Embraer encaminha venda de aeronaves militares à monarquia marroquina
A Embraer se junta a fornecedores como a israelense Elbit Systems no fortalecimento do aparato militar marroquino, usado para reprimir o povo saaraui no Saara Ocidental, ocupado desde 1975.

Voo conjunto com quatro KC-390, modelo fabricado pela Embraer e utilizado pela Força Aérea Brasileira (FAB). Reprodução: Wikimedia Commons.
Por Guilherme Sá
Em negociações avançadas desde 2024, a Embraer está próxima de fechar o maior contrato de sua história com um país africano, envolvendo a venda de aeronaves civis e militares para o Reino do Marrocos. ARoyal Air Maroc, companhia aérea marroquina, planeja renovar sua frota com jatos da linha E-Jet E2, enquanto o governo negocia a compra de cargueiros militares KC-390 Millennium, com este último constando num acordo estimado em US$ 600 milhões, algo entorno de 3,2 bilhões de reais.
As negociações com o Marrocos carregam, contudo, grandes implicações geopolíticas. Aliado estratégico do Ocidente, o reino é responsável por promover um sistemático processo de limpeza étnica contra o povo saarauí – crime que perdura desde a invasão militar do Saara Ocidental em 1975. Ao fornecer aeronaves militares que podem ser usadas no controle e repressão da população local, a Embraer e o governo brasileiro tornam-se, voluntariamente ou não, cúmplices de um genocídio disfarçado de desenvolvimento.
A Embraer no tabuleiro global da defesa
O possível acordo com o Marrocos não é um caso isolado, mas parte de uma estratégia agressiva de internacionalização que vem reposicionando a Embraer como peça-chave no competitivo mercado de defesa mundial. Nos últimos anos, a fabricante brasileira tem desafiado a hegemonia das gigantes Boeing e Lockheed Martin, conquistando mercados estratégicos – como demonstram as vendas do KC-390 para Portugal e Países Baixos na Europa e as recentes demonstrações dos modelos à Nigéria e África do Sul.
O avanço da Embraer materializou-se em outubro de 2024 com a assinatura de um Memorando de Entendimentos (MoU) entre a empresa e o governo marroquino durante a 7ª edição doMarrakech Air Show(MAS), estabelecendo uma parceria abrangente que vai desde a aviação comercial até defesa e mobilidade aérea urbana. Na cerimônia, o presidente e CEO da Embraer Defesa & Segurança, Bosco da Costa Junior, deixou clara a ambição da empresa: “O Marrocos está pronto para ser um grande parceiro para a Embraer Defesa & Segurança”, declarou, acrescentando o compromisso de “colaborar estreitamente com a Força Aérea Real Marroquina para posicionar o KC-390 como a principal escolha para seus futuros recursos de Transporte Aéreo Tático”.

C-390 da Hungria em construção da fábrica da Embraer em Gavião Peixoto (SP). Reprodução: Embraer
Essa projeção global do KC-390 consolida o modelo como favorito na substituição dos veteranos C-130 Hercules da Lockheed Martin. Desenvolvido no pós-Segunda Guerra para modernizar a frota estratégica dos EUA, o C-130 dominou por décadas o mercado global de transporte militar, incluindo a Força Aérea Brasileira (FAB). No entanto, a maior capacidade de carga e outros aspectos como maior velocidade, melhor desempenho em altitude e custos operacionais mais baixos colocam o KC-390 à frente do velho modelo estadunidense.
O interesse inicial do Marrocos pelo KC-390 foi rapidamente acompanhado por especulações sobre negociações com outros países. Hungria, Áustria, Coreia do Sul, República Tcheca, Emirados Árabes Unidos e Chile surgiram como potenciais compradores, enquanto nações como Angola, Nigéria, Egito, Grécia, Ruanda, Arábia Saudita, África do Sul e Suécia também manifestaram atenção ao modelo.

Painel de Conferência realizada pela Embraer em 2024 reunindo usuários do KC-390. Reprodução: X/Redes Sociais.
Além disso, a estratégia da Embraer ganhou reforço em fevereiro, quando a empresa apresentou o cargueiro como carro-chefe na AeroIndia, principal feira de aviação indiana. O modelo chamou atenção e se apresenta como provável escolha dos indianos por sua capacidade de transportar o tanque Zorawar, da empresa Larsen & Toubro.
Marrocos fortalece sua máquina de guerra
Na esteira da estratégia da empresa brasileira, a entrada do Marrocos no seleto grupo de operadores do KC-390 reflete a guinada da monarquia alauita para modernizar e expandir seu aparato militar. Este movimento fica ainda mais evidente nos US$ 12,88 bilhões destinados à defesa na Lei de Finanças de 2024 deste país – um incremento de US$ 484,7 milhões em relação a 2023, consolidando Rabat como um dos maiores investidores militares do continente africano.
Além do investimento em novas plataformas aéreas como o KC-390, a estratégia de modernização militar marroquina tem se apoiado em parcerias estratégicas com outros fornecedores globais. Nesse sentido, um dos desdobramentos mais significativos foi o acordo com Israel após a normalização de relações através dos Acordos de Abraão em 2020 - iniciativa patrocinada pelo governo Trump e que foi feita em troca do reconhecimento por parte de Washigton da soberania marroquina sobre o Saara Ocidental.
Esta reaproximação permitiu que Rabat diversificasse seus fornecedores militares. Em 2024, o Marrocos firmou um contrato com a israelense Elbit Systems, que passou a ser a terceira maior fornecedora de armas à monarquia, com 11% do mercado de defesa do país. Dessa forma, equipamentos como drones e artilharias foram incorporados ao arsenal marroquina, que o utilizam na vigilância e repressão das forças de libertação saarauí.
Fechando o cerco
A venda de aeronaves da Embraer nesse contexto não passou despercebida pelas organizações saarauis que se encontram representadas no Brasil. Em nota contundente, a Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saarauí (Asaaraui) afirmou que “[...] é inadmissível que o Brasil forneça armamentos a um país colonialista, violador de direitos humanos dos saarauis e colaborador do genocídio do povo palestino”, referindo-se ao apoio marroquino ao governo de Israel.

Nota publicada pela Associação de Solidariedade e pela Autodeterminação do Povo Saarauí (Asaaraui) em 10 de julho de 2025. Reprodução: @asaarauibrasilia.
Enquanto fortalece seu poderio militar com aquisições como os KC-390, o Marrocos continua avançando em uma estratégia diplomática para isolar definitivamente a resistência saarauí. A visita do presidente francês Emmanuel Macron a Rabat em outubro de 2024 reforçou essa campanha, com Paris reiterando seu apoio à soberania marroquina sobre o Saara Ocidental, aprofundando ao mesmo tempo as tensões com a Argélia, principal aliada da Frente Polisário e refúgio de milhares de saarauís deslocados.
Nesses termos, a exploração econômica do território ocupado segue em paralelo. De acordo com oMorocco World News, Rabat vem negociando com empresas dos Emirados Árabes Unidos a construção de megaparques eólicos em áreas do Saara Ocidental – mais um passo no deslocamento forçado de comunidades locais, desrespeitando a ONU e outros organizações internacionais como a União Africana, que reconhecem a ilegalidade da presença marroquina na região.