USP e especulação imobiliária reduzem legado estudantil a entulho em São Carlos (SP)

O histórico Colégio CAASO oferecia educação acessível à população de São Carlos (SP). Recentemente, a USP ignorou as demandas estudantis e assistiu passivamente à sua demolição para depois aprovar uma compra hipervalorizada do terreno.

13 de Agosto de 2025 às 21h00

Terreno do Colégio CAASO durante sua demolição, 2022. Foto: Ana Monteiro.

Por Eduardo Zago Braga

Quatro anos após assistir em silêncio à demolição do histórico Colégio CAASO, a Universidade de São Paulo (USP) anunciou a aprovação da compra de seu terreno vazio por R$ 13,9 milhões. O valor, quatro vezes maior do que a dívida que levou o espaço estudantil a leilão em 2021, não veio acompanhado de um projeto de resgate histórico ou diálogo com os estudantes. Pelo contrário, acendeu um alerta no movimento estudantil sobre os reais interesses por trás da compra: o que justifica um investimento tão alto em um terreno que a própria universidade se recusou a salvar?

A história do CAASO e seu colégio

A história do Colégio CAASO está intrinsecamente ligada à fundação do próprio campus da USP em São Carlos. O Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira (CAASO) foi criado em 22 de abril de 1953, apenas quatro dias após a aula inaugural da recém-criada Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, demonstrando desde o início sua organização e representação estudantil. A atuação do CAASO para a extensão comunitária não demorou a se manifestar: já em 1956, os estudantes organizaram um curso pré-vestibular ministrado voluntariamente nos próprios blocos didáticos do campus.

O projeto ganhou um alicerce físico e institucional em 1968, quando a Prefeitura Municipal de São Carlos doou ao CAASO um terreno de aproximadamente cinco mil metros quadrados, adjacente à Área 1 do campus. Foi nesse local que se ergueu o Colégio CAASO, consolidando uma iniciativa que ia muito além da preparação para exames.

O Colégio CAASO se destacou como uma iniciativa singular: uma escola mantida por uma entidade estudantil, sem fins lucrativos, com a missão de oferecer ensino de qualidade e acessível à população de São Carlos. Seu objetivo era democratizar o acesso à universidade, alcançando jovens que, de outra forma, enfrentavam as barreiras socioeconômicas do vestibular e eram segregados do lado de fora dos muros da universidade. O modelo do colégio beneficiava múltiplas partes: enquanto preparava estudantes da comunidade, servia como um campo de formação prática para os próprios alunos da USP, que atuavam como docentes, enriquecendo sua formação acadêmica. Ao longo das décadas, o colégio expandiu sua atuação, passando a oferecer Ensino Médio completo, cursos de idiomas e diversas atividades de extensão, demonstrando uma profunda conexão com as necessidades locais.

Apesar de sua notável atuação pedagógica e social, o colégio começou a enfrentar dificuldades financeiras críticas. Desde a década de 1980, o CAASO acumulou dívidas com a Fazenda Nacional e o INSS, vindas de processos judiciais, sem conseguir negociar um parcelamento viável. Em 2021, essa dívida histórica chegou a totalizar cerca R$ 3,3 milhões devidos à União. Apesar de campanhas e mobilizações estudantis que tentaram salvar a instituição e honrar seu legado de mais de 60 anos, o terreno foi a leilão judicial para quitar os débitos. O colégio encerrou suas atividades ao final de 2021 e, no ano seguinte, a empresa compradora pôs abaixo o prédio, reduzindo a escombros décadas de história e formação.

Terreno do Colégio CAASO durante sua demolição, 2022. Foto: Guilherme Ramos Costa Paixão.

A quem interessa demolir um colégio?

A hostilidade da burguesia contra os espaços de organização estudantil não é um fenômeno novo. A história do movimento estudantil brasileiro é marcada por episódios de repressão violenta, cujo exemplo mais simbólico é a destruição da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro. No dia do golpe militar de 1964, o primeiro ato da ditadura empresarial-militar foi metralhar, invadir e incendiar a sede da UNE. O objetivo era claro: desarticular, intimidar e silenciar uma das vanguardas da resistência política.

