Oportunismo: doença senil da majoritária da UNE

Havendo passado mais da metade do mandato, o que há é a manutenção, no essencial, do projeto econômico da extrema-direita, com pequenos alívios e maquiagens.

30 de Maio de 2025 às 18h00

Reprodução/Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

Por Juan Pablo (estudante de Engenharia Mecânica na UFRN e militante do PCBR e da UJC)

A língua portuguesa é tão maravilhosa que, com ela, é possível florear com palavras belas o mais desflorado dos jardins; é possível defender com fortes frases de efeito a mais fraca e sem efeito política; é possível dar forma bela ao conteúdo mais sem beleza. Isso é o que nos demonstra o artigo assinado por dirigentes nacionais da União da Juventude Socialista (UJS), cujo título é resultado de uma ingrata paráfrase – leia-se: distorção – de Lênin, e que pretende nos trazer uma reflexão sobre o papel do que eles chamam de “sectarismo” no movimento estudantil, dentro do atual contexto de disputas rumo ao Congresso da UNE.

Não brigamos com palavras, mas é incontornável pontuar a confusão que os nossos amigos socialistas fazem com o termo “sectarismo”, jogando fenômenos de naturezas distintas em um mesmo guarda-chuva conceitual, o que induz o leitor a falsas conclusões. Quanto a isso, é válido apontar, ainda que não seja o nosso objetivo nos aprofundar nesse aspecto, a diferença entre sectarismo e esquerdismo.

Se, por um lado, o primeiro termo diz respeito a um problema de postura política próprio ao espírito de seita e suas infinitas manifestações; por outro lado, o segundo trata de um problema de análise e ação tática daqueles que não compreendem as mediações necessárias para a realização do objetivo estratégico socialista. Por conseguinte, é completamente factível uma organização esquerdista não ser sectária e uma organização sectária não ser esquerdista – é o caso, por exemplo, da própria organização dos companheiros, mergulhada em autoproclamação, espírito de seita, amiguismo, hostilidade e diversos outros elementos característicos do sectarismo em vários de seus locais de atuação, embora não incorra no desvio esquerdista.

Adentrando o mérito político do texto – que é a base de areia sobre a qual erguem seus argumentos –, os companheiros apontam o problema do sectarismo como sendo uma das pedras no meio do caminho para alcançar o digno objetivo que dizem colocar para si: o combate à extrema-direita e ao fascismo, clamando pela unidade em torno disso. O problema é que, em todo o artigo, não é dita uma palavra sequer sobre o conteúdo real desse combate – portanto, não é dita uma palavra sequer sobre os termos dessa unidade, que é a questão mais importante de qualquer unidade, pois, como dizia Lênin no livro que os nossos companheiros falsificam: “toda a questão consiste em saber aplicar esta táctica para elevar, e não para diminuir, o nível geral de consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado”. Afinal, por princípio, nenhuma organização séria é contra a unidade – a questão, sempre, é: unidade para quê, com quem, sob qual hegemonia, com qual grau de possibilidade de disputa e com que limites. Falar abstratamente em unidade, sem qualificar esses pontos, é apenas tapear – a si ou aos outros.

Portanto, ao colocar um problema real e concreto – a necessidade de combater a extrema-direita – sem, no entanto, debater as formas reais e concretas de lidar com esse problema, os companheiros taxam de sectários aqueles que não concordam com as suas maneiras de supostamente travar esse combate – e, apesar dos espantalhos serem claramente indiretas ao Movimento Correnteza, eles causam tanta confusão ao debate do movimento estudantil no geral que nos vimos forçados a elaborar esta pequena réplica. Para isso, é preciso fazer o que os nossos amigos não fazem: dar conteúdo ao debate.

Em nome da necessidade de isolar a extrema-direita e dar cabo aos necessários combates citados, os companheiros defendem – e praticam – como tática a participação no Governo Lula-Alckmin, eleito em 2022 a partir de uma frente ampla que, apesar de sua composição, para vencer, buscou mobilizar os sentimentos de esperança e transformação dos trabalhadores brasileiros a partir de uma nostalgia do ciclo petista de 2003-2016 – o qual, comparado ao ciclo de destruição nacional de Temer e Bolsonaro, apareceu como a possibilidade de um alívio – e da apresentação de propostas populares entre a classe trabalhadora: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”, revogar as contrarreformas trabalhista e previdenciária, dar fim ao teto de gastos, superar a carestia, dentre outras coisas, mesmo com os enormes rebaixamentos e recuos já realizados.

