Privatização e austeridade ameaçam Eletronuclear e a soberania nacional
O governo Lula cedeu a pressão do mercado financeiro e incluiu no recente acordo essa medida, que avança mais na privatização do que o próprio projeto original bolsonarista.

Reprodução/Foto: Geraldo Campos Jr., da Agência iNFRA.
Apesar de publicamente criticar a privatização da Eletrobrás, Lula recuou no interesse político em revertê-la. Como resultado, foi firmado acordo entre a União e a Eletrobrás - divulgado em 28 de fevereiro - que reafirma a privatização realizada por Bolsonaro. Fica mantido, na negociação, o limite de cada acionista a 10% dos votos nas decisões administrativas, mesmo que o governo seja detentor de 42% das ações da companhia.
O recuo petista sobre a privatização não se limitou a acatar o entreguismo da estatal ao mercado, mas também a intensificá-lo. Isso ocorre por um outro termo dessa negociação: a desresponsabilização da empresa sobre investimentos relativos ao programa de energia nuclear brasileiro. Em 2022, quando houve o processo de privatização, a Eletronuclear era uma subsidiária da Eletrobrás, responsável pelas suas atividades nucleares. Como a constituição prevê que geração de energia nuclear é monopólio do Estado, a Eletronuclear permaneceu sob gestão estatal, com a recém privatizada Eletrobrás obrigada a investir na conclusão da usina de Angra 3, com valor estimado de aproximadamente 16 bilhões.
O mercado financeiro, representado pelos bancos de investimento que orientam investidores, manteve pressão para que a Eletrobras fosse desobrigada de investir no setor nuclear. O governo Lula, então, cedeu a essa pressão e incluiu no recente acordo essa medida, que avança mais na privatização do que o próprio projeto original bolsonarista. Na nova regra, fica sob responsabilidade do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) encontrar uma nova saída para a usina. De um lado, a reação do mercado não escondeu a empolgação com a decisão petista, como no caso do Itaú que divulgou no relatório aos clientes que “o carnaval chegou mais cedo para a Eletrobras”, enquanto as ações subiram 6% após divulgação da íntegra do acordo. Por outro lado, os trabalhadores reagiram à notícia: a Associação de Empregados da Eletrobrás (AEEL) divulgou a nota “Acordo entre Governo e Eletrobras privatizada é traição ao país!”
No texto publicado no último 5 de março, a AEEL denuncia: “De acordo com as comunicações oficiais da empresa e do governo, estes estão negociando a saída da Eletrobras da Eletronuclear e a desobrigação desta com a manutenção das Usinas de Angra 1 e 2 e da conclusão de Angra 3. As obrigações com a Eletronuclear foram o ônus que a Eletrobras privatizada teve que arcar em troca do extraordinário bônus de ganharem o direito de vender mais caro para o consumidor a energia das hidrelétricas amortizadas que antes era a mais barata do mercado. O resultado disso é que o governo e o consumidor (o povo brasileiro) terão de arcar sozinhos com os mais de R$ 30 bilhões necessários para a atualização de Angra 1 e 2 e a conclusão de Angra 3, já que a Eletrobras, que deveria aportar quase metade desse valor se verá desobrigada.”
Como contrapartida, o governo justifica que entende como vitória a conquista de três dos dez assentos no conselho administrativo da empresa (antes - no acordo original da privatização - limitado a 1 assento). A nota da AEEL, porém, questiona: "É importante ressaltar que uma coisa é o governo ter 43% dos votos na assembleia geral de acionistas, podendo formar alianças com outros acionistas privados e exercer real influência na empresa. Outra é poder indicar três dos dez membros do conselho de administração, mantendo apenas 10% do poder de voto. Serão apenas cargos decorativos, sem nenhuma influência real na companhia, ainda que regiamente remunerados. (...) Esse acordo só beneficia os acionistas privados da Eletrobras e o grupo 3G, o mesmo da fraude bilionária nas Americanas e que hoje controla a companhia, mesmo tendo menos de 0,5% das ações ordinárias. Tudo isso a troco de três cargos de R$ 200.000,00 por mês para o governo distribuir entre aliados.”
A medida vem numa esteira de golpes sobre a Eletronuclear nos últimos períodos, que não foram amenizados com a mudança de governos em 2023. Pelo contrário, sob a administração petista foi indicado Raul Lycurgo Leite para presidência da estatal, que conduz um severo plano de austeridade em sua gestão, pesando principalmente sobre trabalhadores, com um plano de demissão, corte de benefícios (principalmente moradias), transferência involuntária de funcionários e redução em despesas operacionais.
Em nota publicada, a Intersindical dos Sindicatos da INB (Indústrias Nucleares do Brasil), dirigida pela CUT, denunciou as demissões, colocando a culpa sobre o atual presidente da empresa:
"Para complicar ainda mais esta situação, o atual presidente Sr. Raul Lycurgo e seu diretor de Administração, Sr Sidnei Bispo (...) estão muito próximos de acabar com a empresa, suas história e seus empregados. Considerando a relação da INB com a ETN de fornecedor de elemento combustível esta crise pode tragar a INB e, ainda pior, comprometer toda a área nuclear, gerando perdas irreversíveis a todo o sistema e a tudo que significa a produção de energia para o Estado do Rio de Janeiro e para o Brasil. Nos solidarizamos com os empregados da Eletronuclear e com os Sindicatos e os sindicalistas que lá estão combatendo um presidente sem compromissos com a área nuclear e que na verdade luta para privatizar a empresa entregando um patrimônio do país para a iniciativa privada”.
A mesma nota, divulgada pelos sindicatos, termina fazendo um apelo ao presidente Lula, como se Lycurgo atuasse de forma alheia ao interesse do governo. Em entrevista ao Valor Econômico, porém, o presidente da empresa deixou claro que a medida é uma resposta à pressão de ministros, como da Casa Civil (Rui Costa - PT) e de Minas e Energia (Alexandre Silveira - PSD).
Tanto no acordo com os acionistas da Eletrobras, que desfinancia a Eletronuclear para agradar ao mercado; como na própria presidência da empresa, com um plano de austeridade e ataque aos trabalhadores; fato é que o programa de energia nuclear brasileiro passa por um processo de desmonte e insegurança. Estão em risco os trabalhadores, com seus vínculos de emprego e benefícios, mas também as regiões ao redor das usinas nucleares, mais sujeitas a acidentes frente a um processo de diminuição de seu quadro técnico. Tudo isso, representando mais uma agressão à soberania nacional, que dependeria do fortalecimento de um programa nuclear brasileiro, que desse força à transição energética e à proteção ambiental, com independência aos setores privados e internacionais.