Indígenas Tupinambá lutam pela demarcação de seu território no Sul da Bahia
Em resistência contra os magnatas do turismo e do agronegócio, a busca de mais de 20 anos pela demarcação da TI Tupinambá de Olivença depende agora apenas da assinatura do presidente Lula.

Reprodução/Foto: Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (CITO)
Por Daimar Stein
A Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, que se estende por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una, no sul da Bahia, está em processo de demarcação desde 2004. Esse processo se arrasta até hoje, atualmente sob condição apenas da assinatura pelo governo Lula, marcando um período de 21 anos de luta tanto pelas vias institucionais quanto fora delas numa jornada de mais de 500 anos de resistência.
A TI é composta de diversas associações, mais precisamente as aldeias de Olivença, em Ilhéus, do Acuípe de Cima, entre Ilhéus e Una, e da Serra do Padeiro, entre Buerarema e Una. Abriga aproximadamente 7500 pessoas em todo o seu território, composto majoritariamente por uma das últimas reservas da Mata Atlântica na região.
Os Tupinambá são um povo que enfrentou diretamente as primeiras ondas de colonizadores no processo de “descobrimento” do Brasil. Em 1559, a praia do Cururupe, no extremo norte da TI, foi cenário de um sangrento ataque contra os indígenas que ali habitavam, comandado por Mem de Sá, que caracterizou o Massacre do Cururupe. Esse é o massacre mais conhecido, mas infelizmente nem de perto o único. Também participaram, em busca de garantir seu direito básico à sobrevivência, de vários eventos da história do Brasil. Nas palavras de Rosemiro e Rosivaldo Ferreira da Silva, em carta para representantes da justiça brasileira:
“[...] nosso povo teve que lutar contra os franceses, na Confederação dos Tamoios. Depois, tivemos que lutar contra os holandeses, para expulsá-los da Bahia. E sempre nos eram negados os nossos direitos. [...] Participamos das lutas, aqui na Bahia, para provocar a independência do Brasil. E, depois, tivemos que ir para a Guerra do Paraguai. Para que os filhos dos coronéis de cacau fossem poupados, arregimentaram os índios da nossa família para guerrear no lugar deles e prometeram que, quando voltássemos, nos deixariam livres em nosso canto. Voltamos vivos, mas a promessa não foi cumprida: continuamos, sempre, sem direito à terra”.
Sua mão de obra, em condições próximas a ou diretamente de escravidão, foi chave para a expansão agrícola, tanto nos engenhos de açúcar, durante os primeiros séculos da colonização, quanto nas fazendas de cacau entre o final do século XIX e início do século XX, utilizada em peso junto com a mão de obra negra escravizada. A violência física, realizada principalmente através dos “caxixes”, tomadas violentas de terra, não foi a única forma de repressão utilizada contra os povos indígenas. A justiça burguesa também serviu, como serve até hoje, exclusivamente aos interesses dos fazendeiros. A concessão de títulos de posse de terras ocupadas pelos Tupinambá para não-indígenas, a medição obrigatória de terras e a grilagem foram amplamente utilizados por figuras como Manoel Pereira de Almeida, proprietário rural conhecido como “dono de Una", figura chave na formação do município, e “jogadas para debaixo do tapete” da história do desenvolvimento da região.
No início da década de 1930 ocorre também a chamada “revolta do caboclo Marcellino”. Na época, membros da elite local buscavam construir uma ponte sobre o rio Cururupe. Buscando barrar o avanço de não-indígenas sobre suas terras, Marcellino José Alves, liderança local da época, mobilizou os indígenas, sendo perseguido e preso seguidas vezes por conta disso. Reportagens da época contam sobre os confrontos armados que tiveram lugar no interior do território tupinambá, construindo a imagem pública de Marcellino como um criminoso, incluindo de utilizar da sua relação com os comunistas do Partido Comunista Brasileiro para incentivar a violência contra os povos indígenas da região através da propaganda anticomunista.
O período da ditadura empresarial-militar foi particularmente brutal para os Tupinambá. Em 1978, a partir da expropriação de diversos territórios dos Tupinambá e de pequenos produtores locais, além de farto financiamento público, é criada a Unacau Agrícola S.A., uma das maiores fazendas de cacau do Brasil cuja extensão foi tão grande que marca até hoje o nome da região da divisa entre Una, Buerarema e Itabuna, pelo menos até a chegada e devastação trazida pela Vassoura de Bruxa, que entre os anos 90 e 2000 destruiu o funcionamento da mesma e seu território permaneceu abandonado por mais de uma década.
