Em São Carlos (SP), coletivo Hip Hop Salva realiza Batalha do Conhecimento LGBTI+

A batalha foi um sucesso não apenas pela qualidade das rimas, mas pela profundidade do debate que ecoou para além dos microfones. O Hip Hop Salva reafirma que a cultura, quando junto com a consciência de classe e a luta anti opressão, é uma força revolucionária capaz de desmascarar o pinkwashing corporativo e o redwashing governamental.

12 de Junho de 2025 às 15h00

Batalha H2S acontece quinzenalmente aos sábados, na Pista de Skate do Santa Felícia, em São Carlos (SP). Foto: Marcelo Hayashi / Hip Hop Salva / Jornal O Futuro.

Em uma sociedade marcada pelas opressões e pela exploração do capital, eventos que realmente questionam as estruturas de poder tornam-se faróis de resistência. Foi com essa premissa que o Coletivo Hip Hop Salva, em sua missão de utilizar a cultura como ferramenta de transformação social, realizou no penúltimo sábado, 31 de maio, a Batalha do Conhecimento LGBTI+. O evento, que lotou a cena cultural de São Carlos, transcendeu a mera disputa de rimas, erguendo-se como um tribunal popular contra a LGBTfobia e a hipocrisia das falsas inclusões e do pinkwashing corporativo.

O Hip Hop Salva é um coletivo cultural de São Carlos-SP que promove transformação social através da cultura hip hop, realizando festivais gratuitos, batalhas de rima, oficinas formativas e ocupações culturais em territórios periféricos. Já realizaram 3 edições do festival (2022-2024), impactando mais de 3 mil pessoas diretamente. O próximo festival será a 4ª edição do Hip Hop Salva no dia 16 de agosto de 2025. O projeto prioriza inclusão, diversidade e democratização cultural, oferecendo todas as atividades 100% gratuitas para a comunidade.

Nascido em 2018 como resposta direta à violência policial contra a juventude preta e periférica, o coletivo Hip Hop Salva tem em sua essência a luta irrestrita contra o racismo, o machismo, a LGBTfobia, o capacitismo, o capitalismo e todas as formas de opressão que subjugam a classe trabalhadora. Sob a liderança de Thalita "Nega MC", o coletivo não se contenta em apenas dar voz, mas também em construir a autonomia das periferias, tecendo uma rede de solidariedade e consciência.

A Batalha do Conhecimento LGBTI+ materializou essa visão. Os temas, provocadores e incisivos, mergulharam nas contradições da realidade LGBTI+ no Brasil. Em cada round, temas ligados às lutas LGBTI+ foram apresentados e os MCs desenvolvem na rima, transformando o evento em um espaço educativo de ensino e aprendizagem, além de oferecer cultura e lazer de maneira popular. A batalha não se tratou apenas de denunciar a chocante estatística de uma morte violenta a cada 34 horas para essa população – com mulheres trans e travestis negras sendo as principais vítimas, evidenciando o cruzamento perverso entre transfobia, racismo e desigualdade de classe. Foi além, questionando o "cifrão da LGBTfobia": como a exclusão e a marginalização dessa parcela da população geram lucros para o sistema, mantendo a periferia em um ciclo de miséria?

A primeira rodada da batalha, explicitamente focada neste tema, colocou em cheque a narrativa superficial da "inclusão" e do "pinkwashing". A rima se tornou a ferramenta para desmascarar essa lógica cruel, mostrando como o capital se alimenta da fragilidade e da marginalização, transformando a diversidade em mera mercadoria para consumo e marketing, sem alterar as estruturas de exploração.

Ainda que seja vital reconhecer os avanços legais, como a criminalização da homotransfobia e o direito à união homoafetiva e ao nome social – conquistas arrancadas na luta popular, muitas vezes mediadas por decisões judiciais –, a perspectiva do Hip Hop Salva alerta para a insuficiência dessas "inclusões". A verdadeira libertação sexual e de gênero não se dá pela assimilação a um sistema que, em sua essência, é opressor e capitalista. Não se trata de buscar conquistas individuais que, por vezes, correm o risco de se fragmentar, obscurecendo as raízes materiais da opressão e a urgência da luta de classes.

A crítica ao conceito de "lugar de fala", quando descolado da análise materialista das relações sociais, reside justamente no perigo de diluir a luta coletiva em narrativas individualizadas. Enquanto as vivências e experiências de cada grupo oprimido são inegavelmente válidas e precisam ser ouvidas, a ênfase excessiva na identidade pode ser um problema quando desvia o foco da estrutura de poder e das relações de produção que engendram a opressão. A Batalha do Conhecimento, ao invés de se limitar a "lugares de fala" isolados, promoveu um encontro de vozes que, a partir de suas diversas realidades, convergiram para a denúncia de um sistema comum de exploração e para a afirmação de uma luta unificada por libertação. O Hip Hop, em sua essência, é essa fusão de vozes que, no coletivo da rima, constrói a narrativa de um povo oprimido, superando as fragmentações.

