Vítimas da Chacina de Acari terão certidão de óbito retificadas por "violência do Estado"

CNJ determinou, 35 anos após os desaparecimentos forçados, a retificação. Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro também inclui medidas de reparação histórica, financeira e psicológica às famílias das vítimas.

26 de Setembro de 2025 às 15h00

No dia 16 de setembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que cartórios de registro civil realizem a emissão e retificação das certidões de óbito das 11 vítimas da Chacina de Acari, ocorrida em 1990, no Rio de Janeiro. Os documentos deverão ser retificados para registrar a causa da morte como “violência causada por agente do Estado brasileiro no contexto da chacina de Acari”.

A proposta normativa aprovada no CNJ é decorrente do julgamento do crime pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, iniciado em 2023. No julgamento – que teve sentença divulgada em novembro de 2024 –, o Estado brasileiro foi responsabilizado pela chacina, incluindo diversas violações como os desaparecimentos forçados e falhas na investigação, e condenado a uma série de medidas que buscam garantir a responsabilização do Estado, a preservação da memória e reparação às vítimas da violência policial.

Relembre o caso

Segundo relatório publicado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no dia 14 de julho de 1990, seis policiais militares privaram de liberdade as vítimas Edson de Souza, Moisés Cruz dos Santos e Viviane Rocha, pois teriam supostamente encontrado joias, armas e dinheiro em suas residências, e exigiram um pagamento de cinco milhões de cruzeiros para libertá-los. No dia 17 de julho toda a quantia já tinha sido paga, mas os policiais retornaram a Acari no dia 18 para exigir mais dinheiro e ameaçaram matar Edson e Moisés.

Doze dias depois, no dia 26, seis homens que integravam um grupo de extermínio chamado “Cavalos Corredores” – composto por policiais militares do 9º Batalhão de Polícia Militar de Rocha Miranda – invadiu o sítio da família de uma das vítimas e sequestrou Viviane Rocha, de 13 anos, Cristiane Souza Leite, de 16 anos, Wudson de Souza, de 16 anos, Wallace do Nascimento, de 17 anos, Antônio Carlos da Silva, de 17 anos, Luiz Henrique Euzébio da Silva, de 17 anos, Edson de Souza, de 17 anos, Rosana Lima de Souza, de 18 anos, Moisés dos Santos Cruz, de 26 anos, Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, de 32 anos, e Edio do Nascimento, de 41 anos.

Nenhum dos corpos foi encontrado até hoje. De acordo com uma das testemunhas, todos os jovens foram levados ao sítio de um policial militar, onde foram assassinados e tiveram seus corpos jogados em um rio. Além disso, todas as mulheres foram vítimas de violência sexual.

Em janeiro de 1993, Edmea da Silva Euzebio, mãe de Luiz Henrique da Silva Euzebio, e sua sobrinha Sheila da Conceição, foram assassinadas na estação de metrô da Praça 11, no Rio de Janeiro. Edmea era líder do grupo “Mães de Acari” e pouco tempo antes do assassinato, testemunhou sobre a participação de policiais militares nos desaparecimentos. Em 2024, os quatro policiais acusados pelos homicídios foram absolvidos.

Decisão histórica da Corte

A Corte Interamericana de Direitos Humanos iniciou o julgamento do caso da Chacina de Acari em outubro de 2023, e a sentença foi divulgada em novembro de 2024, 34 anos após o crime. Foi reconhecido pela Corte que o desaparecimento forçado foi causado por agentes do Estado. O julgamento concluiu que o Brasil violou uma série de direitos, como o direito ao reconhecimento à personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, previstos na Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas.

Além da retificação das certidões de óbito, também foram determinadas medidas de reparação histórica, financeira e psicológica às famílias das vítimas, bem como, a elaboração de um estudo sobre as milícias e grupos de extermínio que atuam no Rio de Janeiro.

Não é a primeira vez que o Brasil é julgado na Corte Interamericana por um caso de violência policial. Em 2017, o país foi condenado pela falta de investigação e punição dos responsáveis pelas Chacinas de Nova Brasília, que ocorreram entre 1994 e 1995 e resultaram em 26 mortes. Dentre as medidas determinadas, estava a elaboração de um plano efetivo de redução da letalidade policial. No entanto, a determinação não foi cumprida até hoje e, em 2021, cinco policiais foram absolvidos das acusações de homicídios de 13 pessoas em 1994.

A luta das “Mães de Acari” foi fundamental para denunciar a letalidade policial

O grupo “Mães de Acari”, formado pelas mães das vítimas da chacina, foi pioneiro na mobilização de coletivos de mulheres que perderam seus filhos para a violência policial, e hoje, 35 anos após o crime, com o aumento nos números de mortes por intervenção da polícia, também aumenta a quantidade de mães em luto que se organizam para exigir justiça e manter a memória de seus filhos.

Em um cenário de fortalecimento da militarização e do avanço do poder político das corporações policiais, que ataca diretamente a vida de jovens negros e periféricos, os movimentos formados por mães de atingidos exercem um papel fundamental na denúncia do uso ostensivo da força policial e da omissão por parte da justiça burguesa. Além de compartilharem as mesmas dores, os movimentos de mães também compartilham uma luta política contra as constantes violências cometidas por agentes do Estado.

O reconhecimento do envolvimento do Estado na Chacina de Acari traz à tona a importância do debate sobre memória, verdade, justiça e reparação entre os movimentos populares para além das brutalidades cometidas pelo Estado brasileiro no período da ditadura empresarial-militar de 1964. A Chacina de Acari é considerado o primeiro caso de desaparecimento forçado após a redemocratização e a retificação das certidões de óbito das vítimas não se trata somente de formalidade, mas também simboliza a oficialização da verdade dos fatos e atribui aos agentes públicos o compromisso de preservar a memória histórica do caso e das vítimas, para que não se repita.

Apesar do caso ter ocorrido em 1990, a luta contra a violência policial nunca foi tão atual. Em 2024, 2.536 crianças e adolescentes foram mortas por intervenção  policial. A imensa maioria das vítimas eram negras.

A lógica racista de guerra às drogas, um dos fundamentos da política de segurança pública ostensiva no país, afeta diretamente a vida de milhares de jovens negros que são atravessados pela criminalização da pobreza. Além disso, a repressão policial também atinge os familiares das vítimas, que, enquanto vivem o luto, muitas vezes têm que investigar os crimes e buscar justiça por conta própria. Lutam pelo rompimento do silêncio e da omissão por parte do Estado burguês, que corrobora para o projeto de controle social e subordinação da população negra e periférica.

As lutas tocadas por movimentos antirracistas nas favelas são fundamentais para amplificar o debate acerca da letalidade policial e do enfrentamento aos métodos de repressão burguês, que abrem margem para discussões como o fim da polícia militar e o desfinanciamento das forças policiais.