Avanço das OSS em Sergipe faz médicos trabalharem sem definição contratual

Os depoimentos, com tom de desespero, relatam as irregularidades e fragilidades trabalhistas nesse modelo de administração. Irmandade Boituva é a organização responsável pela gestão que começou em julho deste ano.

8 de Novembro de 2025 às 0h00

Imagem do Hospital da Criança Dr. José Machado de Souza. Reprodução/Foto: G1.

Por Fábio David

Diversas denúncias foram feitas ao Sindicato dos Médicos em Sergipe (Sindimed) relatando que profissionais estão trabalhando sem qualquer definição contratual dentro das Organizações Sociais de Saúde (OSS). Os depoimentos, com tom de desespero, relatam as irregularidades e fragilidades trabalhistas nesse modelo de administração.

O Hospital da Criança Dr. José Machado de Souza foi uma das unidades de saúde entregues às OSS, na qual a Irmandade Boituva é a organização responsável pela gestão que começou em julho deste ano. Desde então, segundo um médico do hospital, a forma de contratação foi totalmente modificada.

“Vim pedir socorro ao Sindicato. Até julho, a contratação era feita via credenciamento da SES (Secretaria de Estado da Saúde). Atuávamos como pessoa física, amparados por edital e contrato específicos para essa prestação de serviços. No entanto, a OS assumiu a gestão e, desde então, estamos trabalhando sem qualquer contrato formal”, explicou o profissional.

Ele acrescentou também que os pagamentos de julho foram feitos de maneira obscura, sem explicações sobre a seguridade de direitos e valores incertos, e que a comunicação com os profissionais de saúde se deu apenas por redes sociais.

A deputada Linda Brasil (PSOL) também tem se pronunciado sobre os efeitos e problemas trazidos pelas OSS ao sistema público de saúde regionalmente, apontando para possíveis coerções feitas aos funcionários do hospital para que aceitem os contratos de sociedade por cota de participação — um efeito da crescente “PJotização” das relações de trabalho no Brasil. “Há relatos de que, caso não assinem, os profissionais podem ser substituídos por médicos de fora. Isso é uma forma de ameaça e precarização do trabalho”, disse a parlamentar.

Além da precariedade, a Irmandade Boituva tem procedência duvidosa quanto à sua atuação real na área da saúde. Segundo o Sindimed, o endereço registrado da empresa que firmou contrato com os médicos em Sergipe, situado na Rua da Glória, nº 38, em São Paulo, corresponde a uma loja de outlet de frutos do mar.

Já a Maternidade Municipal Lourdes Nogueira, localizada no bairro 17 de Março, também foi alvo de críticas por parte do Sindimed, que denuncia a crescente precarização, com médicos trabalhando sem contrato formal, pagamentos desordenados e um ambiente de trabalho degradante. “A situação aqui é de profunda tristeza. Os colegas estão trabalhando este mês sem qualquer garantia para o próximo. Não têm carteira assinada, nem direitos trabalhistas. Lutamos por um concurso público para dar estabilidade a esses profissionais, mas o que vemos é abandono”, criticou o sindicato.

O Dr. Helton Monteiro, presidente do Sindimed, fez fortes críticas aos dilemas encontrados na maternidade e à crescente terceirização e precarização dos centros públicos de saúde em âmbito municipal. “Estamos diante de mais um capítulo sombrio da terceirização da saúde. É a repetição do que já vimos em outras unidades da Prefeitura de Aracaju, como na gestão do Hospital e Maternidade Lourdes Nogueira. O que os médicos estão relatando é grave: contratação sem contrato formal, pagamentos obscuros e imposição de documentos ilegais. O Sindimed não compactua com esse modelo. Defendemos, de forma intransigente, a realização de concurso público, com hospitais administrados pelo SUS, e não entregues a empresas que transformam a saúde em negócio”, declarou Helton.

O que são as Organizações Sociais de Saúde e seu resultado real

As Organizações Sociais de Saúde (OSS) são entidades privadas que celebram parcerias com o Poder Público para gerir serviços de saúde, como hospitais e unidades básicas de saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Elas atuam por meio de "contratos de gestão" que estabelecem metas de desempenho, buscando melhorar a eficiência, a qualidade e a agilidade dos serviços públicos de saúde, sem perder o caráter público e gratuito do atendimento.

Porém, segundo artigo produzido por componentes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para o SciELO Brasil, esse caráter "sem fins lucrativos" não se demonstra na ação concreta dos fatos. O que se observa é um serviço de "privatização ativa" da saúde pública, que busca, através de diversos dispositivos, acumular lucros dentro das instâncias públicas.

A pesquisa demonstra que, entre o período de 2009 e 2014, as 10 maiores OSS do país mobilizaram um montante total de R$23 bilhões em contratos de gestão e termos aditivos. A maior delas, a SPDM, obteve um valor cinco vezes superior ao da FABC, a menor do grupo.

Já em 2020, OSS ligadas ao empresário Mário Peixoto faturaram mais de R$50 milhões durante a gestão de Wilson Witzel, no Rio de Janeiro. Fatos como esses geram debates e questionamentos quanto uma grande capacidade de acumulação e repasses de recurso público para essas organizações sem justificativas maiores.

O artigo comprova também a permissividade de leis que garantem diversos benefícios a essas organizações, como a busca pelo título de “entidade filantrópica”, que permite certos privilégios. Além disso, é permitida a remuneração de seus corpos diretivos, com a possibilidade de até 70% do valor de custeio público ser destinado a salários, como ocorre em São Paulo. A financeirização e a aplicação de recursos no mercado financeiro também são permitidas, dentro das limitações do contrato.

Outras questões também influenciam o viés financeiro e mercantilista dessas organizações. É relatado pela pesquisa que não existe a obrigatoriedade de licitação ou concurso público para a composição das OSS na saúde pública, o que consequentemente facilita a precarização do trabalho e a criação de monopólios regionais. Existe também uma ausência de transparência em relação aos contratos e aos salários dos dirigentes, já que muitos entes federativos não cumprem a Lei de Acesso à Informação (LAI), o que dificulta a fiscalização pública dos recursos.

Segundo estudo produzido pelo Núcleo de Estudos da Transparência Administrativa e da Comunicação de Interesse Público, grupo em atividade na Faculdade de Direito da USP (FDUSP), Sergipe ficou em último lugar no ranking de transparência pública, com apenas 66,2% dos requisitos cumpridos. Esse fator é comprometedor para entender os diversos descasos aparentes com a inserção das OSS em Aracaju e Sergipe no geral.