Arapongagem e golpe: PGR dá início à última fase antes do julgamento de Bolsonaro

O ex-presidente responde pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado ao patrimônio público e deterioração de patrimônio tombado.

17 de Julho de 2025 às 18h00

Jair Bolsonaro e Alexandre Ramagem na solenidade de posse do diretor-geral da ABIN em 2019, Brasília, DF. Reprodução/Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

Por Mônica Guerra

O procurador-geral da República, Paulo Gonet, encaminhou nesta segunda-feira (14) ao Supremo Tribunal Federal as alegações finais que podem levar à condenação de Bolsonaro à pena máxima de prisão – aumentada pelo seu próprio mandato. O ex-presidente responde pelos crimes de tentativa de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado ao patrimônio público e deterioração de patrimônio tombado.

O envio das alegações abre a fase final da instrução processual, que receberá ainda a manifestação do delator e das defesas. A Primeira Turma do STF deve julgar o caso em setembro. Além de Bolsonaro, respondem também Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Alexandre Ramagem, Anderson Torres, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira e Mauro Cid.

No documento de 517 páginas, Gonet sistematiza cronologicamente a articulação entre diversos núcleos e frentes de preparação do golpe. “Com o apoio de membros do alto escalão do governo e de setores estratégicos das Forças Armadas, [Jair Bolsonaro] mobilizou sistematicamente agentes, recursos e competências estatais, à revelia do interesse público, para propagar narrativas inverídicas, provocar a instabilidade social e defender medidas autoritárias. A sua atuação, pautada pela afronta à legalidade constitucional e pela erosão dos pilares republicanos, teve por objetivo último sua continuação ilegítima no comando do país e o enfraquecimento das instâncias públicas, em negação do princípio da alternância democrática, da soberania popular e do equilíbrio entre os Poderes”, relata o procurador.

A reconstrução da tentativa de golpe, além de revelar um quadro de fortalecimento institucional e político das Forças Armadas desde o governo de Michel Temer, também joga luz sobre os vínculos da caserna com diversas mobilizações clandestinas de outros agentes e instituições públicas que se articulavam já naquele período.

As arapongas de Ramagem

Em junho deste ano, o ministro Alexandre de Moraes determinou o levantamento do sigilo sobre as investigações envolvendo o uso ilegal da estrutura da Agência Brasileira de Inteligência para espionagem de opositores ao governo Bolsonaro, realizada com o objetivo de sabotá-los e neutralizá-los. No despacho, o ministro argumentou que os vazamentos seletivos contínuos das informações causaram prejuízo à instrução do processo e matérias confusas, contraditórias e errôneas na mídia.

Apesar de não constar entre os indiciados pela Polícia Federal no caso da ABIN, Bolsonaro é o principal beneficiário das ações ilegais que se estruturam paralelamente dentro do órgão. Essa hierarquia de inteligência operava em sintonia com os núcleos diretamente envolvidos na trama golpista, articulando um extenso aparato de disparo de fake news, órgãos policiais federais, Forças Armadas, agronegócio e gabinetes legislativos.

Entre os indiciados estão Carlos Bolsonaro e Alexandre Ramagem. O primeiro compunha, junto de seu pai, o Núcleo Político que, de acordo com a PF, atuava como “centro decisório e principal destinatário das vantagens ilícitas”. O segundo, ex-diretor-geral da ABIN, liderava o Núcleo de Comando e Alta Gestão que funcionava como ponte entre as diretrizes estratégicas formuladas pelo alto escalão do governo e as operações levadas a cabo pelo Núcleo de Estrutura Operacional de Inteligência (Doint), composto por servidores da alta cúpula da Agência. Outros núcleos eram dedicados, ainda, à Assessoria da Alta Gestão e Execução de Ações Clandestinas, Vetores de Produção e Propagação de Fake News, e Embaraçamento da Investigação - este último composto inclusive pelo atual diretor-geral da ABIN, Luiz Fernando Correa.

O monitoramento ilegal acontecia, principalmente, por meio do software First Mile, comprado com licitação dispensada no final do governo Temer. Através do programa, foram realizadas quase 61 mil consultas ilegais de geolocalização, permitindo acompanhar a movimentação de celulares em tempo real. A invasão dos aparelhos foi combinada com outras técnicas de espionagem, incluindo vigilância física e uso de drone.

