria para o Jornal Metrópoles, Igor apontou que “o Conic sempre abrigou festas. Porém, antes de o Birosca chegar ao local, esses eventos só eram realizados porque os organizadores pagavam taxas para a prefeitura [...] A gente chegou aqui com muita noção de alvará de área pública e começou a fazer corretamente, buscando obter autorização legal para ocupar esses lugares. Isso desagradou muito a prefeitura que, desde então, há 10 anos, tem perseguido a gente das mais diversas formas”. Como retaliação, a Prefeitura dessa vez optou por um assédio jurídico e utiliza de narrativas LGBTfóbicas para tentar criminalizar eventos culturais LGBTs, pretos e periféricos.
Essas narrativas não nascem do vácuo, o DF vem passando cada vez mais por um processo de gentrificação e apagamento cultural. O GDF vem, cada vez mais, realizando eventos afastados das cidades satélites e periferias, o Estádio Mané Garrincha, em 2020, foi entregue totalmente a iniciativa privada pelos próximos 35 anos, e seu nome vendido por R$ 7,5 milhões passando a se chamar Arena BRB [Banco de Brasília, sociedade de economia mista], o que fez com que shows no estádio sejam absurdamente caros e as festas públicas com cada vez menos a “cara” do brasiliense, como denuncia matéria recente do JOF que trouxe o deslocamento d’O Maior São João do Cerrado para mais de 30 km da periferia que o fundou.
A criminalização das festas do Birosca possuem dois vieses; o primeiro é engordar o bolso dos donos do complexo do Conic com eventos pagos e especulação imobiliária do setor, o segundo é sintoma do reacionarismo que persegue e segrega corpos LGBT, negros e periféricos com o apoio institucional do GDF. A criminalização de eventos no SDS é parte de um projeto populista que será emblemático para as eleições 2026 no DF, grupos reacionários que utilizam espantalhos fundamentados por questões morais para perseguir a periferia ao invés de um debate sério que seja sobre o real bem estar da classe trabalhadora do Distrito Federal e entorno.
O governador Ibaneis Rocha (MDB-DF), que já acena para o Senado em 2026, é um dos ‘donos’ de Brasília com diversos imóveis na região, e é um dos agentes ativos dessa política segregacionista e reacionária que cresce no DF. Não à toa, vende o Distrito Federal a propriedade privada, faz obras superfaturadas que não possuem retorno algum para a população, abandona a saúde e educação, persegue ambulantes da Rodoviária do Plano Piloto, manda atacar população indígena em área ao lado de bairro nobre e tenta fechar o Eixão do Lazer - rodovia fechada para eventos culturais e esportivos aos domingos desde 1991.