Onda de protestos derruba governo de Madagascar

Após três dias de protestos que deixaram 22 mortos, o presidente de Madagascar dissolveu o governo. A medida tenta conter a revolta popular contra cortes de água e energia, mas é vista como insuficiente diante da crise no país.

7 de Outubro de 2025 às 21h00

Estudantes se reúnem em protestos na capital malgaxe, Antananarivo. Reprodução/Foto: Rfi.

Por Guilherme Sá

Após dias de protestos massivos e repressão das forças de segurança, resultando na morte de 22 manifestantes, o presidente de Madagascar Andry Rajoelina anunciou a dissolução de todo seu governo. A medida, tida como insuficiente pela população em revolta, tenta conter a crise deflagrada pelos cortes contínuos no fornecimento de água e energia, que serviram como estopim para as manifestações.

Os protestos, que se estenderam por três dias consecutivos, tomaram conta da capital, Antananarivo, e de outras cidades principais, mergulhando o país em um cenário de caos e confronto. Multidões de jovens, frustrados pela deterioração crônica das condições de vida, enfrentaram as forças de segurança, que responderam com brutalidade. A tensão rapidamente escalou para atos de vandalismo e pilhagens, com comerciantes vendo seus estabelecimentos serem saqueados.

Em um pronunciamento televisionado, o presidente Rajoelina, além de anunciar a dissolução do governo, tentou acalmar os ânimos prometendo uma linha de crédito para compensar os empresários prejudicados pelos saques, uma medida vista por muitos como um paliativo que ignora as causas profundas da insatisfação popular.

Com o governo buscando conter a crise, figuras da oposição capitalizaram o momento. Rivo Rakotovao, um dos principais nomes do Tiako I Madagasikara (TIM), partido de centro-direita do ex-presidente Ravalomanana, expressou apoio público aos manifestantes e aponta que não irá mais compor o governo de Rajoelina.

Já nesta quinta-feira, 2 de outubro, enquanto Antananarivo via uma trégua tática convocada pelos líderes do movimento, milhares de jovens marcharam em cidades como Antsiranana, no norte, e centenas se reuniram em Toliara, no sul, e Mahajanga, no norte. Esta persistência das mobilizações em outras regiões, mesmo após a dissolução do governo, evidencia que a insatisfação é profunda e generalizada, mantendo a pressão sobre o presidente Rajoelina.

Embaixadas da Alemanha, França, Reino Unido e Japão, junto com a União Europeia, emitiram uma declaração conjunta apelando por um "diálogo construtivo" e condenando todas as formas de violência. Este apelo externaliza a crise e coloca Rajoelina sob o escrutínio de atores globais chave. Paralelamente, a gravidade da situação foi reforçada por organismos internacionais, com a ONU detalhando o trágico saldo de vítimas e a Anistia Internacional denunciando que o direito ao protesto pacífico foi "violentamente atacado”.

Enquanto a mídia ocidental segue a tendência de reduzir o movimento ao rótulo despolitizante e superficial de "revolta da Geração Z", como feito recentemente em relação aos protestos no Nepal, escapa à análise o fato crucial de que os jovens malgaxes que foram às ruas representam a primeira geração que cresceu inteiramente sobre os escombros da brutal ofensiva neoliberal que se seguiu à crise do regime socialista no país. Hoje, eles enfrentam as consequências diretas desse modelo, que inclui o colapso dos serviços básicos, somadas aos efeitos tangíveis da crise climática, como a fome endêmica que assola diversas regiões da ilha.

Voltando algumas décadas, o regime socialista malgaxe, instituído em 1975 sob a liderança do Capitão Didier Ratsiraka, representou uma tentativa audaciosa de reorientar o país para um caminho de soberania e transformação social. O projeto tinha como objetivo central romper com as estruturas econômicas do período neocolonial, que mantinham o país dependente de potências estrangeiras, em especial a França.

Um dos pilares dessa transformação foi um amplo programa de nacionalizações. O Estado assumiu o controle de setores estratégicos, como o sistema financeiro - incluindo bancos e seguradoras - e outras empresas-chave. Esta medida visava não apenas garantir que os principais meios de produção beneficiassem a nação como um todo, mas também consolidar a autonomia econômica face aos interesses externos. Paralelamente, foi implementada uma significativa reforma agrária, que promoveu a criação das fokonolona, cooperativas inspiradas no modelo Ujamaa da Tanzânia.

No plano social, o regime investiu fortemente em serviços públicos considerados essenciais. Campanhas massivas de alfabetização foram lançadas, e os sistemas de educação e saúde receberam atenção prioritária, visando melhorar os indicadores de desenvolvimento humano da população.

Encontro entre Kim Il Sung e Didier Ratsiraka, líder da República Democrática de Madagascar. Reprodução: Redes Sociais.

