A criminalização da cultura periférica no Brasil
A prisão de MC Poze e a perseguição de Oruam são parte de uma luta tenaz da burguesia brasileira em efetivar o desejo de seus antepassados, que promoveram a ideologia do branqueamento, disfarçando-a anos depois com a máscara da “democracia racial”.

Reprodução/Foto: Rafael Freire.
Por Guilherme Sá e Marcelo Hayashi
Agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Civil do Rio de Janeiro cumpriram um mandado de prisão contra Marlon Brandon Coelho Couto, o MC Poze do Rodo, no dia 29 de maio. O artista, que tem grande influência no cenário do funk, foi alvo da operação por suposto envolvimento com o tráfico de drogas e a dita “apologia ao crime”. Já no dia 2 de junho, o pedido de habeas corpus do artista foi aceito pela Justiça, levando a sua liberação no dia seguinte do presídio de Bangu, para onde havia sido levado após a prisão.
MC Poze pede que as forças repressoras e a mídia hegemônica deixem ele em paz, após soltura no último dia 03 de junho. Reprodução: Sessão de Rap.
Em imagens que viralizaram rapidamente nas redes sociais, Poze aparece algemado ao chegar à delegacia, sem camisa e descalço, vigiado de perto por vários agentes. Essa cena contrasta com as prisões discretas e pacíficas de figuras públicas envolvidas em megaoperações de corrupção, estelionato, tráfico e até homicídio, evidenciando a perseguição contínua ao funk e a uma certa interpretação do Brasil que prejudica os mantenedores da desigualdade. Mesmo sem uma justificativa clara, o MC ficou preso por quatro dias e foi tratado pela mídia — sem questionamentos — como integrante de uma facção criminosa. Em um excelente artigo, o pesquisador Gabriel Miranda discute com precisão essa espetacularização e a distorção das informações divulgadas pela mídia hegemônica.
Segundo o desembargador Peterson Barroso Simão, responsável por conceder o habeas corpus ao artista, Poze foi “tratado de forma desproporcional” e sem garantias para sua prisão. Ainda questionou o que se entende enquanto “apologia ao crime” e apontou para a garantia da liberdade de expressão. Por fim, ressaltou que a problemática das facções deve ser pensada de forma a garantir a prisão dos mandatários e não de pessoas como o MC.


Grifos de quem fez o print. Reprodução/Redes sociais.
Forjado nas periferias, o funk passou a ganhar cada vez mais popularidade ao longo da década de 2000, criando uma eclética mistura entre gêneros musicais afro-americanos e afro-brasileiros. Abordando questões mundanas das margens da sociedade brasileira, num período político marcado pelo interregno entre o ápice do neoliberalismo e o início do social-liberalismo petista, o gênero ganha outros contornos quando artistas passam a relatar de forma cada vez mais objetiva a vida nas periferias.
Naquilo que ficou marcado como “funk consciente”, nascido ainda na década de 1990 com Cidinho & Doca e outros artistas, MCs como Felipe Boladão, Careca, Daleste, Primo, Duda do Marapé e Neguinho do Kaxeta, trouxeram, no início da década de 2010, elementos que expressavam a realidade brasileira: desigualdade extrema, crime organizado, desesperança da juventude, a vida das mães solo, racismo, violência policial e o genocídio da população negra materializado na guerra às drogas.
Isso, no entanto, não ocorre sem contradições. Embora essa expressão cultural possa reproduzir formas de opressão ou do crime e suas mazelas — reflexo de uma sociedade ainda marcada pela desigualdade e pela despolitização —, ela não deixa de ser um importante marco de resistência. Representa, ainda que de forma complexa, a revolta das periferias contra o capitalismo predatório e a marginalização imposta pelo Estado e pela burguesia.
No mais emblemático exemplo desta seara, Felipe Boladão, à época apelidado de “poeta do funk”, ganhou os palcos rapidamente cantando sobre o banditismo e as facções criminosas na Baixada Santista. As músicas, longe de serem uma simples exaltação do crime, contestam as ações daqueles que diariamente reprimem a população, trazendo o contraste entre a vida na criminalidade e o quanto ela não compensa, levando à reflexões sobre o desgosto à família, os riscos corridos e a religião.
Com profunda consciência política, Boladão por diversas vezes refere-se ao grupo Racionais MCs, denunciando a violência policial e a desigualdade extrema vivida no país, falando sobre sonhos destruídos pela PM e pelo crime e de uma infância negada às crianças pela violência do Estado, relembrando episódios como a Chacina da Candelária, ocorrida em 1993 no Rio de Janeiro.

