Governo Lula: da crise à bravata nacionalista

Fica escancarado que muitas promessas feitas na campanha eleitoral não serão cumpridas, como a reestatização da Eletrobrás, assunto levantado ainda no início do mandato, mas rapidamente esquecido – apesar da atual agitação pela “soberania nacional”.

23 de Julho de 2025 às 21h00

Reprodução/Foto: Agência Brasil.

A guerra comercial iniciada pelo governo estadunidense de Donald Trump constitui fato relevante que circulou o mundo inteiro. Em carta aberta ao presidente Lula, o governo de Washington afirma que “a partir de 1º de agosto de 2025, cobraremos do Brasil uma tarifa de 50% sobre todas e quaisquer exportações brasileiras enviadas para os Estados Unidos [...]”. No documento, Trump destaca que uma das razões para a imposição das tarifas é a verdadeira “caça às bruxas” contra o ex-presidente Bolsonaro, além de um suposto déficit comercial que os Estados Unidos tem contra o Brasil e ainda promete novas ameaças: “Se por qualquer razão o senhor decidir aumentar suas tarifas, qualquer que seja o valor escolhido, ele será adicionado aos 50% que cobraremos”.

Em resposta, o presidente Lula publicou, também, uma carta aberta, ressaltando que, além do Brasil ser um país soberano, “o processo judicial contra aqueles que planejaram o golpe de estado é de competência apenas da Justiça Brasileira e, portanto, não está sujeito a nenhum tipo de ingerência ou ameaça que fira a independência das instituições nacionais.” O presidente brasileiro destacou que não existe déficit comercial, pelo contrário, há um superávit de US$ 410 bilhões nos últimos 15 anos.

Entretanto, a resposta do presidente Lula será apenas uma bravata? Empresas multibilionárias norte-americanas operam livremente em território brasileiro, inclusive recebendo diversos benefícios e isenções fiscais, como a Stellantis, uma das maiores no mundo na produção de automóveis. Os investimentos de empresários estadunidenses seguem como principal fluxo de capitais externos ao Brasil, dominando postos chaves da economia brasileira, como a indústria de petróleo e químicos. Grandes fundos de investimentos que operam não apenas com bilhões, mas sim trilhões de dólares, são proprietárias de empresas de distribuição de energia e chegam até a cobrar pedágio das rodovias interestaduais que centenas de brasileiros utilizam. Onde está essa soberania?

Para compreendermos os possíveis rumos do governo, é preciso que retomemos o cenário imediatamente anterior, no qual o petismo acumulou derrotas históricas no Congresso Nacional, vendo sua ampla coalizão governista derreter.

As derrotas na Câmara e no Senado

A publicação do decreto que prevê diversos aumentos no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), em 22 de maio de 2025, deflagrou uma crise dentro da própria base parlamentar que compõe o governo Lula. No esforço de cumprir as regras fiscais estabelecidas no Novo Teto de Gastos, o decreto previa a elevação de impostos, com a estimativa de arrecadar por volta de R$ 20,5 bilhões em 2025 e mais R$ 41 bilhões em 2026. Ressalta-se que a meta fiscal – imposta pelo próprio governo federal – exige um programa de austeridade cada vez mais agressivo nas contas públicas, tendo em vista que neste ano espera-se um resultado primário de 0% do PIB enquanto para o próximo ano a meta é de 0,25% do PIB.

O decreto do IOF era tímido e deixava dormente grandes dilemas da soberania nacional brasileira, pontos sensíveis como remessas de dividendos para investidores estrangeiros (obrigando as multinacionais a internalizar seu capital no país) ou transferências entre grandes bancos continuarão isentas do imposto. As medidas prometiam ser “justas”, com aumento igual de tributação tanto para trabalhadores e pequenos produtores como para grandes empresários, elevando a carga tributária tanto para empresas que adotam o Simples Nacional, microempreendedor individual (MEI), como enormes conglomerados bilionários. Assim, para o governo federal, supostamente todos devem pagar as contas do ajuste fiscal, inclusive os mais pobres.

