Juventude marroquina vai às ruas contra os gastos bilionários em megaeventos

Em meio a uma onda global de protestos, a juventude marroquina toma as ruas. A morte de oito gestantes em Agadir acendeu a faísca contra a monarquia que prioriza a Copa de 2030, enquanto milhões seguem sem acesso a direitos básicos.

13 de Outubro de 2025 às 21h00

Manifestantes vão às ruas no Marrocos em protestos organizados pela juventude. Reprodução/Foto: Reuters.

Por Guilherme Sá

Desde 27 de setembro, a juventude marroquina ocupa as ruas de diversas cidades do país com uma ampla lista de exigências que contestam o escanteamento do investimento no acesso a direitos básicos da população em favor de grandes obras destinadas à megaeventos desportivos, em particular a Copa do Mundo de 2030.

Após dias consecutivos de confrontos entre jovens e forças de segurança, três pessoas morreram e cerca de 350 ficaram feridas, além de mais de 1000 pessoas terem sido presas.

Num contexto global marcado por grandes protestos nos últimos anos – do Sri Lanka, em 2022, aos mais recentes no Nepal e Madagascar –, o estopim para as mobilizações no Marrocos foi a morte de oito gestantes no Hospital Provincial Hassan II, em Agadir, após serem transferidas para realização de cesarianas. O descaso e as precárias condições da saúde pública no país contrastam com a almejada projeção internacional através dos investimentos em infraestrutura voltados para os já citados megaeventos.

Lideradas por grupos independentes como o GenZ 212 – termo que combina o recorte geracional com o código telefônico +212 do Marrocos – e o Morocco Youth Voice, as manifestações espalharam-se rapidamente das províncias do sul para o resto do país. Embora a capital, Rabat, tenha testemunhado protestos majoritariamente pacíficos, sua região metropolitana, especialmente Salé, foi palco de saques, incêndios e confrontos com as forças de segurança.

Cenas dos protestos nas ruas de Sale, no Marrocos. Reprodução: Euronews.

Nesse contexto, a violência durante os protestos resultou em duas mortes em Lqliâa, região próxima a Agadir, onde policiais atiraram contra jovens que supostamente tentaram furtar armamentos de uma delegacia. Em entrevista à AFP, o irmão de uma das vítimas nega qualquer envolvimento dele em agressões, o que aumentou a indignação nacional e acirrou os ânimos.

Outras localidades também registraram confrontos. Em Marrakech, importante polo turístico marroquino, manifestantes incendiaram uma delegacia, enquanto em Tânger, no norte do país, pedras foram atiradas contra as forças de segurança.

Paralelamente, o grupo GenZ 212, que se coloca como apartidário, reúne mais de 130 mil pessoas em um servidor da rede social Discord. Em declarações públicas, seus integrantes e idealizadores – que permanecem no anonimato – exigem a destituição do governo liderado pelo primeiro-ministro Aziz Akhannouch, no cargo desde 2021, além do fim da corrupção ligada a contratos de obras da Copa do Mundo.

Manifestante em Rabat ergue cartaz em inglês reivindicando melhorias no sistema de saúde marroquino em contraste às obras dos estádios para a Copa. Reprodução/Foto: Middle East Eye.

Apesar do clima de insatisfação, os manifestantes foram claros em não direcionar seu protesto contra a instituição monárquica, o sistema político marroquino ou o Islam. Pelo contrário, em comunicado nas redes sociais e declarações, o GenZ 212 e seus simpatizantes defendem a não violência e afirmam agir “por amor ao país e ao rei”, posicionando-se explicitamente “a favor da reforma”. Seu objetivo parece ser o de apelar por ações mais contundentes do Rei Mohammed VI no combate à corrupção, atuando como um alerta leal, e não como uma força de oposição.

Paralelamente a essa postura de lealdade interna, as manifestações foram marcadas por menções à causa palestina. Esta foi uma expressão significativa de solidariedade, que ocorre em um contexto diplomático delicado, dada a recente reaproximação do governo marroquino com Israel.

Nota publicada em rede social do grupo GenZ 212. Reprodução: Redes Sociais/X

Além do já estabelecido cenário de insatisfação com os vultosos investimentos direcionados para a futura Copa do Mundo, a realização da Copa Africana de Nações no país, entre 21 de dezembro de 2025 e 18 de janeiro de 2026 (consequência do aumento do número de seleções classificadas para a Copa do Mundo e a necessária adequação dos calendários esportivos), surge como mais um forte motivo de descontentamento para a juventude. Este evento soma-se a um contexto já crítico, marcado por uma taxa de desemprego de 12,8% que atinge especialmente a faixa etária presente nas ruas.

Diante desse cenário, com a seleção marroquina alcançando feitos expressivos em competições internacionais – fruto de um projeto financiado diretamente pela monarquia –, cresce a pressão para que tudo transcorra com sucesso, ampliando ainda mais a tensão entre as prioridades do governo e as demandas da população.

A projeção almejada por Mohammed VI não é à toa. Por meio de múltiplas frentes diplomáticas, a monarquia busca o reconhecimento definitivo de sua soberania sobre o Saara Ocidental, região ocupada militarmente há cerca de 50 anos. Com novas ofensivas contra a Frente Polisário, movimento de resistência do povo saaraui, o governo marroquino tem obtido apoios significativos para sua “solução final” na região.

O presidente da França, Emmanuel Macron, desfila ao lado do rei Mohammed VI do Marrocos, em outubro de 2024, durante visita do francês à Rabat. Reprodução/Foto: Redes Sociais.

No entanto, a repressão e as violações de direitos praticadas contra a população saaraui estão longe de ser pauta dos atuais protestos, que se concentram superficialmente em maiores investimentos em saúde e educação para os marroquinos. Em entrevistas e declarações, a juventude justifica as mobilizações com a ideia de que necessita dos instrumentos sociais para que o desenvolvimento do país se concretize, permitindo-lhe competir com grandes potências.

Recentemente, a monarquia marroquina adquiriu aviões militares da empresa brasileira Embraer e mantém contratos com empresas de armamento israelenses, visando renovar suas forças armadas e disputar sua hegemonia no norte do continente africano, onde disputa este status com a Argélia, que passa por uma crise política e econômica.

Enquanto a mídia hegemônica arrisca anunciar uma nova “Primavera”, importa frisar as especificidades de cada localidade e os moldes de cada movimento que encabeça as manifestações. Se, por um lado, materializa-se cada vez mais a indignação com a miséria imposta pelo neoliberalismo e os excessos da burguesia no poder, o apartidarismo acende alertas e revela as insuficiências de um movimento carente de uma vanguarda da classe trabalhadora, que lute contra a verdadeira causa das crises sociais em todo o globo: o capitalismo.