Incêndio na sede da UNE, 1964. Reprodução/Foto: Agência O Globo.

Em exemplos atuais ainda da USP, na capital paulista, o Espaço Verde, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), espaço fundamental para convivência e organização política dos estudantes, está sendo ameaçado pela USP, num projeto denunciado por abaixo-assinado dos estudantes da FFLCH. No próprio campus de São Carlos, o Centro de Convivência da Química também enfrenta um plano de demolição por parte da universidade, novamente sem um processo de diálogo transparente com os estudantes que utilizam o espaço.

A situação se torna ainda mais clara quando se observa um caso paralelo fora do contexto universitário, mas ainda em São Carlos: o Grêmio Recreativo Familiar Flor de Maio, um clube social e cultural negro fundado em 1928, enfrenta um destino semelhante ao do Colégio CAASO. Considerado um marco da resistência e da identidade da comunidade afrodescendente de São Carlos, o clube nasceu como uma resposta à segregação racial. Hoje, o Flor de Maio corre o risco de ter sua sede leiloada para pagar dívidas acumuladas.

Os meios podem ter sofrido uma mudança: a violência física e explícita da ditadura deu lugar à burocrática e econômica da “democracia” neoliberal. O incêndio foi substituído pela especulação imobiliária. No entanto, o objetivo dos patrões continua a ser destruir os espaços físicos onde a autonomia política ameaça qualquer hegemonia.

E este Estado que destrói espaços autônomos com a justificativa das dívidas é o mesmo Estado que, ao mesmo tempo, perdoa dívidas muito maiores, bilionárias, de grandes empresas. Qual o interesse então em cercear estudantes e trabalhadores? Este debate não é novo: para Florestan Fernandes, célebre sociólogo brasileiro, é notável como a burguesia brasileira, autoritária, teme qualquer auto-organização popular, visto que seria uma representação da desordem e do questionamento à classe dominante.

Com faixa do CAASO ao fundo, Florestan Fernandes participa de manifestação em São Paulo, 1988. Reprodução/Foto: Acervo da família.

Após assistir passivamente às mobilizações em defesa da continuidade do Colégio CAASO, a USP aprovou em 2025 a compra do terreno do prédio demolido, por um valor de R$ 13,9 milhões, embora ainda restem algumas instâncias para efetuar a compra. Este valor é quatro vezes mais caro do que aquele pelo qual foi vendido para pagar as dívidas dos estudantes: isto é, não faltou dinheiro à USP para atender as demandas estudantis; faltou ser uma prioridade para a universidade — em vez de um resgate ao histórico projeto popular, a USP preferiu alimentar a especulação imobiliária de São Carlos.

Enquanto o governo federal não investe em pesquisa, nos governos estaduais, como o de Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo e de Romeu Zema (NOVO) em Minas Gerais, também deixam as universidades estaduais em situações precárias, como em casos na UNESP e na UEMG. Ao mesmo tempo em que universidades como a USP ignoram demandas dos estudantes por contratação de funcionários, políticas de permanência, reestatização de serviços e autonomia espaços estudantis, passos necessários para oferecer uma educação de qualidade à população, a universidade gasta milhões num terreno supervalorizado onde viu sucumbir um projeto de inclusão e extensão de seus alunos. Inclusive, a universidade ainda ignora muitas das demandas estudantis colocadas na paralisação do campus de 11 de outubro de 2023, conduzida pelo CAASO, no contexto da greve geral da USP na época.

Seja no âmbito federal, com o Novo Teto de Gastos, ou por dentro de cada universidade do país, o interesse nunca é de investimento em demandas dos estudantes e dos trabalhadores, mas sim do lucro da burguesia nacional e estrangeira.

É assim que a USP planeja um projeto que não dialoga com os estudantes. Enquanto esboça um “Complexo de Inclusão e Pertencimento”, ela não cogita possibilitar um auxílio de permanência aos seus estudantes compatível com o custo de vida de suas cidades. A Reitoria se apropria da linguagem dos movimentos sociais para nomear um projeto que nasceu da exclusão do diálogo com os estudantes e que representa a destruição de um espaço que, este sim, gerava pertencimento real.