Somente com a vigência da Constituição de 1988 que as lideranças tupinambá de diferentes partes do território articulassem suas demandas de forma unificada. A partir desse momento os Tupinambá conseguem lutar dentro das formas institucionais sem ter esse direito arbitrariamente retirado, mas, principalmente por conta dos limites claros da luta institucional, a resistência precisou continuar por fora dele, através das retomadas de terra.
As retomadas de terra, também chamadas de autodemarcação, são uma forma de recuperação de territórios invadidos majoritariamente por fazendeiros, na busca de pressionar o governo pelo seu direito. Geralmente é um processo recebido com muita violência e desinformação nos veículos de mídia, tratando os verdadeiros donos do território como invasores e bandidos. Entre 2012 e 2014, após uma série de outras retomadas nos dez anos anteriores, os Tupinambá da Serra do Padeiro foram vítimas de uma dessas maiores campanhas de violência, após retomarem as fazendas da região da Unacau, amplamente financiada pelos fazendeiros locais em parceria com veículos de comunicação locais e que levou a uma onda de ataques por jagunços e pela própria Polícia Militar do então governador Rui Costa (PT).
Essa onda de ataques escalonou ao ponto de contar com a intervenção das Forças Armadas pelo governo Dilma Rousseff (PT), que, ao invés de solucionar o conflito, pioraram a situação, com relatos da época contando casos de sequestro de crianças indígenas pela Polícia Militar, estupro de menores de idade moradores de Buerarema por militares, além de abuso de poder generalizado durante o período de intervenção, criando uma ferida até hoje aberta e pulsando que define as relações de tensão e conflito entre os moradores de Buerarema e os Tupinambá, ainda mais quando se leva em consideração que mais de 20% da TI Tupinambá de Olivença corta o município.
Um dos grandes limitadores do estudo das lutas históricas dos Tupinambá é a falta de registros escritos de sua história, já que um dos elementos culturais desse povo é a sua tradição oral, e a falta de alcance de políticas de fomento à educação pelos governos municipal e estadual. Nas palavras de “Tia Maria”, da aldeia da Serra do Padeiro, em entrevista para o livro O Retorno da Terra: “Se eu soubesse ler, eu ia sentar e escrever tudo que já passou pela gente nessas áreas de retomada. Toda hora que eu lembrasse, eu ia lá e escrevia o que eu lembrei.” O acesso à escolas locais existe, essas que atendem tanto indígenas quanto não-indígenas, em geral filhos de pequenos produtores rurais e assentados que vivem próximos às suas terras, mas ainda poucas e que sofrem com as mesmas limitações do resto do ensino público. O acesso ao ensino superior, apesar de crescente, ainda é muito pequeno, com o agravante de que a maior parte das vagas preenchidas são em universidades privadas.
Apesar dos desafios, a luta pela demarcação e pelo seu reconhecimento não para. Desde o final do ano passado os Tupinambá de Olivença vêm lutando pela devolução de seu manto sagrado, roubado há mais de trezentos anos e finalmente devolvido ao Brasil, mas atualmente exposto no Rio de Janeiro, ao invés de devolvido para seus verdadeiros donos. No início de setembro, retomaram outra parte de seu território, na área da Fazenda Barra – Acuípe II, em Una. Já no dia 28, aconteceu a XXV Peregrinação em Memória dos Mártires do Rio Cururupe, que todos os anos conta com a presença e solidariedade de diversos povos indígenas e de não-indígenas para lembrar a luta de seu povo e pressionar o governo na exigência de seus direitos.
O futuro dos Tupinambá é incerto. Enquanto o governo Lula finge não ver e não assina a demarcação de seu território, a aprovação do PL da Devastação, o avanço do Marco Temporal através do STF, o constante corte de verbas para a FUNAI, além da influência cada vez maior de milícias rurais como o Movimento Invasão Zero na região fomenta uma nova onda de pânico e incentivo à violência a esses povos. É questão de tempo para o ovo da serpente chocar, por isso mesmo é necessário agora, mais do que nunca, contar sua história e nos unir à suas lutas.
Atualmente, tanto os Tupinambá quanto os Pataxó estão em campanha, com apoio da APIB, buscando pressionar o governo Lula para a oficialização da demarcação de seus territórios, mais precisamente das TIs Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte, Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá. Nesse momento, é prioridade máxima pressionar o governo Lula pela demarcação dos seus territórios, que é apenas o primeiro passo de uma longa luta pela preservação de seu povo e do meio ambiente.