A aposta do Bolsonaro “paz e amor”

Ao abrir mão do seu principal ativo político, que é ser o representante daqueles que entre o campo reacionário desejam a via da ruptura, Jair Bolsonaro pode acabar descobrindo que, na política, o caminho aparentemente mais seguro às vezes é o mais perigoso.

4 de Julho de 2025 às 21h00

Bolsonaro segura a Constituição da Nova República durante oitiva no STF. Reprodução/Foto: TV Justiça.

Por Leo Silvestrin

“É a minha retórica”, “peço desculpas”, “meu ministro”, “quer ser meu vice?”. Quem viu ao menos trechos da tão aguardada oitiva de Bolsonaro no STF deve ter se impressionado com o tom adotado pelo Capitão. Outrora definido por Vladimir Safatle como dirigente de “uma revolução em marcha” no Brasil, o que se viu na segunda quinzena de junho foi um Jair rendido, disposto a entregar seus seguidores e reconhecendo a superioridade do grupo liderado por Alexandre de Moraes sobre o seu.

É fato que Bolsonaro é um covarde. Todo fascista, afinal, é um covarde, como bem apontou o camarada Jones Manoel em seu vídeo "O depoimento que “revelou” a verdade sobre Jair Bolsonaro”. São corajosos na hora de brutalizar os indefesos e rápidos na hora de fugir ou se matar quando chega o dia do acerto de contas, como fizeram Mussolini e Hitler.

Graças ao espírito de cagalhão do seu principal chefe, presenciamos no mês passado mais um capítulo de um forte processo de desmoralização das forças da extrema-direita. De acordo com um levantamento encomendado pelo jornal O Globo no dia do julgamento, 65% das menções à Bolsonaro nas redes sociais foram negativas, com apenas 14% sendo positivas e as demais sendo neutras. Foi uma derrota tática importante em um momento fundamental da sua trajetória, mais vergonhosa ainda para uma força política que se consagrou por ter um forte poder de fogo na internet.

O último ato em defesa de Bolsonaro reuniu apenas 12,4 mil pessoas na capital de São Paulo, de acordo com levantamento da USP. O número, dada a desorganização e fraqueza das forças da esquerda, é alto. Mas para os padrões de mobilização do bolsonarismo, é ridiculamente baixo. A covardia, ao que parece, tem custado caro.

Covardia e estratégia

Mas seria um erro resumir a atuação de Bolsonaro na sua oitiva a um simples ato de covardia. A atitude servil de Bolsonaro se baseia em uma estratégia política bem definida: levar a extrema-direita de volta ao poder pela via democrática em 2026, nas eleições presidenciais.

Esgotados, aos olhos dos dirigentes destas forças, todos os meios para organizar uma nova insurreição militar que derrube a classe média social-democrata do Executivo e a burguesia democrática do STF, resta deixar o governo Lula sangrar e colocar em seu lugar um presidente alinhado à Bolsonaro e disposto a anistiá-lo depois da sua posse. É essa também a aposta extra-oficial do governo Trump, de acordo com  o Portal Metrópoles. A mídia empresarial noticia diversos movimentos do núcleo duro bolsonarista para conquistar esse objetivo, que tem no cerne as negociações entre o grupo da extrema-direita e as organizações da direita fisiológica que gravitam em torno do governador Tarcísio.

Bolsonaro já aceitou que o seu destino está entrelaçado com o apoio que ele precisa consolidar junto ao Centrão. Desde a pandemia e a conquista da presidência da Câmara junto a Arthur Lira, o apoio desse grupo, que articula a unidade entre as diversas oligarquias regionais, foi fundamental para impedir que a crescente insatisfação manifestada entre líderes dos partidos burgueses e grupos empresariais encurtasse a vida do seu governo pela via do impeachment. A impossibilidade de construir um partido político próprio a tempo e a fusão do seu movimento junto ao Partido Liberal consagrou essa aliança à nível partidário, o que teve como consequência o apoio a diversos quadros conservadores tradicionais nas eleições municipais de 2024.

A esperança de Bolsonaro é que a fusão com essas forças políticas tradicionais da burguesia, em tese sob a sua liderança, garanta o seu lugar natural como líder da direita brasileira por mais tempo, mesmo dentro da prisão. Em algum nível, é possível ver que esses movimentos têm dado certo: mesmo depois do 8 de janeiro, entre 2023 e 2024 Bolsonaro figurou como estrela em uma série de eventos oficiais dos capitalistas, em especial do agronegócio, mas também em encontros de outras frações de classe como os dos empresários dos transportes.

Bolsonaro participa de evento do agronegócio em Goiânia, junho de 2025. Reprodução/Foto: Sandro Gianelli/Conectado ao Poder.

