INCRA reconhece crimes de grilagem e arrecada terras na AMACRO
Após mais de uma década de resistência contra os Zamora, um dos maiores pecuaristas do país, a comunidade Marielle Franco comemora a arrecadação parcial do território, mas segue na luta pelo reconhecimento integral da área.

Moradores da Comunidade Marielle Franco em 12 de Abril. Reprodução/Foto: Arquivo Pessoal de Paulo Araújo.
Por Kauana Niz e Lucas Ultracultura
Mais de 200 famílias da Ocupação Marielle Franco, localizada entre os municípios de Lábrea e Boca do Acre (AM), na divisa com o Acre, na conhecida Zona de violência AMACRO, comemoraram no dia 27 de fevereiro uma importante vitória: o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) anunciou a arrecadação de 28,4 mil hectares da área como patrimônio da União, com destinação para assentamento rural. No entanto, apenas metade do território foi oficialmente reconhecido, o que gerou questionamentos das lideranças locais sobre os critérios adotados pelo órgão, já que toda a área possui benfeitorias feitas pelos moradores, como casas, roças e agroflorestas. As lideranças agora aguardam uma reunião com a governança fundiária, prevista para os dias 24 e 25 de abril.
Os moradores da Ocupação Marielle Franco vivem no antigo Seringal Novo Natal, há mais de 10 anos em disputa com os pecuaristas Sidney Sanches Zamora e Sidney Sanches Zamora Filho, que se apresentavam como proprietários da área, conhecida como “Fazenda Palotina”. A alegação de posse vinha respaldada por documentos assinados pelo então ouvidor agrário nacional João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa que era coronel e foi nomeado para o cargo pelo governo Bolsonaro-Mourão e também por uma ação do cartório de Lábrea (AM) que omitiu informações solicitadas pelo Incra, sumindo com as páginas do livro de registro, uma articulação conjunta com juízes e a polícia. Desde o início, a comunidade denunciava a falsidade desses documentos.
A confirmação oficial de que as terras não pertenciam aos Zamora só veio após o conflito se intensificar, culminando na morte do castanheiro José Jacó Cosotle, conhecido como Jacozinho, em 29 de janeiro, e no forte embate travado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) ao denunciar todos os abusos que aconteciam diariamente na comunidade, o que pressionou ainda mais o INCRA que já prometia arrecadar as terras desde 2024. O órgão então reconheceu juntamente com a justiça que a documentação usada pelos fazendeiros para reivindicar a posse da área era totalmente irregular e a juíza que coordenava o caso decidiu não mais prosseguir com o processo de “conciliação” entre os latifundiários e os moradores.
Agora, a superintendência do INCRA no Amazonas afirmou que irá dar prosseguimento a um procedimento judicial contra os fazendeiros, acusados de ocupar por anos, de forma ilegal, terras pertencentes à União. Também será feita uma denúncia formal pela grilagem da área. Apesar do avanço, as lideranças da ocupação cobram que a outra metade da terra também seja imediatamente arrecadada e que a família Zamora desocupe o território, pois eles ainda se encontram na “fazenda” com todos seus pertences, incluindo milhares de cabeças de gado.
Esse episódio marca a primeira vitória em uma luta que já dura mais de uma década, marcada por violências, injustiças e perseguições. Ao longo dos anos, os camponeses da Ocupação Marielle Franco tiveram suas casas incendiadas, foram alvo de agressões e ameaças, sofreram monitoramento ilegal por drones, torturas, e perderam companheiros — incluindo um advogado popular e um morador. A repressão atingiu também sua principal liderança, Paulo Sérgio Araújo, preso em fevereiro de 2024 após denúncias infundadas feitas pelos fazendeiros.
Saiba mais lendo: Ocupação Marielle Franco: Um conflito silenciado na região Amacro - Jornal O Futuro
A prisão de Paulo ocorreu após a comunidade denunciar extração ilegal de madeira na área, promovida pelos mesmos fazendeiros. Em retaliação, “jagunços” teriam sido enviados ao local, resultando na tortura de quatro moradores, um deles ficou em estado grave. Paulo foi detido por ordem do juiz Danny Rodrigues Moraes, da 1ª Vara da Comarca de Lábrea, e permaneceu 51 dias em condições precárias. Posteriormente, passou para prisão domiciliar, sendo proibido de retornar à comunidade.
