Disputa pelo IOF: tributos voltam a assombrar governo Lula

A política fiscal do Governo Federal é marcada por dois pilares: a austeridade orçamentária, e a maximização da arrecadação. Sob tais predicados, os acenos de tributação ‘aos ricos’ não encontram base na agenda tributária do governo.

7 de Julho de 2025 às 21h00

Em recente resposta à derrubada, pelo Congresso Nacional, do decreto que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que recorrer ao Supremo Tribunal Federal foi essencial para garantir a governabilidade. Declarou que a interferência compromete a capacidade do Executivo de tomar decisões sobre a condução da política fiscal. “Cada macaco no seu galho. Ele legisla, e eu governo”, disse, reforçando que buscar o Judiciário é um direito institucional quando há divergência entre os Poderes.

A Advocacia Geral da União (AGU) ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade para tentar reverter a derrubada, pelo Congresso Nacional, do decreto presidencial nº 12.499, de 11 de junho de 2025, que propôs o aumento das alíquotas do IOF. O fundamento da ação seria o artigo 153, § 1º, da Constituição, segundo o qual “é facultado ao Poder Executivo (...) alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V [este último, o IOF]” – hipótese na qual tem plena razão o governo em submeter ao controle concentrado de constitucionalidade. Em decisão monocrática, o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu os decretos e determinou uma audiência de conciliação entre governo e congresso.

Lula caracterizou a decisão como ajuste tributário voltado à justiça fiscal – com maior contribuição dos mais ricos para preservar políticas públicas. Lula criticou a quebra de um acordo feito com líderes do Congresso e classificou a atuação da Câmara e do Senado como favorecimento de interesses restritos. O recurso ao STF, portanto, é visto por ele como um movimento necessário para restabelecer o equilíbrio entre os Poderes e manter a governabilidade.

A este ponto, o governo aparenta perceber que a tributação perfaz uma das arenas em que o combate com os setores reacionários da política nacional se desenha de forma mais crítica. Episódios como o enfrentamento capitaneado por Nikolas Ferreira à norma da Receita Federal de maior fiscalização ao PIX, bem como a retirada da tributação sobre grandes fortunas da reforma tributária e o aumento na tributação aduaneira sobre importados abaixo dos cinquenta dólares, demonstraram que a tributação é pauta entregue de mão beijada à direita parlamentar pela base governista.

Nessas duas situações, a postura do governo foi de imobilismo diante da ofensiva direitista, que fez dos impostos sua bala de prata na oposição parlamentar ao executivo federal. No episódio recente do IOF, entretanto, a postura oficial foi de mobilizar certa movimentação em torno da pauta da “tributação aos super-ricos”. E, embora a pauta da tributação progressiva aos mais ricos seja desejável e mais urgente do que nunca no país, faz-se necessário limpar o terreno quanto à dimensão programática da reivindicação de Lula à bandeira da progressividade, à luz da própria política fiscal do governo.

Em linhas gerais, o terceiro mandato de Lula é marcado por dois pilares de sustentáculo em sua política fiscal: minimização do investimento, e maximização da arrecadação. Sob o pilar do investimento, as receitas públicas brasileiras encontram-se sequestradas pelo ‘Novo Arcabouço Fiscal’, continuidade da política de teto de gastos dos governos Temer e Bolsonaro, que impõe restrições significativas ao orçamento, inviabilizando, por exemplo, o reajuste salarial de servidores das instituições federais de ensino, que se mobilizaram em greve no ano de 2024.

Tanto o teto de gastos de Temer quanto o novo teto de gastos do Governo Lula mantêm intacto o privilégio do mercado financeiro. O programa de Temer impunha uma trava no gasto primário, mas deixava livre o gasto financeiro, enquanto o de Lula, com algumas mudanças institucionais frente ao anterior, preserva exatamente a mesma lógica.

Essa política de contenção orçamentária é sustentada pela ideologia da austeridade, que se ancora em três ideias amplamente difundidas pelos aparelhos ideológicos da classe dominante no Brasil. A primeira equipara o orçamento do Estado ao de uma família, reforçando a noção de que gastar mais do que se arrecada leva inevitavelmente à falência; a segunda afirma que o aumento do gasto público seria a principal causa da inflação, da alta dos juros e do desequilíbrio macroeconômico; e a terceira propaga a crença de que há um teto para o endividamento público, o qual, se ultrapassado, resultaria na desorganização econômica do país.

Essas premissas, amplamente naturalizadas no debate público, servem para justificar cortes de investimentos sociais, como os exigidos pelo Novo Arcabouço Fiscal, ao mesmo tempo em que mantém intocados os mecanismos de transferência de recursos para o capital financeiro, consolidando um modelo de Estado em que o orçamento público prioriza o pagamento da dívida em detrimento dos direitos sociais e do investimento público.