Bolsonaro se manteve e ainda se mantém como principal opção da massa empresarial do país, que se lembra das suas promessas de exterminar o sindicalismo e a esquerda e ampliar ao máximo possível o lucro para o mercado, e se mantém como o principal nome da direita capaz de rivalizar com Lula no voto popular.

Mesmo com a retórica insurrecional que lhe é característica, e que consagrou o seu lugar no imaginário das camadas médias, empresários e trabalhadores, Bolsonaro aprendeu a importância dos grandes acordos pelo alto, que caracterizam a política das classes proprietárias do Brasil. Foi por isso que abandonou o discurso estatista, abraçou a lógica da privataria e defendeu todas as contrarreformas que unificaram a burguesia durante o golpe de 2016 e o governo Temer. Nisso, não difere de outros quadros da direita insurrecional que já andaram sobre a terra, como os fascistas e os nazistas, que abandonaram a demagogia anticapitalista das suas plataformas originais quando chegou a hora de governar para a burguesia.

Historicamente, a extrema-direita tem grande facilidade de implementar o seu programa dentro das democracias liberais. Nem Mussolini nem Hitler precisaram derrubar os seus governos para chegar ao poder: o fascista precisou fazer só uma marcha sobre Roma para o Rei Vítor Emanuel III nomeá-lo primeiro-ministro, enquanto o nazista foi nomeado chanceler por Hindeburg, presidente conservador, mesmo tendo minoria no Parlamento. Basta apenas que as classes dominantes sintam sua hegemonia ameaçada para que aceitem entregar o poder para aventureiros que conseguem mobilizar a massa enquanto mantém a propriedade privada e as desigualdades de classe.

Bolsonaro, na verdade desde a sua juventude política, sempre apostou na via nazifascista: golpear o regime por dentro do regime, pelo Executivo, via sufrágio universal. O 8 de janeiro é o seu “putsch da cervejaria”, fazendo um paralelo com o primeiro golpe de Estado fracassado de Hitler em 1923. É uma primeira verdadeira demonstração de forças, cuja derrota não enterra o seu projeto estratégico, apenas força um recuo tático.

A outra alternativa clássica da extrema-direita seria a via franquista, da guerra civil contra o Executivo progressista (e no nosso caso, contra o Supremo), como também foi testada e saiu habilmente vitoriosa no Brasil em 1964. Mas entre os quadros do Exército que integram a coligação bolsonarista derrotada, sempre que se discute em público a via insurrecional aparece um termo recorrente: o “day after”. As condições para a sustentação do novo regime, desprovido da legitimidade garantida pelo voto direto, eram uma grande preocupação dos golpistas, e seriam ainda mais complexas de se conquistar agora. Por uma série de fatores internos e externos, a intentona não se consumou em 2022, e só restou a Bolsonaro ficar chorando todos os dias, deprimido por não conseguir ser o ditador que sempre sonhou ser.

Donald Trump em julgamento em 2024, meses antes de ser reeleito. Reprodução/Foto: Steven Hirsch-Pool/Getty Images.

A vitória de Trump, no entanto, era a sertralina que o Capitão precisava. O governo Trump II tem se demonstrado muito mais organizado e coeso ideologicamente do que a sua primeira administração. Desde o processo eleitoral, ele conta com uma plataforma bem delineada para conseguir transformar o Estado em um novo regime de extrema-direita, com o megaempresário à cabeça: trata-se do Projeto 2025, desenvolvido por ex-membros do seu governo. Embora Trump tenha mentido durante a campanha, falando que nada tinha a ver com o projeto, a realidade é que o documento se tornou um guia para a atuação do governo fascista.

Seguindo a lógica histórica da extrema-direita, tudo está sendo feito para turbinar o Poder Executivo dos EUA contra os demais órgãos do Estado, em uma série de movimentos que testam até quando o povo aceita e/ou apoia que o seu governo atropele o Congresso e a Suprema Corte. Todo o imaginário da direita está sendo reforçado pelos decretos e leis do trumpismo, que criminaliza pessoas trans, joga imigrantes em campos de concentração em El Salvador administrados pelo fascista Bukele, e está construindo uma poderosa máquina de propaganda para defender o seu governo. No âmbito internacional, tenta construir o seu próprio campo político, que seja independente tanto do liberalismo europeu quanto das cadeias produtivas chinesas, com o regime do Partido Comunista da China tendo sido definido, desde a sua primeira administração, como o principal inimigo da extrema-direita organizada pelo movimento MAGA.