MC Felipe Boladão. Reprodução/Foto: Spotify.
Em 10 de abril de 2010, Felipe Boladão foi assassinado junto de seu DJ enquanto esperava carona para um show na capital paulista. Nos três anos seguintes, todos os outros MCs citados anteriormente — exceto Neguinho do Kaxeta — também foram mortos a tiros por grupos de extermínio: milícias paraestatais formadas por policiais, ex-policiais e agentes de segurança.
Em dezembro de 2022, anos após a morte de MC Primo, uma perícia revelou o que já era esperado: o projétil que o atingiu saiu da arma de um PM. O único caso onde o criminoso foi reconhecido pela justiça, porém, terminou com a absolvição do policial Anderson de Oliveira Freitas pelo júri popular, em 2024.

MC Primo, responsável por hits como “Diretoria”, em parceria com o DJ Marlboro. Reprodução/Foto: Funk na Caixa.
Os MCs que apresentavam o funk como clara crítica social, num profundo conhecimento das mazelas do povo brasileiro, foram criminalizados pela mídia hegemônica, que cresceu ao longo dos anos seguintes em cima do sensacionalismo em relação à cultura periférica e sua suposta vinculação insuperável e inquestionável ao crime organizado, como fizeram da mesma forma como outros gêneros musicais, como o manguebit e o rap. São nesses termos que os bailes ocorridos nas favelas, conhecidos como fluxos de rua, são tidos como alvo das forças de segurança, bem como da já citada mídia sensacionalista.
É nesse contexto que relembramos o caso do massacre de Paraisópolis, no Baile da Dz7, em dezembro de 2019, que vitimou 9 jovens e deixou mais de uma dezena de feridos. Na ocasião, as justificativas apresentadas pela postura da PM na abordagem foram desmentidas por vídeos feitos por câmeras de segurança, por moradores da comunidade e por relatos de pessoas que sobreviveram à repressão.
Postagem original: https://www.instagram.com/reel/CvFVDGBgUzw/ .Idealização do vídeo: Gessica D'Paulla. Narração: Primitivo. Edição: Marcelo Hayashi.
Em resposta a violenta e desmedida ação policial, formou-se “Os 9 que perdemos”, movimento criado por familiares das vítimas em Paraisópolis. Constantemente são organizados atos em memória às vítimas e em denúncia por justiça, onde diversas organizações se somam na cidade de São Paulo. Além disso, os familiares convocam vigílias nas datas de audiências marcadas para pressionar o Judiciário no encaminhamento de resolução dos processos.

Ação do movimento “Os 9 que perdemos”. Reprodução/Foto: site do movimento “Os 9 que perdemos”.
A partir do massacre ocorrido e o medo generalizado criado na cena no início dos anos 2010, o funk, especialmente no estado de São Paulo, segue um caminho distinto da crítica, se aprofundando na ostentação e na superação do estigma do artista oriundo das favelas e comunidades. Ao longo dos anos, as consequências da introdução da lógica do mercado podem ser vistas no apoio da produtora GR6 e dos artistas vinculados a ela ao atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), bem como o apoio da produtora Love Funk à campanha de Pablo Marçal, caso relatado pela Folha de São Paulo.
No entanto, uma vez consolidado o poder, esse apoio performático por parte da direita foi rapidamente abandonado. Em vez de políticas públicas que valorizem o funk como expressão cultural e ferramenta de inclusão social, o que vemos é uma criminalização sistemática do movimento. Um exemplo recente é a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos Pancadões, instaurada em São Paulo, que sob o pretexto de combater a violência e o tráfico, na prática busca reprimir os bailes funks e estigmatizar seus frequentadores.