Quase dois anos e meio de gestão depois, o que vemos é a concretização de um estelionato eleitoral – já esperado pelos setores mais consequentes, a partir de uma análise das táticas hegemônicas no campo “democrático-popular”, indisposto a travar grandes disputas por projetos quando está no governo, da composição da frente ampla e de outros elementos. Havendo passado mais da metade do mandato, o que há é a manutenção, no essencial, do projeto econômico da extrema-direita, com pequenos alívios e maquiagens. Já em março de 2023, o governo travou uma disputa – como demonstra cabalmente o professor Pedro Paulo Bastos no artigo “Não existe alternativa?” – para aprovar uma regra fiscal restritiva, de continuidade do Teto de Gastos de Temer, que ameaça os pisos constitucionais da educação e da saúde, amarra o orçamento público, impede qualquer possibilidade de realizar os investimentos massivos de que necessitamos nas áreas sociais e que hoje fundamenta os recentes cortes na educação e diversos outros ataques, como a limitação imposta ao crescimento do salário mínimo e as tentativas de restrição ao BPC. Por outro lado, na política monetária, após sustentar dois anos de briga teatral contra o bolsonarista que presidia o Banco Central, jogando toda a culpa dos problemas econômicos na alta taxa de juros, agora o presidente Lula se cala diante do seu indicado — Gabriel Galípolo —, que não apenas mantém essa alta taxa de juros, como também a aumenta ainda mais.

Numa suposta tática de entregar os anéis para não perder os dedos, o governo dá de bandeja tudo o que a burguesia brasileira quer e, ainda assim, perde os dedos, as mãos e os braços – porque as classes dominantes sempre querem mais. E quem se aproveita cinicamente dessas contradições, que levam à má popularidade da gestão, é a extrema-direita, apresentando-se falsamente como antissistema e mobilizando o justo descontentamento da população com o governo em torno de falsas soluções. Esse tem sido o resultado concreto de todo rebaixamento, que alguns tentam justificar com o mito da “correlação de forças” – como se ela pudesse mudar sem luta! Na prática, ela só se agrava a cada nova concessão feita sem qualquer contraparte. É verdade que uma correlação de forças desfavorável impõe, concretamente, limites à possibilidade de realizar determinadas mudanças; mas também é verdade que recorrer a esse argumento para justificar a inação apenas amplia a capacidade do inimigo de avançar e, com isso, piora ainda mais a própria correlação.

Enquanto isso, parte do campo “progressista” jura que o problema é de comunicação e defende acriticamente o governo petista, sem conseguir dar qualquer resposta concreta aos problemas candentes do nosso povo. Por outro lado, outra parte desse campo, para justificar um “ser de esquerda” que não encontra qualquer correspondência na prática, rebaixa completamente seu horizonte político, estratégico e teórico, e permanece numa espécie de espera messiânica de que Lula e o PT, em algum momento – sem que sejam submetidos a uma forte pressão de massas – darão um “giro à esquerda” e buscarão aplicar as promessas de campanha. Trata-se de uma expectativa sobre a qual a recente entrevista do futuro presidente do PT  (Edinho Silva) ao Opera Mundi joga um verdadeiro balde de água fria, ao indicar que a tendência é justamente a oposta: seguir caminhando cada vez mais à direita.

É aos que se negam a separar a luta contra a extrema-direita da luta contra o projeto econômico da extrema-direita – e contra as condições que fortalecem esse agrupamento – que os companheiros jogam o rótulo de “sectários”, esquivando-se de fundamentar essa acusação e colocando a questão quase como fruto de um capricho, e não de uma divergência política que surge de distintas leituras da realidade. É através dessa operação que os nossos amigos revelam o caráter oportunista da política que defendem, que abandona completamente o caráter estratégico da transformação que precisamos. É a partir dessa compreensão (oportunista) que buscam dirigir o movimento estudantil sem ultrapassar ou se chocar com os limites do projeto social-liberal, que hoje não fornece qualquer resposta às necessidades dos estudantes. Infelizmente, fingir que esse elefante não está na sala tem um preço alto e inescapável: ignorar que estamos sendo arrastados para o abismo – e as eleições de 2024, somadas à queda contínua da popularidade do governo e outros elementos, são apenas o prenúncio. A situação do Brasil e do mundo — basta olhar para o resultado das mais recentes eleições europeias – não deixa espaço para as ilusões que levam à defesa dessa tática. Enquanto os oportunistas ladram contra os supostos sectários, a caravana da burguesia brasileira passa – atropelando todos nós.

É sintomático que, frente às acusações de imobilismo, os principais exemplos que os companheiros utilizam de lutas de massas sejam anteriores ao Governo Lula-Alckmin – é ainda mais sintomático que, ao citar esses exemplos, tratem como se os setores de oposição, com suas diferentes linhas e leituras sobre os rumos do movimento, não estivessem presentes, inclusive com forte protagonismo em vários casos. Também é apenas através do cinismo que certos números sejam levantados para se autoproclamar, como a menção ao “maior CONEB da história, com 3.100 [centros] acadêmicos credenciados e 2.300 presentes” – a questão aqui é: quantos desses CA’s não são fantasmas (ou seja, que existem apenas no papel para conseguir retirar crachá)? E quantos deles não foram “(re)fundados” dias ou semanas antes do credenciamento apenas para garantir a falsa maioria esmagadora da UJS no processo do CONEB e logo depois deixaram de existir ou não se consolidaram? Ora, sendo esses números reais, e não frutos de fraudes, o cenário seria ainda mais revelador do imobilismo: quer dizer que temos tanta base assim para mobilizar imediatamente em torno de uma grande movimentação nacional pelas nossas demandas e isso não é feito? Os companheiros, que começaram o seu texto reclamando da ausência de debate político, escondem que, além de não fazerem esse debate – que nós concordamos que está em falta! –, também utilizam de todos os métodos burocráticos, organizativos e de estrutura para silenciar quem o faz, o que fica completamente nítido para qualquer pessoa que observe a dinâmica de funcionamento e a programação dos Congressos organizados por eles, avessos a qualquer tipo de disputa política real.