Embora ainda não tenha ainda uma plataforma tão bem definida quanto é o Projeto 2025 de Trump, não há dúvidas de que a implementação desse programa é fonte de inspiração para a extrema-direita brasileira. É na possibilidade de repetir o trumpismo que mora a esperança dos líderes do fascismo nacional, da mesma forma que buscaram fazer em 2018. Assim, a reorientação tática e o arco de alianças do bolsonarismo estariam plenamente justificadas, pelo menos aos olhos dos seus dirigentes.

Disputando a burguesia

Só que Bolsonaro conta com um adversário que Trump não teve, que é um Poder Judiciário nacional forte e decidido a interromper sua marcha sobre o Brasil. Enquanto Trump pode ficar livre das investidas judiciais por conta da maioria de juízes indicados pelos republicanos, Bolsonaro tem que lidar com um STF hegemonizado por uma maioria de ministros indicados por administrações nacionais petistas, que, mesmo que não sejam de fato alinhadas ideologicamente com o programa do PT, não têm lealdade formal com nenhum partido político específico, como ocorre no sistema bipartidário estadunidense.

Com uma Nova República profundamente enfraquecida desde 2013, é público o fato de que o STF tem tentado garantir o seu lugar como Poder Moderador. O julgamento do golpe de Estado, que pretende levar pela primeira vez um chefe das Forças Armadas brasileiras à prisão, tem a expectativa de finalmente garantir a conquista desse título para o Judiciário. O resultado periga ferir gravemente os planos da direita insurrecional, que desde o primeiro ano do governo Bolsonaro viu o STF como a principal força política com condições de barrar a sua subversão da Constituição de 1988.

Para combater esse poder, o objetivo estratégico do bolsonarismo tem sido muito claro: forçar o rompimento da aliança entre burguesia e STF. O discurso oficial dos chefes do bolsonarismo é o de que o Supremo está aliado com a esquerda e está perseguindo a direita. Para isso, tentam pintar Alexandre de Moraes como chefe de uma espécie de terror vermelho, que busca criminalizar o conservadorismo no Brasil e garantir a hegemonia permanente do progressismo.

Lewandowski, Pacheco, Bolsonaro e Moraes. Reprodução/Foto: Isac Nóbrega/PR.

Bolsonaro usou a oitiva como tribuna para aplicar mais uma vez essa tática. Durante o depoimento, o ex-presidente frisou, em um tom de quem traz um argumento sensato, que suas peças de propaganda foram constantemente censuradas pelo TSE chefiado por Moraes, enquanto o mesmo tratamento não era dado à Frente Ampla de Lula. Como ficou claro durante a oitiva de Cid, não é à toa que o projeto de decreto golpista foi enxugado por Bolsonaro para conter apenas a prisão do “Xandão”, em um movimento que o grupo achava que aceleraria a separação entre as classes proprietárias e as “maçãs podres” do Supremo.

Só que o discurso não corresponde à realidade. Além da óbvia origem política e de classe de Moraes, nomeado por Temer durante o golpe que uniu todas as frações da burguesia em 2016, a maioria do STF repetidamente se mostra comprometida com todas as principais demandas da burguesia nacional. O ataque ao piso da enfermagem, passando por cima do que foi aprovado pelo Congresso dominado pela direita, e a mais recente decisão de Gilmar Mendes paralisando as decisões da Justiça do Trabalho, que tem igualado os direitos trabalhistas previstos na CLT aos trabalhadores falsamente identificados como PJs, mostram que aquele velho Supremo de 2016, que julgou constitucional o Teto de Gastos de Temer, segue vivo e operante. O símbolo da burguesia democrática do STF é o ministro Barroso, que num dia vai no Congresso da UNE falar que “vencemos o bolsonarismo” e no outro aparece cantando karaokê numa festa com os donos do iFood.

Interessantemente, mesmo com todos os gestos pacifistas direcionados aos chefes do Supremo, na mídia empresarial a alcunha de “paz e amor” foi dada não a Bolsonaro, mas a Moraes. No mês passado, veículos como a Folha de S. Paulo, a CNN e a Zero Hora destacaram o clima de descontração entre juiz e acusados, em tom diferente do adotado com as testemunhas. A análise recorrente é que Moraes buscou afastar a imagem de ser um carrasco e preservar a imagem de neutralidade política do Supremo, neutralizando a tática da extrema-direita. A ironia de Moraes frente aos acusados e seus advogados, ironizando os pedidos de adiamento das sessões e de alianças eleitorais, também divertiram as bases progressistas, não pela confraternização entre as partes, mas por um sentimento de que o núcleo duro bolsonarista se encontra desarmado e levado ao ridículo.

Mas a postura não deixa de ser, também, uma sinalização para toda a burguesia, de que, apesar dos discursos “anti-imperialistas” e “antifascistas” do ministro, sempre haverá espaço para uma direita que saiba jogar as regras do jogo, no projeto que o Partido do Judiciário tenta impor ao conjunto da República. Podem ficar tranquilos, senhores, pois aqui não se trata de terror vermelho.