Os MCs, com seus versos afiados, abordaram desde as barreiras no acesso à saúde e educação, a forma como a mídia distorce narrativas, até o uso da fé para disseminar ódio. Celebraram artistas como Jup77er, WinniT e DJ Tayan, que, com sua arte, não apenas se afirmam, mas inspiram a cena e a comunidade a quebrar paradigmas. A união homoafetiva, por sua vez, foi analisada em sua complexidade: um direito conquistado, sim, mas um ponto de partida para passos mais audaciosos em direção à plena igualdade e justiça material.


Assista a toda Batalha H2S #15 na íntegra, pelo YouTube do coletivo Hip Hop Salva: https://www.youtube.com/watch?v=TORDKOvligM&list=PLbZw81dw2sNuIgHlW5tIXxauizX9GTdio


A vivência pessoal dos MCs trouxe camadas ainda mais profundas à discussão. O MC Shanghai destacou que "a exclusão começa dentro de casa", mas que o hip hop muitas vezes é uma "segunda casa" que aceita as pessoas excluídas. Essa experiência não é um caso isolado, mas um testemunho vivo da missão do Coletivo Hip Hop Salva: construir a "autonomia e o empoderamento das periferias" e tecer uma "rede de solidariedade e consciência".

Shangai. Foto: Marcelo Hayashi / Hip Hop Salva / Jornal O Futuro.

A batalha também trouxe à tona a importância do respeito à identidade e ao nome social, e como a rima pode exigir essa dignidade. O MC Paul compartilhou sua experiência de como seu "nome social é respeitado aqui [na batalha]", onde ele se sente "empoderado" quando rima. Isso demonstra o poder do espaço do hip hop para garantir o que muitas vezes é negado pela sociedade, um refúgio onde o respeito e a dignidade são as regras.

Paul. Foto: Marcelo Hayashi / Hip Hop Salva / Jornal O Futuro.

A própria realização do evento na pista de skate de Santa Fé, local que o coletivo ocupa quinzenalmente, evidenciou a resistência em face da negligência estatal. Naquele dia, boa parte das luzes da pista estava apagada. No entanto, a pressão conjunta do Hip Hop Salva com a vereadora Fernanda (PSOL) para a recuperação da iluminação mostrou a força e a persistência da batalha mesmo sem a manutenção devida do espaço público. A pressão funcionou, e a luz voltou em menos de uma semana, uma pequena, mas significativa vitória na luta por direitos e infraestrutura.

Um dos pontos mais contundentes da batalha foi a crítica afiada à ineficácia das leis nas quebradas. A MC Zemaki afirmou com veemência: "A lei não chega na quebrada e, quando chega, já foi tarde” e também evidenciou que existem leis feitas contra as quebradas, “tipo a lei anti-Oruam, são leis que nos perseguem". E, em outro verso, cravou: "A lei não vai chegar na quebrada, mas o hip hop vai". Essa constatação revela a distância entre o que é debatido nos gabinetes e a realidade vivida nas periferias.

Zemaki. Foto: Marcelo Hayashi / Hip Hop Salva / Jornal O Futuro.

Muka, por sua vez, complementou essa crítica com uma advertência crucial: "é meio ingenuidade achar que por algo que foi feito no Planalto, você vai ser salvo, porque na realidade eles só pensam no próprio bolso. Nós não é o objetivo, nós é o alvo". Essa visão desmistifica a crença de que as leis emanadas de um Estado burguês são, por si só, garantias de libertação. Elas servem, em última instância, aos interesses da classe dominante, e para a população marginalizada, muitas vezes, são apenas mais um instrumento de controle e opressão.

Muka. Foto: Marcelo Hayashi / Hip Hop Salva / Jornal O Futuro.

Essa ineficácia da lei se agrava quando instituições do próprio Estado atuam como mecanismos de opressão. Exemplo disso é a recente Resolução 2.427/2023 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que, ao "eleger a população trans como seu alvo", impõe obstáculos burocráticos e estigmatizantes ao acesso à saúde para pessoas trans e travestis. Essa ação representa um ataque direto à vida e à dignidade dessa população, demonstrando que as barreiras não são apenas sociais, mas institucionalizadas. Tais resoluções servem, em última análise, para reforçar o controle do capital sobre os corpos e as vidas, negando o direito fundamental à saúde e à autodeterminação, em uma clara afronta ao avanço da libertação sexual e de gênero.

A batalha foi um sucesso não apenas pela qualidade das rimas, mas pela profundidade do debate que ecoou para além dos microfones. O Hip Hop Salva reafirma que a cultura, quando junto com a consciência de classe e a luta anti opressão, é uma força revolucionária capaz de desmascarar o pinkwashing corporativo e o redwashing governamental. É um grito por uma libertação que não se contenta com as migalhas da inclusão, mas exige a reconfiguração completa das relações sociais e econômicas, construindo um futuro onde nenhuma vida seja descartável.