As acusações de arapongagem (espionagem em sentido vulgar) contra a ABIN remontam a 2020, quando Bolsonaro editou decreto alterando sua estrutura regimental e aumentando as hipóteses de requisição de informações sensíveis pelo órgão no âmbito do Sistema Brasileiro de Inteligência. Na ocasião, a Rede e o PSB promoveram Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a normativa, alegando desvio de finalidade da Agência. Conforme operação da Polícia Federal que investigou servidores pelo uso do First Mile, as interceptações clandestinas tiveram início ainda em dezembro de 2018, antes mesmo da posse de Bolsonaro.

Durante o último governo, Ramagem era mandatário das ações do núcleo central do golpe no interior da ABIN, mas também montava suas próprias arapongas - a exemplo do plano elaborado pelo ex-diretor para espionar e sabotar auditores fiscais que investigavam Flávio Bolsonaro. As pessoas monitoradas pela ABIN eram jornalistas, sindicalistas, autoridades públicas, servidores e, inclusive, familiares dos alvos. Tudo feito, como se pode imaginar, sem justificativa legal nem ordem judicial, expressamente exigida pela Constituição Federal para a quebra de sigilo das comunicações telefônicas. Outros órgãos do SISBIN - como a SEOPI do Ministério da Justiça - também contribuíram para a espionagem de opositores, incluindo em dossiês e relatórios toda sorte de informações sensíveis.

O software utilizado pela Agência durante a gestão de Ramagem é produto da Cognyte (Israel), que condicionou a contratação ao não uso do programa para monitoramento de cidadãos israelenses e estadunidenses. Em contrapartida, a empresa mantém o banco de dados com informações sensíveis e sigilosas de brasileiros em servidor próprio. O armazenamento em Israel pode oferecer risco à defesa nacional caso Lula resolva dar consequência aos seus heróicos discursos rompendo relações diplomáticas, comerciais e militares com o sionismo. Em sentido contrário, O Futuro vem denunciando a dependência do Estado brasileiro frente à tecnologia israelense na defesa e na segurança pública.

Outras alegações

Embora tantas brasileiras e brasileiros assistam o desfecho judicial da tentativa de golpe de Estado e aguardem ansiosamente a prisão de Bolsonaro, talvez não esteja tão claro a todos nós que o ex-presidente foi apenas o cavalo de Troia da operação. O processo tramita respeitando o beabá judiciário, razão pela qual o Estado brasileiro demora a chegar a conclusões aparentemente óbvias, como a ligação direta entre a ABIN paralela e o plano golpista.

As alegações finais apresentadas pela PGR contribuem para sistematizar a complexa estrutura montada pelos golpistas para assassinar a chapa eleita em 2022 e instalar um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise” que seria capitaneado não por Bolsonaro, mas por militares - com destaque para os Generais Augusto Heleno e Braga Netto. Os assassinatos seriam executados pelas Forças Especiais do Exército - os “kids pretos” -, também facilitadores da intentona de 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes.

Os ataques coordenados à legitimidade do sistema eleitoral e das próprias urnas eletrônicas, a intervenção da Polícia Rodoviária Federal durante a votação do segundo turno de 2022 e a agitação permanente das massas bolsonaristas instaladas em frente aos quartéis não foram apenas demonstrações de força, mas parte da execução de um golpe fracassado - ao menos por enquanto. Dos incontáveis crimes cometidos pela família Bolsonaro e seus consortes, entretanto, não figura a responsabilização sobre o genocídio que assassinou quase 700 mil brasileiros entre 2020 e 2022.

A delação de Mauro Cid embasou inúmeras denúncias que permitiram o recolhimento de provas. O mapa de agentes envolvidos é bastante extenso, mas parece cobrir apenas mandantes políticos e seus operadores. Resta, ainda, identificar e responsabilizar a fonte de financiamento que, ao que tudo indica, está localizada nos latifúndios brasileiros. O relatório Agrogolpistas do observatório De Olho Nos Ruralistas oferece uma valiosa investigação do empresariado que foi peça-chave para a intentona bolsonarista.