A própria base governista no Congresso Nacional reagiu mal ao decreto. Em votação histórica, pela primeira vez desde 1992, o parlamento derrubou um decreto presidencial. Na Câmara dos Deputados, a votação contou com ampla maioria, 383 a favor de revogar o decreto e apenas 98 contra. Entretanto, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), negou qualquer traição ao governo federal na derrubada do decreto. O parlamentar ainda destacou que qualquer discurso de “ricos contra pobres”, advindo do Palácio do Planalto, terá um efeito negativo sobre a economia: “quem alimenta o nós contra eles acaba governando contra todos [...]. A polarização política do Brasil tem cansado muita gente e, agora, querem criar a polarização social.”

As palavras do parlamentar escondem, na verdade, o interesse dos mais ricos no país, estes pagam proporcionalmente menos impostos que a grande maioria da população, em especial os trabalhadores mais precarizados. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o topo da pirâmide deveria pagar 14% no imposto de renda para igualar à classe média (sem considerar, ainda, para igualar com os mais pobres). Ou seja, Motta, com um discurso “contra a polarização”, tem como objetivo esconder essa verdadeira injustiça que é o sistema tributário brasileiro, altamente regressivo. No Brasil, quanto mais pobre, mais imposto é pago.

Por fim, o caso foi parar no STF, por iniciativa governista, com o ministro Alexandre de Moraes validando as propostas de aumento das alíquotas do IOF, em decisão do dia 16 de julho. A decisão anulou apenas a parte do decreto de Lula que versava sobre o aumento da alíquota para o chamado “risco sacado”, modalidade que antecipa o recebimento para fornecedores em transações comerciais, mantendo prazos alongados para pagamento por parte do comprador.

PT vota para derrubar vetos do governo federal

Em outra tramitação no Congresso, o governo Lula sancionou um novo marco regulatório de energia elétrica offshore e renovável em 10 de janeiro de 2025, entretanto, vetou diversos “jabutis” na legislação (artigos inclusos que não dizem respeito à proposta original da lei), entre estes, estavam medidas que obrigavam a contratação de termelétricas até 2050, favorecendo o interesse de empresários neste setor, além de estender subsídios ao setor privado que opera em pequenas usinas hidrelétricas e de biomassa. Estima-se que as medidas vetadas aumentarão os custos da conta de luz para milhões de brasileiros. Entretanto, durante uma votação na Câmara, os próprios deputados do partido do presidente, 63 dos 68 deputados da bancada petista, foram favoráveis à derrubar o veto do Executivo.

O senador Fabiano Contarato (PT-ES) explica a confusão: “O veto foi derrubado em acordo com o governo, que orientou dessa forma para impedir a derrubada de outros vetos. Por esse motivo, os parlamentares da bancada, inclusive os líderes do governo nas duas Casas, votaram pela derrubada desse ponto específico, já com o compromisso de edição de uma medida que evite o aumento na conta de energia”.

Ou seja, a estratégia do governo federal para impedir que sua base governista no Congresso, que inclui partidos tradicionais do centrão (como o PSD, que ocupa atualmente o Ministério de Minas e Energia, sob o comando de Alexandre Silveira), derreta ainda mais é abrir espaço para mais concessões para os grandes empresários e rebaixar os benefícios para os trabalhadores. Esse quadro fica evidente com o comentário do Contarato, o governo federal aceita apenas a futura promessa incerta de um compromisso para evitar aumento na conta de energia, ao invés do fato consumado e certeiro já incluso nos vetos presidenciais.

A desorganização é tão ampla do governo federal que, segundo o ex-presidente da Petrobrás, Jeal Paul Prates, o ministro Alexandre Silveira e o ministro da Casa Civil, Rui Costa, manobraram nos bastidores em favor da inclusão dos jabutis na lei.

Por trás desse recuo todo do governo federal, fica escancarado que muitas promessas de campanha nas eleições não serão cumpridas, como a reestatização da Eletrobrás. Tal assunto foi levantado no início do mandato, mas já rapidamente esquecido. Ou seja, ao invés de promover um debate nacional junto com os trabalhadores sobre um assunto tão essencial à soberania brasileira (alardeada aos quatro ventos recentemente contra a política tarifária do governo estadunidense), o governo Lula decide abandonar essa bandeira com o objetivo de não “desagradar” a própria base do governo no Congresso.