Para quem deseja algo como um julgamento de Nuremberg, um clima ameno como esse só pode ser frustrante. Quem lembra das 700 mil vidas assassinadas pela política eugenista de Bolsonaro, do genocídio comandado pelo Executivo durante a pandemia, só pode ter nojo de cada momento de alegria pública desses senhores, mesmo que a falsa alegria encubra o cinismo. Falta, e muito, terror vermelho contra esses bandidos que governaram o país.

Repetir Lula

Todo o julgamento ocorre como uma espécie de versão invertida do que foi o julgamento de Lula pelas mãos de Sérgio Moro em 2017. Sem buscar descontração nenhuma, Lula encarou Sérgio Moro desde o início, buscou transformar o julgamento sobre sua conduta em um julgamento contra a própria Lava-Jato e a figura de Sérgio Moro. Já está claro que repetir a estratégia de Lula é o objetivo da quadrilha direitista chefiada por Bolsonaro. Acreditam que a sua prisão será momentânea, a transformará em um injustiçado e aumentará suas chances de retornar ao poder num futuro próximo, como aconteceu com Lula.

Como bem analisou o comunista alemão August Thalheimer em sua obra sobre os significados do fenômeno fascista, ao longo da história a extrema-direita costuma ter uma obsessão por repetir as táticas adotadas pelas forças que vem da classe trabalhadora. É parte da sua demagogia pseudo-socialista, como pretensas forças populares que lutam contra as elites. Sem dúvidas, isso tem relação com o caráter parasitário dessa força política, que surge em momentos, como os definidos por Marx no 18 de Brumário, “quando a burguesia já perdeu e a classe operária ainda não tem forças para governar”.

Só que Bolsonaro tem o azar de, ao contrário dos seus antepassados, ser um fascista em tempos onde não existem mais forças revolucionárias relevantes. Sua trajetória, então, só pode emular uma esquerda que se encontra fragmentada, carente de uma força dirigente que consiga de fato impôr uma alternativa de poder frente ao regime da Nova República. A própria fragmentação da extrema-direita, que não tem nem de perto uma disciplina militar e uma organização nacional centralizada — basta lembrar o fiasco que foram as indecisões de Bolsonaro sobre quais candidaturas apoiar em 2024 — corresponde às condições de luta da sua contraparte política.

Para as verdadeiras forças da classe trabalhadora, o fato é que a estratégia de Bolsonaro frente à repressão do STF, na verdade, tem sido maravilhosa: ela é uma versão rebaixada de uma estratégia que deu errado! A rendição de Lula não foi um ato de brilhantismo que salvou o Brasil do fascismo e consagrou a vitória da esquerda. Foi o absoluto contrário: foi um gesto servil, que legitimou o golpismo da Lava-Jato e entregou o poder a Bolsonaro. Ao invés de Lula se exilar e denunciar o golpe institucional e os movimentos da extrema-direita, usando o seu prestígio mundial para combater as consequências do golpe de 2016, ele sacrificou a sua própria força política em nome de manter a estabilidade do regime da Nova República. Ao invés de mostrar ao povo que era a hora de desobedecer e não baixar a cabeça, ele ordenou a rendição da classe trabalhadora. O resultado foram 700 mil vidas perdidas.

E os grandes acontecimentos seguem se repetindo, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Lula discursando no Sindicato dos Metalúrgicos sobre como acredita na justiça e não na revolução, frente a um regime impopular que o perseguia; Bolsonaro se defendendo levantando em suas mãos uma Constituição que ele diz jurar defender, mas que simboliza tudo que ele sempre lutou contra e que ele jurou rasgar durante toda a sua trajetória como deputado. Até o seu abandono simbólico dos seus mais fiéis insurretos, os defensores do golpe militar que visava consagrá-lo como ditador, chamados de “malucos”, não deixa de ser uma repetição da prisão de Lula: lembra as porradas que os dirigentes da CUT deram contra os mais fiéis apoiadores da esquerda em São Bernardo do Campo, que tentavam forçar Lula a resistir à prisão da Polícia Federal, enquanto as tropas da Lava-Jato se dirigiam ao espaço que, um dia, foi o epicentro da luta do proletariado brasileiro.

Manifestantes derrubam portões do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para tentar impedir rendição de Lula. Reprodução/Foto: Werther Santana/Estadão Conteúdo.

Alianças e rachas

A estratégia de Bolsonaro é a síntese entre o seu projeto e o projeto da direita tradicional. É claro que a direita historicamente apoiou a ascensão de diversos líderes e movimentos da extrema-direita, como é o caso do próprio golpe de 1964 no Brasil. No entanto, as forças conservadoras que apoiam Bolsonaro demonstram ter o seu próprio projeto estratégico.