O que se busca explicitar, por este aspecto, é que por mais desejável que seja a intenção de buscar uma adequação progressiva da desigual base tributária brasileira, a restrição imposta ao investimento público pelo paradigma da austeridade fiscal restringe que essa receita seja convertida em investimento efetivo. Entretanto, a análise das medidas de ‘maximização da arrecadação’ do ministro Haddad também não revela um programa tributário que se possa chamar progressivo.

Quando se analisa o decreto inicial do IOF, verifica-se que, apesar do discurso oficial de promoção da justiça fiscal, sua implementação concreta era muito limitada no intento de combater a lógica regressiva da tributação brasileira. Na proposta original, havia dispositivos com potencial de incidir sobre os setores mais ricos da sociedade, como a tributação de aplicações financeiras realizadas por brasileiros no exterior – uma prática restrita a indivíduos de alta renda e grandes investidores. Essa medida, que visava atingir diretamente os mais ricos, representava um passo importante na tentativa de corrigir distorções históricas do sistema tributário nacional, no qual a renda do capital é frequentemente menos tributada que a renda do trabalho.

Contudo, essa iniciativa foi retirada após seu anúncio, resultado da pressão direta de setores da elite financeira e de veículos da grande mídia que atuam como seus porta-vozes. Assim, perdeu-se a oportunidade de alcançar os grupos que concentram maior capacidade contributiva, ao mesmo tempo em que se manteve intocada a estrutura de privilégios fiscais que os beneficia.

Com a remoção das medidas voltadas aos ricos, o decreto acabou por incidir, em sua maior parte, sobre a classe trabalhadora e setores da classe média. As novas alíquotas do IOF incidiriam sobre itens como o rotativo do cartão de crédito, cheque especial, empréstimos para pessoa física, microempreendedores (MEIs) e empresas do Simples Nacional – mecanismos de crédito usados de forma recorrente por famílias de baixa e média renda em situações de aperto financeiro. Além disso, o aumento do imposto sobre operações de câmbio, viagens internacionais e compras no exterior, apresentado como algo que supostamente afetaria apenas consumidores de alta renda, está longe de ter o efeito de ‘tributação dos super-ricos’ que propagandeia o campo governista.

Para além da parte dispositiva excluída do decreto do IOF, e da proposta de alargamento da faixa de isenção de Imposto de Renda sobre Pessoa Física para até 5.000 reais – que, por ora, é só isso, uma proposta – pode se dizer que todo resto da política fiscal do governo foi de base regressiva. A tributação das importações que atinge as “blusinhas”, a herança das alíquotas atuais no texto da reforma tributária sobre bens e serviços, a proposta de Instrução Normativa de maior fiscalização do Pix, todas essas são medidas que mantêm a lógica de penalização da informalidade e tributação sobre o consumo.

O sistema tributário nacional tem por espinha dorsal a robusta sustentação por tributos sobre o consumo – com protagonismo do ICMS, PIS/COFINS e ISS – que incidem igualmente sobre todos os consumidores, independentemente de sua capacidade contributiva. Em 2024, a arrecadação federal atingiu o valor de R$ 2,652 trilhões, com crescimento real de 9,62% em relação a 2023. Considerando estados e municípios, a arrecadação total chegou a R$ 3,6 trilhões. Pode-se dizer que o IOF nessa base tributária escandalosamente regressiva, portanto, possui um papel secundário de arrecadação.

Esse padrão se materializa no peso desproporcional que tributos como as Contribuições ao PIS e à Cofins – incidentes sobre o faturamento – e o ICMS – incidente, principalmente, sobre a circulação de mercadorias – exercem sobre os preços de bens essenciais, como alimentos, combustíveis e energia elétrica.

A própria reforma tributária sobre o consumo, proclamada pelo governo Lula como uma vitória governista, já será implementada, reconhecidamente, com uma das maiores alíquotas de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) do mundo. Com mudanças significativas na metodologia de aferir e recolher tributos sobre bens e serviços, a reforma tributária não mudará a lógica de tomar dos trabalhadores para desonerar os burgueses de nosso sistema.

Como os mais pobres consomem fatia mais considerável do montante da sua renda, esses tributos consomem uma parcela significativamente maior de seus ganhos, enquanto os mais ricos, que concentram a maior parte da renda e patrimônio, continuam beneficiados pela baixa tributação sobre lucros, dividendos, ativos no exterior, heranças e grandes fortunas – renda no geral.

Assim, o que se observa na essência do governo em matéria tributária é a manutenção de um modelo tributário que aprofunda desigualdades, ao mesmo tempo em que reforça o argumento ideológico de que a contenção de gastos – e não a redistribuição fiscal – é o único caminho possível para a responsabilidade orçamentária.