Não deixa de ser igualmente rebaixado o apontamento pretensamente crítico dos companheiros sobre as chapas próprias formadas por organizações de oposição nas eleições que estão ocorrendo em todo o Brasil para a escolha de delegados ao CONUNE, jogando também esse fenômeno no guarda-chuva do sectarismo – que, aparentemente, virou um termo usado apenas para designar tudo aquilo de que eles desgostam. Ora, essas eleições são, por excelência, um dos melhores espaços para demonstrar ao conjunto dos estudantes quais são as linhas em disputa no movimento estudantil, quais são as organizações que corporificam essas disputas e por quais motivos. É o momento por excelência de dar conteúdo ao debate sobre os rumos do movimento estudantil. Somado a isso, o fato de serem proporcionais – em que cada chapa elege uma quantidade de delegados de acordo com a quantidade de votos que recebe – apenas reforça a possibilidade (e, na maioria dos casos, a necessidade) de as organizações mais consequentes apresentarem com mais clareza os seus programas a partir de chapas próprias, ainda mais considerando que se trata de eleições disputadas majoritariamente por organizações que se dizem de esquerda, geralmente sem a ameaça de chapas de direita – o que, ainda assim, não enfraqueceria a questão central do nosso argumento. Isso em nada fere a possibilidade de unidade de ação na luta política entre essas organizações que disputam as bases estudantis. Pelo contrário: torna o debate mais qualificado, impede a diluição programática no reformismo – talvez o destino desejado por esses companheiros – e confere substância à unidade, para que esta não se resuma a um pacto de silêncio. Seria completamente inconsequente, por parte dos setores de oposição, ao não realizar isso, deixar de se demarcar politicamente frente aos rumos do movimento estudantil e a um balanço da sua atuação nos últimos anos, sobretudo no que diz respeito à mudança de postura da direção majoritária da UNE com a posse do Governo Lula-Alckmin. Além da fundamentação que já demos, não é possível deixar de citar, por exemplo, o boicote às greves que ocorreram nas universidades (em âmbito estudantil, docente, técnico, com piquetes, ocupações etc.) e o esvaziamento político no debate sobre orçamento, sobretudo por medo de confrontar o Novo Teto de Gastos, o que se reflete em uma timidez absoluta na hora de lutar contra os cortes – os quais, muitas vezes, são referidos como “contingenciamento”, utilizando a mesma retórica do Governo Bolsonaro em 2019 e em outros momentos. Disputar a UNE para um outro caminho – melhor indicado nas Teses da UJC ao 60º CONUNE – é imperativo.

Tudo isso não quer dizer que não haja alguma justeza na crítica dos companheiros acerca de algumas das limitações das organizações que se pretendem ser mais consequentes, como a relativa baixa inserção nos movimentos de massas – ou mesmo limitações políticas. Mas sejamos claros: não serão com os métodos e táticas oportunistas fornecidos que nós daremos resposta a esses problemas. Por isso, no atual contexto de disputas rumo ao 60º Congresso da UNE, não é possível olhar para esse cenário sem apontar a necessidade de reconstruir o movimento estudantil brasileiro a partir de uma outra perspectiva, agitando e desenvolvendo entre as bases estudantis um projeto de universidade atrelado ao projeto da revolução brasileira, da transformação socialista-comunista que precisamos. Um movimento estudantil que, ao mesmo tempo em que luta por suas próprias demandas, seja reserva de forças nas lutas do proletariado brasileiro, firmando uma aliança estratégica permanente que unifique os principais anseios e necessidades do nosso povo em um programa proletário que compreenda todas as mediações táticas necessárias para sua realização, mas que não desperdice as energias da nossa classe na busca ilusória por um “novo projeto nacional de desenvolvimento” e seus correlatos nos marcos do capitalismo dependente brasileiro. Para isso, precisamos analisar autocriticamente a história das lutas populares em todo o mundo, buscando tirar dela as lições que ajudem na construção da independência política que o movimento estudantil brasileiro necessita, mostrando como a luta contra o fascismo e a extrema-direita é uma luta inseparável da luta contra o capitalismo como um todo, pois é no cenário de degradação e agudização das contradições desse sistema que eles aparecem como tropa de choque do capital.