Médicos denunciam desmonte da saúde pública em Belém às vésperas da COP-30

A luta espontânea abriu a ferida causada por anos de avanço das políticas neoliberais em todos os níveis da administração pública: como o Arcabouço Fiscal, o desmonte do Sistema Único de Saúde e os contratos milionários entre Organizações Sociais de Saúde (OSS) e município/estado.

11 de Novembro de 2025 às 15h00

Imagem da UPA da Marambaia. Reprodução/Foto: O Liberal.

Por Leonardo Damasceno

No início de outubro, Belém foi tomada por protestos e greves organizados pela categoria médica de urgência e emergência das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). Os protestos explodiram às vésperas do evento-vitrine do capitalismo verde que ocorrerá na capital paraense, a COP-30, e exigiam, além de pagamentos atrasados por mais de três meses, melhorias nas condições de trabalho de uma parcela da classe trabalhadora que atua sem vínculo formal ou segurança econômica. A luta espontânea abriu a ferida causada por anos de avanço das políticas neoliberais em todos os níveis da administração pública: como o Arcabouço Fiscal, o desmonte do Sistema Único de Saúde e os contratos milionários entre Organizações Sociais de Saúde (OSS) e município/estado.

O avanço das OSS ocorre por todo o Brasil e não é recente em Belém. INSAÚDE e IADVH, com sede em São Paulo e São Luís (MA), recebem a maior parte dos recursos destinados às UPAs municipais desde 2020, conforme contratos disponíveis no Portal das OSS e no TCM-PA. Analisando os balanços contábeis do último ano fiscal da INSAÚDE e da IADVH, percebe-se que a primeira — gestora das UPAs Jurunas e Marambaia até agosto — teve um crescimento de 20,9% em sua receita líquida em 2024, ultrapassando R$535 milhões. No entanto, médicos denunciam atrasos salariais de até cinco meses. Já a IADVH, responsável pela gestão da UPA DAGUA (Terra Firme) até agosto, aumentou seu patrimônio líquido em espantosos 1.515% em um ano, beirando os R$60 milhões. O contrato com o município cresceu 20% em 2024, totalizando R$6,5 milhões. Ainda assim, médicos da unidade denunciam cortes de pessoal e atrasos salariais desde junho. Por definição, uma OSS é considerada uma organização sem fins lucrativos e, por isso, tem direito à isenção fiscal. Tomando como exemplo a IADVH, apenas essa entidade obteve isenção de R$57 milhões em 2024.

Se analisássemos todas as OSS presentes no município — INSAÚDE, IADVH, HEALTH CARE, INSTITUTO DIRETRIZES, CASTELOS SERVIÇOS MÉDICOS, TRÍADE, MONTCOELHO, GROUPMED e afins — estima-se que o montante de isenção fiscal seria ainda maior somente em 2024. Apesar dos incentivos fiscais milionários, todas são alvos de denúncias por parte da categoria médica, que aponta uma política sistemática de pagamentos postergados: plantonistas só recebem após três meses, o que na prática gera atrasos de até cinco meses — e, em alguns casos, até de um ano para outro, conforme alertava o SINDMEPA em janeiro deste ano

Além de atrasos salariais, os profissionais denunciam: práticas de gestão abusivas, contrariando a Resolução CFM nº 2.077/14 e exigindo que cada plantonista chame 6 pacientes/hora; proibição de administração de medicações intravenosas em casos leves; vigilância constante; proibição de agendamento de retornos; ausência de fiscalização pela Secretaria Municipal de Saúde de Belém (SESMA); ausência de vínculo entre SESMA-profissional, que ocasiona na terceirização de serviços pelas OSS (que já são terceirizadas); ausência de vínculo empregatício com o contrato de trabalho caracterizado como sócio-cotista; ausência de prazos fixos de remuneração salarial; plantonistas insuficientes; ausência da classificação de risco de Manchester; ausência de sala vermelha nas UPAs remotas; condições de trabalho insalubres no geral.

Esse quadro agravado de precarização levou a categoria a realizar manifestação pública em frente à SESMA no dia 08 de outubro. Na ocasião, a secretaria se comprometeu a acompanhar os repasses atrasados — resposta que foi interpretada como uma tática de desmobilização. No dia 14 de outubro, a Prefeitura se pronunciou e afirmou que todos os repasses estavam regulares. Diante disso, o Ministério Público Federal (MPF) convocou uma escuta pública para o dia 22 de outubro e deu o prazo de dez dias (a contar do dia 14) para a SESMA prestar esclarecimentos. No dia 22, por mais de quatro horas, profissionais de saúde, usuários do SUS, conselhos de classe e sindicatos denunciaram ao MPF, o desmonte do SUS e os impactos negativos da gestão por OSS. Foram relatadas faltas crônicas de insumos básicos, como álcool, lençóis, curativos e reagentes laboratoriais. A escuta pública foi marcada pela ausência de representantes da SESPA, SESMA, Ministério da Saúde, prefeito e parlamentares, o que gerou críticas severas. O MPF classificou todas as denúncias como graves e as OSS como  “um espaço de desvio de muito dinheiro”, pois os pagamentos dos plantonistas — em média retidos por três meses — são depositados nas contas (protegidas por sigilo bancário) da OSS regularmente, porém não há transparência quanto à utilização dos montantes nesse período. Destaca-se que tais entidades, embora sejam consideradas sem fins lucrativos, operam com lógica empresarial, prezando pela eficiência — e, na sociedade do capital, deixar recursos parados equivale a prejuízo.

Na escuta pública, além da questão das OSS, também foi discutido o início de um processo de privatização do último símbolo de resistência da saúde pública: o Hospital Pronto-Socorro Municipal Mário Pinotti (PSM da 14). O hospital já vinha sendo alvo de edital de privatização (barrado pelo MPPA) e passará por reformas estruturais, tendo seus serviços entregues para a iniciativa privada. Em 03/11, a Prefeitura assinou um termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPPA para a execução da reforma, o que não impede a categoria de levantar preocupações sobre uma possível reestruturação administrativa, com transferência definitiva da gestão para uma OSS.

Após as denúncias feitas ao MPF, alguns profissionais relataram que receberam pagamentos atrasados enquanto outros seguem sem receber — como no caso da UPA da Terra Firme. O percentual de funcionários com salários atrasados ainda é incerto, pois os repasses geraram uma desarticulação do movimento por reivindicações da categoria, enfraquecendo a capacidade de mobilização dos que ainda lutam por melhores condições de trabalho. Essa tática é recorrente entre os patrões para desmobilizar manifestações espontâneas dos trabalhadores. 

O prefeito de Belém, Igor Normando (MDB), segue em conivente silêncio sobre a saúde pública belenense, executando um processo de higienização na cidade para a COP-30 — removendo forçosamente pessoas em situação de rua, entregando também o Hospital Oncológico Infantil para a mesma OSS que administra a UPA de Icoaraci, o Instituto Diretrizes.

Enquanto o Governo do Estado e a Prefeitura correm para maquiar a cidade para a COP-30, os serviços essenciais estão sendo entregues à iniciativa privada e os profissionais de saúde vivem em colapso. A ausência de políticas integradas e o silêncio da Secretaria de Saúde do Estado do Pará (SESPA) frente às denúncias são cúmplices do desmonte do SUS no Pará. Em Belém, o estetoscópio virou símbolo de luta. Enquanto o evento reforça a agenda sustentável do capitalismo, Igor Normando faz com que os médicos atendam sem contrato, sem salário e sem insumos — num cenário que desmente na prática o discurso global de saúde universal, trabalho decente e instituições eficazes.