Essas organizações entenderam o recado das principais frações de classe da burguesia brasileira, que não desejam nesse momento uma ruptura violenta com a Nova República, apenas a sua “modernização”. Tem interesse, no entanto, na grande base popular interclassista que Bolsonaro conquistou na última década, e querem demonstrar lealdade suficiente ao líder sem ao mesmo tempo dar razão ao espírito insurrecional que vive entre os mais altos quadros do movimento bolsonarista. Daí que surge a figura de Tarcísio, o militar privatista adorado pela Faria Lima, para tentar selar essa nova fase da aliança da direita brasileira.

Talvez a expectativa dessa coalizão direitista seja a de que o bolsonarismo se transforme numa espécie de fujimorismo brasileiro — a corrente peruana que agrupa as diferentes forças políticas que se consideram continuadoras do legado de Alberto Fujimori, o falecido ex-ditador de extrema-direita que, mesmo preso, continuou tendo suas posições representadas no parlamento do Peru. A jogada na oitiva do STF entra claramente com esse objetivo, de mostrar moderação à burguesia democrática do Supremo para, em troca, manter o seu espaço na política brasileira. Assim, se inutilizaria pedidos como o do senador petista Humberto Costa, que no ano passado defendeu à PGR que o registro eleitoral do PL fosse cassado, por conta da operação montada pelo partido contra o resultado das urnas em 2022.

A questão óbvia para Bolsonaro é a seguinte: qual a garantia que ele tem de que Tarcísio vai se manter fiel à extrema-direita e vai anistiar ele e o seu grupo depois de 2026? Qual a garantia que o governador de São Paulo não vai realizar o seu próprio acordo pelo alto com a burguesia, “com o Supremo, com tudo”, e vai manter Bolsonaro na prisão para garantir a estabilidade do regime da Nova República? O ex-presidente tem atritos públicos com Tarcísio, considerado por ele moderado demais — é claro, para o líder fascista, a matança promovida impunemente pela Polícia Militar dirigida pelo governador não tem nada de especial, em um país que vive há décadas uma guerra civil não declarada contra as periferias e favelas.

Do outro lado da aliança, representantes dessa ala política da burguesia não disfarçam: recentemente, o editorial do Estadão exigiu o rompimento de Tarcísio com Bolsonaro, mostrando a insatisfação de um setor vocal da grande burguesia com a coligação liberal-fascista. Líderes do Centrão têm trabalhado para tirar Bolsonaro do jogo o mais rápido possível, já certos de que a prisão é inevitável e que a prioridade é garantir que a base eleitoral do fascista seja transferida para o novo candidato unificado das direitas.

Mas a ameaça ao bolsonarismo não vem só do Centrão como vem também da própria extrema-direita. A candidatura de Pablo Marçal no ano passado, disputando a consciência reacionária na capital econômica do país, foi uma enorme pedra no sapato de Bolsonaro e seus aliados.

Ainda que Marçal tenha fragilidades importantes, como não ter ligação orgânica com as forças policiais e militares e não desfrutar de boa relação com o mercado, sua candidatura mostrou o racha entre os fascistas e o descontentamento de parte importante da base bolsonarista com as orientações dos seus dirigentes. O encontro entre Marçal e membros do governo Bukele em El Salvador — que, como ele, também é um publicitário de extrema-direita, que habilmente conseguiu derrubar o antigo regime de conciliação salvadorenho, conquistando o posto de ditador — também mostraram a disposição de parte do fascismo mundial em apostar em uma outra figura que não seja Bolsonaro para realinhar ideologicamente a nação brasileira. Mesmo inelegível, o papel desempenhado por Marçal mostra claramente que a massa que almeja a insurreição fascista também pode descartar Bolsonaro um dia.

O fascismo, como força que vem das camadas intermediárias, tem que abraçar as bandeiras de diversas classes para manter a sua base, ao mesmo tempo que a realidade impõe que ele sirva aos grandes empresários. Sustentar esse equilíbrio à longo prazo é impossível, como a história vez após vez há de demonstrar. Bolsonaro tenta manter sua ligação com a direita tradicional, representante orgânica da burguesia, mas com isso desmobiliza sua base, que é o único motivo da burguesia tê-la abraçado-o em primeiro lugar. Radicalizar rumo à insurreição, a opção impopular da burguesia hoje, parece ser cada vez mais um caminho impossível, já que Bolsonaro repudia abertamente essa hipótese, reprime aqueles que a defendem e se afasta cada vez mais do Partido Fardado, que por sua vez também tenta salvar o que é seu.

