A boiada passa no Senado com aval do Governo Federal

Do PL da Devastação ao grupo de trabalho para regulamentar a mineração em Terras Indígenas, as leis anti-indígenas e antiambientais nunca avançaram tanto, mesmo sob um governo considerado progressista.

26 de Junho de 2025 às 21h00

Vários manifestantes durante o 20º ATL, cerca de 8 mil indígenas de várias partes do país caminharam em direção ao Congresso Nacional para pedir a inconstitucionalidade da Lei 14.701 e a demarcação de seus territórios. Reprodução/Foto: Verônica Holanda/Cimi.

O Projeto de Lei do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021), apelidado de “PL da Devastação”, foi aprovado pelo Senado Federal no dia 21 de maio. Já no dia 28, foi aprovado também o PDL 717/2024, que tenta anular a homologação de duas Terras Indígenas em Santa Catarina. Ao mesmo tempo, foi criado um grupo de trabalho, coordenado por Tereza Cristina (PP), para elaborar um projeto que permita mineração em territórios indígenas.

 O Pl da devastação  já havia sido aprovado em 2021 na câmara dos deputados, e recentemente passou pelas Comissões de Meio Ambiente (CMA) e Agricultura e Reforma Agrária (CRA) com velocidade impressionante. A mudança ocorreu recentemente, com a articulação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), que tem interesse direto na exploração de petróleo na Margem Equatorial brasileira, principalmente na porção que pega do estado do Amapá, seu domicílio eleitoral. Por isso, o projeto foi colocado em votação de forma discreta, sem debate público.

A proposta representa um desmonte do Licenciamento Ambiental e mecanismos de controle, e permitirá que empresas dispensem a realização de estudos prévios de impacto em diversos tipos de empreendimentos. Além disso, autoriza a emissão automática de licenças com base apenas em uma autodeclaração dos empreendedores.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou recentemente que o presidente Lula deve vetar o Projeto, pois é “o maior retrocesso já visto” na área ambiental. Já o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse no dia 23 de maio que o projeto “avança sem precarização”. Para Fávaro, a proposta pode ajudar o governo a liberar obras de infraestrutura com mais agilidade e garantir o que ele chama de “crescimento sustentável”. “É impossível crescer de forma sustentável sem que a infraestrutura venha primeiro. Precisamos de mais portos, mais aeroportos, mais ferrovias e mais energia elétrica”, afirmou o ministro.

O apoio a Alcolumbre e à abertura da foz do Amazonas à exploração petrolífera é compartilhado pelo governo Lula, que também promove o projeto das Rotas de Integração Sul-Americana que favorece a exportação de soja e minério de ferro. Esse plano prevê grandes obras de infraestrutura que ameaçam territórios indígenas e áreas sensíveis, como a Ferrogrão, a FICO e a conclusão da BR-319.

O PL da Devastação, foi aprovado no senado por 54 votos a 13 e voltará para a câmara de deputados. Se for aprovado poderá ser sancionado pelo presidente Lula, porém o presidente não mencionou nada a respeito da tramitação do projeto. Em contrapartida, o Ministério do Meio Ambiente diz que isso representará um risco à segurança ambiental e social do país, além de uma afronta à Constituição Federal. Mas, mais do que flexibilizar regras, o projeto legaliza práticas que hoje já ocorrem de forma velada: a expropriação de terras, o silenciamento de comunidades e a priorização do lucro acima da vida. Trata-se de um dos maiores retrocessos já registrados na legislação ambiental brasileira.

Hoje os licenciamentos são feitos em três etapas: há uma licença prévia, na qual é preciso que a empresa apresente um estudo detalhado do impacto ambiental; depois vem a licença de instalação, onde serão estabelecidas as condições para a construção dos empreendimentos; e, por fim, a licença de operação, é nesse momento que as empresas devem mostrar que as medidas para controle de riscos ambientais foram cumpridas.

A prevenção de acidentes ambientais e a mitigação de danos inerentes à instalação de grandes empreendimentos não podem ser tratadas como medidas secundárias, aplicadas apenas após catástrofes. No entanto, na prática, o projeto em curso representa uma verdadeira carta branca para que madeireiras, mineradoras, petroleiras, agroindústrias e o agronegócio avancem sobre os territórios sem consulta prévia ou qualquer obrigação de prestar contas às comunidades diretamente afetadas.

As novas diretrizes demonstram que o apelido de PL da Devastação não é usado por acaso, pois:

  • Permite que empreendimentos sejam licenciados automaticamente, por meio do preenchimento de um formulário autodeclaratório por parte do empreendedor, a Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Isso elimina a necessidade de realização de estudos prévios de impacto ambiental em empreendimentos de médio potencial poluidor.
  • Enfraquece os órgãos ambientais, como o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e conselhos estaduais. No caso do ICMBio, isso abre margem para atividades econômicas em áreas de proteção ambiental.
  • Remove a proteção de territórios em processo de demarcação, o que fará com que o avanço do agronegócio e da mineração sobre territórios de comunidades indígenas e quilombolas.
  • Também é importante lembrar da Emenda 198 – autoria de Davi Alcolumbre – que permite, mesmo com a comprovação de degradação ambiental, que o governo federal acelere o licenciamento de empreendimentos considerados estratégicos.
  • Um outro ponto presente no PL determina que cada estado e município poderá determinar o seu processo de licenciamento. Ou seja, isso acarretará em várias modalidades diferentes de regulamentação e colocará as burguesias locais em posição de decisão sobre como as regiões deverão ser exploradas.

