Conselho Federal de Medicina elege a população trans como seu alvo

Movimentos sociais e Entidades médicas responderam à Resolução 2.427/2025 do CFM, estabelecendo novas regras para o atendimento médico a pessoas transgêneros, com críticas e manifestações.

1 de Junho de 2025 às 15h00

Ato unificado em frente ao Conselho Federal de Medicina (CFM), no Distrito Federal, denuncia a medida transfóbica. Foto: Jornal O Futuro.

Em 8 de abril de 2025, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução n° 2.427/2025, estabelecendo novas regras para o atendimento médico a pessoas transgêneros, com foco no bloqueio puberal, na terapia hormonal e nas cirurgias de redesignação de gênero. A medida tem o objetivo de restringir o uso de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes, aumenta a idade mínima para cirurgias de redesignação de gênero para 21 anos e estabelece critérios mais rigorosos para a terapia hormonal cruzada.

Essa iniciativa, tratada pela imprensa médica conservadora como um “aperfeiçoamento”, foi recebida pelo movimento LGBTI+ com repúdio, gerando manifestações e atos em várias cidades brasileiras. Na metade do mês de abril, Hiran Gallo, presidente do CFM, afirmou que os médicos que não cumprirem com a resolução serão punidos com censura, suspensão e até cassação do registro. O cenário se agrava diante de admissões, por parte dos relatores da resolução, de que não há evidências robustas sobre os índices de arrependimento, que seria supostamente o maior motivo desta resolução.

A resposta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat) a mais esse ataque foi acionar o Supremo Tribunal Federal contra a resolução, argumentando que essa manobra do CFM é mais uma “guinada ideológica anti-trans do Conselho Federal de Medicina”. Não é a primeira vez que o CFM age por meio de decisões supostamente técnicas que estão, na realidade, baseada apenas em orientações ideológicas e de defesa de setores empresariais e conservadores da sociedade - como foi no caso da pandemia da Covid-19, quando o Conselho permitiu a prescrição dos tratamentos com cloroquina pelos médicos sem qualquer evidência científica.

Em nota sobre a resolução, a Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC) ressaltou grandes preocupações com relação às ações do CFM e ao conteúdo da resolução, que apresenta inconsistências frente às melhores e mais atuais evidências científicas, assim como atesta a ignorância do CFM acerca da diversidade de cuidados em saúde oferecidos por diferentes especialidades médicas e por diversas categorias profissionais. A nota ressaltou, também, que essa resolução foi publicada pelo CFM em um momento de letargia do Ministério da Saúde (MS), que atrasa a publicação do Programa de Atenção Especializada à Saúde de Pessoas Trans (PAES Pop Trans), abrindo um vácuo sobre o qual avançam os setores reacionários. Outro esforço da SBMFC foi ressaltar que existem publicações nacionais e internacionais que atestam que o acesso qualificado à Atenção Primária à Saúde (APS) tem potencial de melhorar os resultados e tratamentos em saúde, identificar agravos em tempo oportuno e reduzir as barreiras institucionais e simbólicas que historicamente excluem a população LGBTI+ do cuidado. Em outras palavras: é preciso ampliar, e não restringir o direito de acesso da população LGBTI+ à saúde pública.

Em posicionamento conjunto, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (ABEMSS). a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (SOGIA-BR) também manifestaram sua preocupação com a proibição do bloqueio puberal e da terapia hormonal em adolescentes, ressaltando que proibir o caminho não é a solução de melhoria do cuidado oferecido às pessoas transgênero.

Tendo como base as diversas manifestações dos movimentos populares e da própria comunidade médica contrárias e preocupadas com a resolução, torna-se evidente que a medida tem um viés exclusivamente ideológico. É a extrema-direita valendo-se de uma posição de poder para afirmar a sua “ideologia de gênero”, na qual a diversidade e a autodeterminação dos indivíduos não têm qualquer espaço. Nesse sentido, o ataque do CFM não pode se desvincular de uma tendência internacional. A extrema-direita vem atacando populações trans não apenas no Brasil, sendo emblemática a perseguição promovida no Reino Unido e, agora, nos Estados Unidos de Donald Trump.

Os pesquisadores Lucas Leite e Débora Prado trazem uma análise das políticas sistemáticas de perseguição a pessoas transgênero no artigo publicado no Observatório Político dos Estados Unidos, em que se ressalta que “os primeiros 100 dias do segundo mandato de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos foram marcados por uma agenda agressiva contra os direitos das pessoas transgênero. Por meio de uma série de ordens executivas [...] Muitas delas espelham propostas delineadas no controverso Project 2025 – um plano abrangente desenvolvido pela Heritage Foundation e por outras organizações conservadoras que visa a remodelar drasticamente o governo federal, segundo valores ultraconservadores”.