Ao abrir mão do seu principal ativo político, que é ser o líder da via da ruptura reacionária, Bolsonaro pode acabar descobrindo que, na política, o caminho aparentemente mais seguro às vezes é o mais perigoso.

Tarcísio, Nunes e Bolsonaro. Reprodução/Foto: Tomzé Fonseca/Futura Press/Estadão Conteúdo.

Outras apostas

Frente à essa encruzilhada do fascismo nacional, cabe indagar: a “revolução cultural conservadora”, que Safatle nomeou Bolsonaro como líder em seu artigo de 2021, está viva e forte, apenas vivendo um processo de reorganização, ou estaria, na verdade, prestes a ser decapitada?

A primeira alternativa é atraente principalmente para as forças que defendem o apoio incondicional à reeleição de Lula em 2026. É o caso de Valério Arcary, teórico da Resistência/PSOL, que afirma em seu artigo, erroneamente, que houve uma “vitória da extrema direita nas eleições municipais de 2024”. Na verdade, a força mais vitoriosa foi o Centrão, o campo da burguesia fisiológica que, em grande parte, se manteve coligada à Bolsonaro mas que não deseja erguer um novo regime político, objetivo estratégico da direita insurrecional. Abílio Brunini, atual prefeito de Cuiabá, é o único bolsonarista puro-sangue (com todos os significados horrendos que o termo traz) que saiu vitorioso em 2024. Embora seja uma puxadora de votos importante e tenha se expandido nas legislaturas, a extrema-direita funcionou no geral como força coadjuvante frente a todos os outros mecanismos de hegemonia que o Centrão tem para se manter no poder (aliança com empresários locais, emendas parlamentares, cooptação de lideranças comunitárias, etc.). A imprecisão, de certo, ajuda aos objetivos da análise, que é justificar o papel da organização do autor como força coadjuvante do petismo em nome do combate a um fascismo invencível.

A segunda alternativa, por outro lado, é útil às forças e militantes que defendem a (correta) necessidade da classe trabalhadora revolucionária atuar como oposição de esquerda ao governo Lula. Afinal, se o fascismo for encarado como uma espécie de “erro de percurso” da burguesia, o qual muito provavelmente não tende a se repetir no curto prazo, a esquerda radical e os comunistas ficam livres para se omitirem em relação ao combate ao fascismo, na prática engrossando o coro dos que terceirizam o antifascismo ao STF. No pior dos casos, podem chegar a conclusão de que tudo não passa de “luta entre burgueses”, cujo desfecho não interessa à classe trabalhadora.

Mas apesar de não concordarmos com as conclusões da primeira opção, também não seria prudente acreditar na segunda. A aposta de Bolsonaro segue viva porque a burguesia sempre vai precisar de um Bolsonaro nos momentos de crise. Não resta dúvidas desse fato quando o editorial do Jornal O Globo rasga elogios para Javier Milei, o libertário defensor da ditadura de Videla que tem imposto terríveis derrotas ao povo trabalhador, em troca de lucros extraordinários para a burguesia argentina e internacional. A castração de Bolsonaro não implica, de forma alguma, na castração permanente da extrema-direita, que teria que se converter afinal em uma castração contra a própria direita, algo politicamente inviável para um regime capitalista como o Brasil.

Também não cabe, por óbvio, apostar na alternativa desenvolvida por facilitadores do fascismo como os oportunistas do PCO, que deixaram de fazer a única coisa útil que sabiam fazer — isso é, é bater em direitistas — para começarem a tentar disputar a base bolsonarista, forçando uma identificação entre as insurreições da esquerda com as da direita, traficando ainda outras bandeiras esdrúxulas, como o direito de ser homofóbico, o direito de direitistas expressarem suas idiotices impunemente, dentre outras panacéias dessa infame aliança vermelha-verde-amarela. Mais uma tática “brilhante”, que o máximo que faz é tornar a seita dos Pimenta em bobo da corte de todos os campos políticos. Como, aliás, são os seus contrapartes gringos, os “trumpistas comunistas” do autoproclamado “Partido Comunista Americano” (ACP), que dispensam maiores apresentações.

Apesar do fascismo ser um fenômeno intrínseco dos regimes burgueses, há de se apoiar a prisão de Bolsonaro e a repressão contra a extrema-direita. Para isso, não é necessário inventar nenhuma desculpa sobre o Estado democrático ou o respeito à Constituição de 1988: simplesmente, os militantes direitistas não devem ter o direito de expressarem impunemente suas opiniões, disputarem o jogo político e, muito menos, planejarem insurreições. Não precisamos de desculpas para o terror, parafraseando essa bela frase de Marx, mesmo que o terror neste momento não seja ainda o nosso.