Além do PL 2159/2021, também foi aprovado em 28 de maio no Senado Federal o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024, que altera significativamente as normas para a demarcação de terras indígenas no Brasil. O autor foi o senador Esperidião Amin (PP-SC), político muito conhecido dos catarinenses, uma vez que foi governador do estado por dois mandatos e foi nomeado prefeito de Florianópolis em 1975 e 1978 durante a ditadura. A proposta foi aprovada em votação simbólica no plenário, após já ter sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e será encaminhado para análise na Câmara dos Deputados. Esse PDL busca anular os decretos que homologam as Terras Indígenas Morro dos Cavalos, do povo Guarani Mbya, e Toldo Imbu, do povo Kaingang, ambas localizadas em Santa Catarina.

Além disso, pretende revogar o artigo 2º do decreto 1775/1996, no qual está posto que, “a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios(sic) será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, [...] estudo antropológico de identificação”. Entre outras coisas, o artigo também determina que os grupos indígenas envolvidos no processo, devem participar do procedimento em todas as suas fases, e que o grupo designado para o estudo pode pedir a colaboração de outros membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos. Ou seja, além de desobrigar a realização de estudos, também exclui do processo os povos indígenas e comunidade acadêmica.

A chamada "mãe de todas as boiadas", como ficou conhecida durante o governo Bolsonaro, assim, ganha novos ornamentos e começa a se transformar em uma nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (LGLA), que determinará como o país irá agir em relação à exploração e à demarcação de terras indígenas. De maneira geral, o artigo é o que regula a parte técnica do procedimento administrativo, e determina as etapas de identificação e delimitação de Terras Indígenas(TIs), também discorre sobre levantamento fundiário, sobre as atribuições da Funai e sobre a participação da comunidade indígena no processo de demarcação. O missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, Cleber Buzatto, explica que, “este projeto de lei praticamente derruba todo o procedimento de demarcação de Terras Indígenas no país. Isto afetará a todos os povos indígenas, e não só aos povos das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos”.

Em nota oficial, o Cimi diz que “a Câmara também declarou regime de urgência para a votação do projeto e se negou a estabelecer qualquer diálogo com a sociedade civil". Sua tramitação atravessou todos os procedimentos sem debate e sentenciou medidas que violam a Constituição Federal e instrumentos internacionais de direitos humanos”. O líder do Governo no Senado, o senador Jaques Wagner (PT/BA), não fez nenhum movimento na defesa dos direitos dos povos indígenas. Mesmo sendo minoria, é papel da base governista puxar o debate público para a questão. No entanto, permanece em uma posição de passividade enquanto os direitos ambientais e dos povos indígenas são destruídos. “O governo se demitiu da tarefa de defender os direitos dos povos indígenas no Congresso nacional”.

Ao mesmo tempo que se aprova esses projetos no Senado, Alcolumbre ainda criou um grupo de trabalho (GT) que ficará responsável por apresentar um projeto de lei que regularize a pesquisa e exploração de recursos minerais em TIs. A coordenadoria do GT ficou a cargo da ex-ministra da Agricultura de Bolsonaro, Tereza Cristina (PP). Essa proposta surgiu a partir de um anteprojeto de lei elaborado como resultado da comissão de conciliação sobre o marco temporal. O projeto foi amplamente criticado pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e até mesmo pela ONU até ser retirado, mas ressurgiu agora no senado brasileiro. Um dos responsáveis por articular a inclusão de um processo para liberar a mineração de minerais estratégicos – como ouro, cobre, potássio, urânio e ferro – foi o advogado Luís Inácio Lucena Adams. Adams, que já atuou para a mineradora canadense Potássio do Brasil, também representou o partido Progressistas (PP) na comissão, mesmo partido da senadora Tereza Cristina.

O Cimi tem esperança que o STF garanta que a constituição seja cumprida. Entretanto, é um desafio acreditar nisso, sendo que a Câmara de Conciliação instaurada em abril do ano passado permitiu a vigência do Marco Temporal. E isso cria uma incompatibilidade com a lei do Marco Temporal e passa a ser um dos argumentos utilizados pelo senador Esperidião Amin para colocar uma roupa de legalidade no PDL proposto. Em suma, o PL 2.159/2021 e o PDL 717/2024 passam por cima de instituições – Ministério do Meio Ambiente e IBAMA principalmente – para garantir que o desmatamento continue a aumentar sem que seja considerado ilegal.