Apesar dos avanços iniciais, a experiência socialista, que continha diversas particularidades e uma construção ideológica complexa, típica dos regimes militares que ascenderam ao poder durante o século passado no continente africano, adotando uma postura marxista, começou a enfrentar sérias dificuldades na década de 1980. A crise econômica internacional, a queda dos preços das commodities e as pressões financeiras forçaram o país a recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Sob a égide desta instituição, Madagascar foi obrigado a implementar reformas econômicas, afastando-se progressivamente da orientação socialista. Este processo, marcado por medidas de austeridade, gerou descontentamento social e, somado a protestos políticos, culminou na renúncia de Ratsiraka em 1991, pondo fim a um capítulo singular na história moderna de Madagascar.

A implementação das reformas neoliberais sob a tutela do FMI e do Banco Mundial representou um choque profundo na estrutura socioeconômica de Madagascar. Conforme prescrito pelos programas de austeridade, o Estado desmontou sistematicamente o setor público: o sistema financeiro foi reestruturado e aberto ao capital estrangeiro, as empresas estatais foram liquidadas ou privatizadas, e os mecanismos de controle de preços e crédito direto foram eliminados. Esta transição brusca para uma economia de mercado resultou no desmantelamento da rede de proteção social, na precarização do trabalho e na perda de soberania sobre setores estratégicos. O fim dos subsídios a produtos básicos e a liberalização do comércio agrícola geraram inflação e insegurança alimentar, enquanto a abertura financeira aumentou a vulnerabilidade a crises externas.

Quatro décadas de políticas neoliberais deixaram como legado uma das situações mais críticas de pobreza no mundo. Atualmente, cerca de 80% da população malgaxe (cerca de 22,4 milhões de pessoas) vive abaixo da linha da pobreza. Esta realidade contrasta com a imensa riqueza natural do país, incluindo sua condição de maior produtor mundial de baunilha e reservas minerais estimadas em 800 bilhões de dólares, controladas predominantemente por multinacionais estrangeiras.

Sul cada vez mais árido de Madagascar. Reprodução: ONU.

A geografia singular de Madagascar (uma ilha com 5.000 km de costa) torna-a especialmente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas. O sul do país enfrenta sua pior seca em 40 anos, com pluviosidade abaixo de 50% da média histórica, configurando a primeira fome moderna oficialmente atribuída às alterações climáticas. Esta realidade é ainda mais grave considerando que grande parte das famílias malgaxes está empregada na agricultura de subsistência, sendo a própria economia rural a principal atividade do país

Simultaneamente, o norte e leste da ilha são assolados por ciclones tropicais cada vez mais intensos. A erosão costeira acelerada, com o nível do mar subindo 7 mm/ano no Canal de Moçambique, ameaça comunidades litorâneas e a segurança alimentar de populações que dependem da pesca.

É neste contexto de emergência climática e do fracasso das reformas exigidas pelo FMI e Banco Mundial que uma grande crise política eclodiu em 2009, quando o então presidente Marc Ravalomanana autorizou a concessão de 50% das terras cultiváveis do país à empresa sul-coreana Daewoo Logistics, prevendo a produção em larga escala de óleo vegetal para exportação.

População protesta contra a concessão das terras à empresa sul-coreana em 2009. Reprodução: WikimediaCommons.

Setores das Forças Armadas, recusando-se a cumprir ordens de despejar camponeses das áreas afetadas, aliaram-se ao então prefeito da capital e hoje presidente, Andry Rajoelina. Enquanto comunidades rurais enfrentavam a dupla ameaça da expropriação e dos desastres climáticos, estes atores políticos capitalizaram o descontentamento popular. Embora facções militares tenham tentado reverter o golpe, a tomada do poder consolidou-se nos anos seguintes.

Rajoelina, um empresário que construiu sua imagem como "fora do sistema", revelou-se um operador pragmático do poder. Seu governo aprofundou o modelo extrativista, facilitando a atuação de conglomerados internacionais em setores como mineração, onde atuam diversos grupos como a britânico-australiana Rio Tinto e a japonesa-coreana Ambatovy Minerals AS.

Frente a este cenário de crise multidimensional, a explosão de protestos espontâneos em Madagascar reflete décadas de superexploração econômica inserida na divisão internacional do trabalho. A juventude malgaxe, condenada a servir como mão-de-obra barata e consumidora de últimos recursos, tornou-se a face visível de um sistema que perpetua a acumulação de capital pelas potências estrangeiras em detrimento do desenvolvimento nacional.

Contudo, enquanto as massas ocupam as ruas exigindo mudanças concretas, a falta de uma organização política consolidada compromete a transformação do descontentamento popular em um projeto de poder anticapitalista. Esta carência de direção estratégica não é exclusividade malgaxe, mas representa um dilema central para movimentos populares em todo o mundo. Sem a construção de instrumentos políticos capazes de converter a revolta imediata em um programa de transformação estrutural, estes levantes arriscam-se a esgotar-se em ciclos de protesto sem conquistas duradouras, mantendo intactos os mecanismos de dominação que originaram a crise.