Os argumentos de alguns liberais, uns facilitadores abertos do fascismo e outros meros idiotas úteis, sobre uma suposta “suspeição” do Supremo para julgar um atentado cometido contra a própria Corte ou sobre o direito de Bolsonaro ser julgado pelo Plenário do Supremo e não só pela Primeira Turma, são todos absolutamente irrelevantes. Não se trata defender um ou outro modo mais “justo” e “constitucional” de julgar o bolsonarismo, porque, para os reais interesses da ampla maioria do povo brasileiro, todo esse regime é em si ilegítimo. Trata-se de aproveitar as contradições das forças políticas da burguesia e a momentânea desarticulação das suas tropas mais militantes, criaturas voltadas contra o criador que agora dele recebem o castigo, para avançar com as nossas próprias tropas, com a nossa própria missão, como militantes da causa revolucionária da classe trabalhadora.

Contra-ato antifascista em frente ao Comando Militar Sul em 2020, em ocasião das manifestações nacionais do bolsonarismo pautando o golpe militar. Reprodução/Foto: Raíssa Oliveira.

Parte da missão histórica das forças revolucionárias do povo trabalhador consiste em erguer um regime que criminalize toda a direita, que coloque suas organizações na ilegalidade e que censure, sim, os seus líderes, os seus partidos, os seus discursos, enfim, toda a sua produção intelectual, tudo que serve ao desgraçado objetivo de garantir que uma criança vai continuar passando fome, que um mendigo vai ser fuzilado, que um imigrante vai ser colocado num campo de concentração, que uma nação vai dizimar a outra, dentre tantos outros objetivos declarados e não declarados desse cancerígeno campo político mundial.

O comunismo também é temido pela direita porque foi o regime soviético que pela primeira vez a colocou na ilegalidade, proibindo o voto dos grandes empresários, dos ex-membros das polícias, de toda a militância ativa ou pretérita dos movimentos monarquistas, e que chutou, com a força da lei e das armas dos revolucionários, todos os discursos preconceituosos, à época centrados principalmente contra os judeus, para fora do debate público. No regime dos sovietes chefiado pelos bolcheviques, nem a direita moderada do Partido Constitucional Democrata (Kadetes) foi poupada. É assim que tem que ser.

Por isso mesmo, a luta pela repressão aos fascistas é parte da luta por reformas, que todo militante consciente da classe trabalhadora revolucionária não tem o direito de abdicar. Toda a luta por reformas carrega em si o perigo de ser transformada em cooptação: as lutas sindicais ocorridas durante a Ditadura Militar em defesa das liberdades democráticas, entre elas a luta pelo direito à greve, tiveram como consequência a construção de uma institucionalidade que cooptou o sindicalismo e castrou as expressões mais combativas do movimento que nasceu das greves do ABC. Acaso foi um erro lutar contra as leis anti-sindicais da ditadura? Óbvio que não. Tudo depende da estratégia que acompanha a tática, e da clareza ideológica para saber não confundir a tática com a estratégia.

Nenhum comunista que se preze tem dúvidas de que a burguesia democrática tem como objetivo igualar a direita insurrecional com a esquerda insurrecional, como fazem os tribunais da Europa que igualam os nazistas aos manifestantes que lutam contra o genocídio em Gaza. A questão é que quando a burguesia democrática ataca a extrema-direita, ela abre brecha para que os próprios fundamentos do regime sejam postos em contradição. Pois a extrema-direita nasce do regime capitalista, com ele vive e só com ele pode renascer. Nossa tarefa é lutar pela repressão contra os reacionários, não só os da extrema-direita como também contra todos da direita, que são os que permitem que os seus filhos fascistas tomem o poder, ao mesmo tempo em que apontamos as contradições das democracias liberais e mostramos que o único regime que de fato pode vencer permanentemente a direita é a ditadura do proletariado.

Polícia reprime manifestação antifascista em frente à corte grega que julgou partido neonazi Aurora Dourada como organização criminosa, outubro de 2020. Reprodução/Foto: Ayhan Mehmet/Anadolu Agency/Getty Images.

Nesse sentido, é absolutamente justo que a esquerda revolucionária defenda não só a prisão dos arquitetos e financiadores da intentona fascista de 2022 como também exijam a criminalização do próprio Partido Liberal, da mesma forma que os comunistas e toda a esquerda grega defenderam e conquistaram a criminalização do partido neonazista Aurora Dourada, que por pouco não tomou o poder na Grécia durante a década passada. Afinal, como é possível que o STF permita a existência do QG que tramou a sua própria destruição três anos atrás? Se o Supremo não cumpre essa demanda, ele se acusa como impotente de sanar de vez a República do câncer bolsonarista; se ele cumpre, quem tem as melhores condições para colher os frutos dessa medida é a esquerda, não a burguesia democrática do Supremo — que, aliás, tem nas bases progressistas grande parte da sua própria força.