À esquerda, Henrique Viana (Love Funk) e Pablo Marçal; à direita, Ricardo Nunes no escritório da GR6. Reprodução/Foto: Folha de São Paulo.
A realidade do Rio de Janeiro, em paralelo, evidencia a forte conexão do funk com suas origens, mesmo diante da influência do mercado — um fenômeno que também se manifesta em São Paulo, em menor medida, onde artistas como MC Hariel reforçam essa ligação com as raízes, mesclando narrativas periféricas e batidas contemporâneas. Nesse contexto, a violência policial e as intervenções armadas nas favelas e comunidades, somadas a inovações musicais como o funk 150 BPM, resultam em produções diversificadas que, apesar de ligadas superficialmente às raízes, pouco se aproximam daquilo que foi o funk consciente.
A Lei Anti-Oruam
Nos últimos anos, a ascensão do trap, com novas mesclas e ecletismos musicais, trouxeram notoriedade a novos artistas. Entre eles, Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o Oruam, fez com que novos capítulos da perseguição histórica ao funk e à cultura periférica surgissem.
Ganhando visibilidade pelo seu evidente sucesso, Oruam ficou marcado na grande mídia burguesa, porém, por ser filho de Marcinho VP, liderança de reconhecida facção criminosa. Reivindicando a liberdade do pai e apontando a perseguição dos aparatos de segurança à favela e à população da periferia, o cantor foi alvo de intensos ataques nas redes sociais.

MC Oruam, em ensaio para revista britânica Dazed. Reprodução/Foto: Pedro Napolinário/Dazed.
Nessa conjuntura, parlamentares e figuras públicas da direita, em um movimento orquestrado, passaram a não apenas protocolar projetos de lei, petições e abaixo assinados, mas organizar politicamente uma ampla e massiva campanha midiática para criminalizar não apenas Oruam, mas a própria cultura periférica, disfarçada pela bandeira de guerra às drogas e ao crime organizado. Para tanto, Oruam foi utilizado como bode expiatório, fazendo com que o termo “Lei Anti-Oruam” passasse a ser usado em todo país para designar a proibição institucional da contratação de artistas que realizam “apologia ao crime organizado e ao uso de drogas”.
Essa lei foi proposta por diversos políticos conservadores e bolsonaristas em inúmeras cidades do país, como São Paulo, Belo Horizonte, Campo Grande, São Carlos, Itu, Araraquara, entre outras. É curioso, no entanto, que em grande parte das legislações municipais e estaduais, os editais e outros meios de contratação de artistas já se submetem a determinadas restrições, incluindo justamente a chamada “apologia ao crime e ao tráfico”. Qual é, então, a raiz da atual ofensiva da direita sobre a cultura periférica?
Fala do rapper Djonga em debate na Câmara Municipal de Belo Horizonte sobre a criminalização da cultura periférica. Reprodução: MinasNinja.
Mais do que aparentemente lutar contra as drogas e o crime organizado, o objetivo da ofensiva legislativa da “Lei Anti Oruam” inclui criminalizar todo e qualquer projeto que possa mencionar o uso de drogas, mesmo que no intuito de informar, protestar ou reivindicar a legalização. É aí que movimentos como a Marcha da Maconha e outras organizações correm o risco de, aprovadas estas leis e projetos, não só deixar de existir, mas serem juridicamente perseguidas e silenciadas.
Com a intrinseca ligação entre a luta pela descriminalização e legalização das drogas ao fim do genocídio da população negra nas periferias, a criminalização do funk e dos artistas da cena entra como componente essencial das táticas da extrema direita.
Perseguição sistemática
Voltando no tempo, ainda em 2006, Pedro Jorge Lopes, o MC Colibri, ligado à Furacão 2000, foi preso acusado de apologia ao tráfico, sendo libertado meses depois por falta de provas. Já em 2010, os MCs Tikão, Smith, Didô, Max e Frank foram presos após ocupação policial no Complexo do Alemão, acusados de vinculação ao crime organizado e apologia ao tráfico. Em casos mais recentes, MC Kauan e o DJ Rennan da Penha foram presos, com as mesmas acusações.
Em todos os casos citados, ao expressarem musicalmente a realidade vivida por parte da população, incluindo a presença do crime organizado e do tráfico no cotidiano, bem como os conflitos entre estas facções e a PM, além dos meios de organização que existem nas favelas e comunidades, os MCs e DJs são os alvos midiáticos dos aparatos burgueses de repressão para fornecerem uma das justificativas ideologicas do genocídio em curso no Brasil.
Nesse mesmo sentido, Tati Quebra-Barraco, MC Carol, Vanessinha Pikachu, Valeska Popozuda, Deize Tigrona e outras artistas, ainda nos anos 2000, revolucionaram o funk carioca ao abordar temas como sexualidade, prazer feminino e independência da mulher. No documentário "Tô Feia Mas Tô na Moda" (2005), Denise Garcia mostra justamente como, em paralelo a perseguição racista nos moldes da criminalização, o funk também foi alvo de uma tentativa de supressão de uma potente contestação prática dos papéis de gênero da mulher no patriarcado capitalista.
É válido, ainda, mencionar o quanto o rap também é um exemplo dessa perseguição do Estado burguês. Artistas como Racionais MC’s, RZO, MV Bill, Dexter e Facção Central foram alvos constantes da repressão policial durante anos, num período ainda sem horizonte para o sucesso midiático e monetário dos artistas com obras voltadas à denúncia e contestação da ordem, seja por meio da censura, de prisões arbitrárias ou da criminalização de suas letras.
Uma das problemáticas que ora contrastam e ora convergem com a perseguição se coloca justamente na penetração da lógica do mercado nas expressões culturais da periferia depois destes anos de repressão. No caso de Poze, apesar de estar distante dos elementos que moldaram o funk consciente, suas músicas que abordam a criminalidade relatam um evidente sentimento de revolta e contestação da ordem.
Isso não impediu que o artista fosse bem sucedido em sua carreira, por diferentes razões. Todavia, Poze não escapa da engrenagem racista do capitalismo dependente brasileiro e sua marcada herança colonial. Independentemente da escolha estética ou temática, o Estado e a mídia seguirão instrumentalizando os artistas da periferia, ora como símbolos de superação, ora como justificativa e exemplo para a criminalização da pobreza e a manutenção da ordem vigente. Enquanto Oruam e Poze são perseguidos, presos e alvos de ataques, MC Ryan SP, que agrediu em flagrante sua ex-namorada, segue fazendo sucesso cantando sobre superação e ostentação.
Da proibição da prática da capoeira entre os escravizados às leis contra vadiagem, na negação da reforma agrária e repressão aos camponeses, quilombolas e indígenas, o papel dos braços armados da classe dominante brasileira, da Colônia à República, seja na forma de forças organizadas ou forças paramilitares, sempre foi e não pode ser outro senão impedir e suprimir a revolta. E isso passa pela supressão de qualquer divergência ideológica ou contestação da ordem vigente que se expressa culturalmente, incluindo o funk. Por esses meios, o capitalismo procura manter a todo custo aquilo que Lélia Gonzalez conceitua como franja marginal — aquela parcela, majoritariamente negra, mais vulnerável da classe trabalhadora — como reserva de mão de obra descartável, alvo permanente da repressão.