Ilustração do plano de expansão da USP em São Carlos, 2025. Reprodução: Portal USP São Carlos.

CAASO segue em luta

Desde outubro de 2022, o CAASO tem em sua diretoria sucessivas gestões CAASO Popular, compostas por militantes da UJC (União da Juventude Comunista), juventude do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), e estudantes independentes. Desde então, o CAASO tem pautado o movimento estudantil como um braço auxiliar da classe trabalhadora, em rumo à reconstrução da centralidade histórica da entidade na mobilização estudantil. V. Pires, diretor da atual gestão do CAASO e colaborador do Centro de Estudos da Física de São Carlos, relata parte dessas contradições da USP:

“Esse é mais um caso típico da USP e sua forma controversa de lidar com tudo aquilo que deveria ser de escolha do estudante. Não é de hoje que a USP coloca a opinião — ou sequer a conscientização — de seus alunos como última opção. Agora, essa postura atinge um espaço que não era apenas valioso para os estudantes, mas também para a população de São Carlos.

Se queremos um novo restaurante universitário devido à superlotação e infraestrutura precária do atual, se buscamos resgatar a história do Colégio CAASO por meio de um colégio de aplicação com gestão democrática, ou mesmo se propomos a construção de novos blocos de alojamento, é fundamental que essas decisões partam da comunidade.

O que reivindicamos é simples: nosso espaço político e social precisa ser respeitado. Mesmo que ainda não haja uma proposta de substituição definida para o colégio — e considerando que a USP não supre diversas demandas estudantis —, é imprescindível que tenhamos a liberdade e o respeito de decidir coletivamente o que será feito em um local historicamente significativo para todos nós.”

Inclusive, dessas propostas colocadas pelo CAASO, a reformulação do colégio enquanto escola de aplicação, já tem precedentes dentro da própria USP, o que possibilitaria a continuidade do projeto enquanto algo essencial para a inclusão da população da cidade na universidade, e ainda de maneira gratuita.

O ponto que intriga os estudantes não é apenas o preço pago pela USP, mas sua passividade em 2021. A universidade, uma instituição com orçamento bilionário, assistiu um ativo estratégico, anexo ao seu campus e com imenso valor histórico, ser leiloado por uma fração do que mais tarde viria a pagar. A quantia de R$ 3,3 milhões que levou o colégio à falência representa uma soma irrisória para o orçamento da USP. A universidade poderia ter intervindo, quitado a dívida e incorporado o terreno ao seu patrimônio por um custo quatro vezes menor, preservando o projeto educacional no processo.

Para entender a dimensão dessa escolha, é preciso colocar o gasto de R$ 13,9 milhões em perspectiva comparativa: o orçamento total da USP para 2025 é de R$ 9,15 bilhões. Desse montante, o valor destinado à Política de Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), que inclui auxílios, moradia, restaurantes e outras ações, é de R$ 426 milhões, dos quais R$ 207 milhões são para auxílios e bolsas pagos diretamente aos alunos.

O custo de aquisição do terreno do antigo Colégio CAASO equivale a aproximadamente 3,2% de todo o orçamento anual de permanência da universidade. O cálculo revela o impacto dessa decisão: o valor de R$ 13,9 milhões poderia ter financiado integralmente 1.364 estudantes com o auxílio-permanência de R$ 850 mensais durante um ano inteiro, ou mesmo ter mantido, com sobras consideráveis, o colégio intacto. A universidade priorizou um investimento de capital num ativo imobiliário, alimentando sua especulação, em detrimento do atendimento das necessidades de sobrevivência de mais de mil de seus estudantes mais vulneráveis. Tal fato esvazia o discurso de "inclusão" e o dissocia da realidade cotidiana vivenciada por seus estudantes.

Para decidir os rumos de qual será o posicionamento do movimento estudantil diante da história do Colégio CAASO e das contradições do projeto da USP para o seu terreno, os estudantes se reunirão em assembleia no dia 21/08 (quinta-feira), no espaço do Palquinho do CAASO.