Aos partidários dessa missão histórica, no entanto, apostar apenas na pressão ao STF e aos demais órgãos do regime da Nova República para vencer de vez a extrema-direita também seria um erro terrível. Tirar o monopólio da violência contra os fascistas das mãos do Supremo não é simplesmente fazer um ato contra o bolsonarismo, como faz a ala esquerda do governismo. É seguir o exemplo dos revolucionários da Aliança Nacional Libertadora, cuja Levante Antifascista por ela organizado completa um século neste ano, e que foram, por um período, os principais combatentes contra a besta integralista. O seu mais belo exemplo, em parceria com a Frente Única Antifascista, coligação de esquerda da época, foi a marcha popular que caminhou até colidir com a manifestação fascista na Praça da Sé em São Paulo, impondo a derrota que ficou conhecida como a “Revoada dos Galinhas Verdes” de 1934, experiência de valor universal para se lidar com os comícios da direita.

Mais recentemente, cumprir essa missão passa por seguir o exemplo das torcidas antifascistas, que protagonizaram, posteriormente seguidas pelo conjunto da esquerda radical, episódios belíssimos de enfrentamentos e emboscadas contra as hordas bolsonaristas, como aconteceram em frente ao Comando Militar Sul de Porto Alegre em maio de 2020. Ainda na atualidade, cabe dizer que tirar o monopólio da violência contra os fascistas das mãos da burguesia democrática consiste, também, em criar os meios para se descobrir a identidade de toda essa massa anônima de reacionários que se escondem nas redes sociais, garantindo que eles ainda cruzem com alguém que lhes tire a valentia que eles só têm na internet.

Passa também, ao contrário dos que dizem alguns esquerdistas bem intencionados, em debater publicamente com os direitistas, moderados ou fascistas. Isso é, sim, uma tática justa, com a condição de que todo direitista debatedor seja tratado não como um digno adversário, um amigo do qual simplesmente divergimos em um belo exercício de sofisma, e sim como um inimigo a ser derrotado. O fato é que o regime da Nova República legaliza a direita no Brasil, e simplesmente fingir que ela não existe é uma forma infantil de lidar com o problema causado pela sua existência.

Expor toda a excrescência da direitalha criminosa que governa o nosso regime é uma necessidade. É fundamental expor a hipocrisia de canalhas como Kim Kataguiri, que brincam tão alegremente com Jones perguntando se ele o “mataria em uma revolução”, enquanto quem mata no Brasil é a direita, as Polícias Militares são doutrinadas pela direita, os ruralistas que assassinam indígenas são de direita, enfim, toda a banda podre que violenta o nosso país pertence ao campo da direita. O maior medo deles é que um dia eles sofram um centímetro do que eles impuseram à ampla maioria do povo durante os cinco séculos em que as classes proprietárias governaram esse pedaço de terra que resolveram chamar de Brasil.

Esse ínfimo sofrimento agora é sentido pelo covarde e chorão Bolsonaro. Sem dúvidas, não deixa de ser infinitamente menor do que toda a desgraça que ele causou durante os quatro anos em que ocupou a cadeira da presidência — ainda que, de um ponto de vista absolutamente subjetivo, ver o sofrimento dele seja muito engraçado.

Bolsonaro perde e chora. Reprodução/Foto: Marcos Corrêa/PR.

Por acaso é só através desses embates que o fascismo vai ser derrotado? Evidente que não. O outro caminho todos já sabem: é organizar a classe trabalhadora nos locais de trabalho, moradia e estudo, para a construção de novos instrumentos políticos que conquistem a redução da jornada do trabalho, os aumentos salariais, a manutenção do caráter público e gratuito dos serviços essenciais, o direito à moradia, dentre outras tantas batalhas importantes do nosso povo, colocando a classe em movimento e tirando-a das mãos dos reacionários. Mas dizer em voz alta que a direita não deve ter o direito de existir, mesmo na sua máscara mais moderada, é algo que poucos têm coragem de dizer no nosso país. Historicamente, ao longo do mundo, quem ergue a voz para falar essa justa verdade são sempre as e os comunistas.

Se a nossa aposta estiver correta e a história demonstrar a justeza da nossa linha, chegará o dia em que conquistaremos finalmente o nosso verdadeiro terror vermelho contra os reacionários, como tantos outros povos mais sábios já demonstraram que é possível conquistar. Se esse cenário se confirmar, será enfim a vez da direita sentir saudades de Alexandre de Moraes. Aí, quem sabe, seguirão o exemplo de Bolsonaro e dirão, com um misto de cinismo e arrependimento: “meu ministro”...