Dentre essas ordens executivas, pode-se destacar o reconhecimento federal de apenas dois gêneros, apenas dois sexos: masculino e feminino. Em tal ordem executiva se estabelece juridicamente que “‘sexo’ se refere à ‘classificação biológica imutável de um indivíduo como homem ou mulher’ e que os termos ‘mulheres’ e ‘homens’ devem ser entendidos estritamente em termos biológicos”, como afirmam Lucas Leite e Débora Prado.

Também foi proibida a participação de atletas transgênero nos esportes femininos a partir de uma ordem executiva intitulada “Mantendo Homens Fora dos Esportes Femininos”. A ordem, além de proibir que mulheres e meninas transgênero participem em competições esportivas, também nega fundos federais a escolas que permitam que atletas trans participem de categorias de acordo com a sua identidade de gênero.

Para além de proibir pessoas trans nos esportes, Trump também rescindiu a Ordem Executiva 14004 de Joe Biden. Mesmo com seu caráter de falso progressismo, o documento permitia o acesso de pessoas trans às Forças Armadas dos EUA. Para além desta rescisão, Trump assinou a Ordem Executiva “Priorizando a Excelência Militar e a Prontidão”, a qual estabelece que “as  Forças Armadas dos Estados Unidos têm uma missão clara: proteger o povo americano e nossa pátria como a força de combate mais letal e eficaz do mundo. O sucesso nessa missão existencial exige um foco singular no desenvolvimento do ethos guerreiro necessário, e a busca pela excelência militar não pode ser diluída para acomodar agendas políticas ou outras ideologias prejudiciais à coesão da unidade”. A leitura de Donald Trump é que pessoas transgênero não são capazes de “excelência militar”, o que se justifica no documento no trecho: “as Forças Armadas têm sido afligidas por ideologia radical de gênero para apaziguar ativistas despreocupados com os requisitos do serviço militar, como saúde física e mental, abnegação e coesão da unidade [...] a afirmação por um homem de que ele é uma mulher, e sua exigência de que outros honrem essa falsidade, não é consistente com a humildade e abnegação exigidas de um membro do serviço militar”.

As delimitações não se restringem ao esporte e às forças armadas. Em janeiro, logo após a posse, Trump assinou uma Ordem Executiva muito similar à Resolução n° 2.427/2025 do Conselho de Medicina brasileiro. A Ordem “Protegendo Crianças da Mutilação Química e Cirúrgica”, de 28 de janeiro, visa restringir o acesso a cuidados afirmativos para jovens menores de 19 anos. O texto estabelece que “profissionais médicos estão mutilando e esterilizando um número crescente de crianças impressionáveis sob a alegação radical e falsa de que adultos podem mudar o sexo de uma criança por meio de uma série de intervenções médicas irreversíveis”, de forma que é inegável a similaridade presente na redação da resolução brasileira do CFM.

As políticas anti-transgeneridade de Donald Trump - que são importadas para o Brasil - não consistem em uma exclusividade de seu segundo mandato. O Observatório Político dos Estados Unidos denunciou graves constatações a partir dos dados levantados pela Trans Legislation Tracker e ACLU, que rastreiam legislações que afetam as comunidades LGBTI+. Em 2023, haviam 65 documentos legais vigentes que buscavam limitar os direitos das populações transgêneras no Texas. Esse número subiu para 128 no ano de 2025, apenas nesse mesmo estado.

Como potência, mesmo que com sua hegemonia em declínio, é inegável que não só as tendências políticas dos EUA têm reflexos na política doméstica brasileira como é importante reconhecer que, com Donald Trump no executivo, a extrema-direita ganha uma maior dimensão para poder articular suas demandas.

É preciso compreender a conexão entre a ofensiva mundial da burguesia, rebaixando as condições de vida da classe trabalhadora, e a retirada de direitos dos grupos oprimidos, como a população trans. Só uma luta de classes unificada pode reverter esses retrocessos e avançar um projeto de sociedade baseado na diversidade e na dignidade de todos os seres humanos, independente de suas identidades de gênero, de raça e orientação sexual. No entanto, há ainda hoje uma baixíssima inserção da população trans no movimento sindical brasileiro, que ainda não incorporou plenamente as lutas de gênero e sexualidade em suas pautas. Esse é um tema sensível para a população LGBTI+, já que não existem instrumentos específicos para garantir os direitos da população LGBTI+ no mundo do trabalho, contribuindo para sua invisibilidade no interior do proletariado organizado. Ao mesmo tempo, a hegemonia liberal e a cooptação pela agenda empresarial ainda marcam fortemente o movimento LGBTI+ brasileiro. Mobilizar o movimento operário na luta contra os ataques do CFM e dos governos burgueses à população trans certamente permitirá avançar na superação dessas contradições, avançando na construção de uma aliança política revolucionária entre a classe trabalhadora brasileira (em toda sua diversidade de identidades) e as diversas camadas oprimidas do povo.