Multidão recebe Poze do Rodo em sua soltura. Reprodução/Foto: Victor Chapetta/Agnews.
A prisão de MC Poze é parte de uma luta tenaz da burguesia brasileira em efetivar o desejo de seus antepassados, que promoveram a ideologia do branqueamento, disfarçando-a anos depois com a máscara da “democracia racial”. Tentar, a todo custo, forjar um fundo essencialmente criminoso na obra dos artistas, assim, é o modus operandi da extrema-direita, que investe no pânico moral com o objetivo de angariar apoio no projeto de extermínio e manutenção do status quo.
Em contrapartida, não vemos as mesmas justificativas sendo usadas para as músicas que são financiadas pelo agronegócio e que falam sobre “beber até cair” e a importunação machista de homens sobre mulheres, dentro da lógica cisnormativa. Essa verdadeira indústria cultural do agro, que despeja rios de dinheiro na compra de emissoras de rádio e tv e em cachês milionários para artistas tocarem em pequenos municípios pelo Brasil, mesmo estando diretamente ligadas ao massacre de camponeses, indígenas e sem terra, numa lógica de violência extrema no campo, saem, enquanto isso, impunes pela mídia hegemônica e por seus representantes nas câmaras de deputados, senadores e vereadores.
A espetacularização da prisão de um artista tem servido para justificar a falsa intenção das forças repressoras e do Estado burguês em proteger a população. Sob essas justificativas, intensificam a violência contra a população negra e periférica e reforçam a lógica punitivista, ao mesmo tempo que protegem os “peixes grandes” que encabeçam e financiam, por exemplo, o tráfico. É como Black Alien diz no som “Um bom lugar”, sucesso do álbum de Sabotage: “Quem tá no erro sabe / Cocaína no avião da FAB”.