Na última semana, Paulo relatou que, após mais de um ano, o juiz responsável pelo caso, analisou finalmente o processo e revogou sua prisão domiciliar. Ele agora poderá retornar à comunidade.
Desde o anúncio da arrecadação parcial das terras, a comunidade pressiona o INCRA para garantir que todas as famílias sejam contempladas no processo de assentamento, sem deixar ninguém de fora. A arrecadação foi feita tanto na área de “fazenda” desmatada pelos fazendeiros quanto na metade da área que já habitava a comunidade. Ou seja, os moradores talvez tenham que se deslocar para um local de pastagem, um solo mais pobre, onde perderão os frutos de seu trabalho por anos.
Paulo descreveu que ainda não sabe exatamente os motivos que levaram o INCRA a não arrecadar a área completa, se ela pode está contemplada em outro Seringal ou se é propriedade privada de algum fazendeiro que desocupou a área há muito tempo.
Na última semana, foram informados que representantes da governança fundiária federal estarão em Humaitá (AM) nos dias 24 e 25 de abril. Com isso, moradores da ocupação se organizam para participar de uma reunião, onde pretendem exigir o reconhecimento integral do território e a retirada imediata dos fazendeiros da área.
Vale destacar que o processo ocorrido nas terras da Ocupação Marielle Franco não se configura como Reforma Agrária segundo a demanda dos movimentos populares da luta pela terra. O que houve foi a arrecadação de terras públicas que estavam sendo griladas por grandes fazendeiros. Reforma Agrária de verdade acontece quando o Estado desapropria uma propriedade privada que não cumpre sua “função social” de acordo com as diretrizes da Lei. Contudo, ambos os processos — a regularização de terras públicas e a própria Reforma Agrária — estão cada vez mais escassos no país, sendo que, nos últimos anos, esta última praticamente deixou de ser realizada.
Historicamente, a Reforma Agrária no Brasil sempre foi tratada de forma limitada e fragmentada, sem romper com a estrutura fundiária concentradora. Inclusive, os próprios movimentos sociais pautaram majoritariamente a arrecadação de terras improdutivas, sem questionar o direito à propriedade privada em si que aglutinou mais de 50% das terras brasileiras na mão da burguesia do campo, que é só 1% de todos que possuem terras, assim, deve-se questionar as táticas que foram usadas para que se avance nessa luta.
Nas últimas décadas, políticas neoliberais e social-liberais, inclusive sob governos autodeclarados de “esquerda”, aprofundaram o avanço do agronegócio, a concentração de terras, a superexploração do trabalho no campo e a intensificação dos conflitos territoriais.
A crise do capitalismo global, especialmente após 2008, agravou a expropriação de territórios e a expansão da monocultura voltada à exportação. Mesmo os chamados governos populares, como os de Lula e Dilma, avançaram muito pouco na distribuição de terras. Em todos os mandatos, o número de famílias assentadas ficou bem abaixo do prometido, e nos governos Lula I, Lula II e Dilma, a arrecadação de novas áreas para a Reforma Agrária foi a menor desde a ditadura militar.
No atual governo Lula, a situação não é diferente: até agora, só 7 desapropriações foram realizadas para fins de Reforma Agrária, um número vergonhoso. Quando se fala em regularização de assentamentos, esse governo só supera o de Bolsonaro, que regularizou apenas 20 assentamentos durante os quatro anos. Ou seja, a política de Reforma Agrária está praticamente parada.
Diante desse cenário, torna-se cada vez mais claro que a Reforma Agrária, dentro dos marcos do capitalismo dependente, não será realizada de forma efetiva. É necessário, portanto, retomar bandeiras históricas da luta popular e revolucionária, como a nacionalização das terras, articulando as lutas imediatas com um horizonte estratégico de reorganização socialista da sociedade.
A demanda imediata da comunidade é pela garantia de políticas públicas efetivas para os camponeses recém-assentados. É fundamental que programas como o Pronaf, além de outras linhas de financiamento da agricultura familiar, incluam essas famílias com urgência. Recursos como os do Fundo Amazônia também devem ser destinados de forma imediata para garantir condições dignas de permanência na terra.
No entanto, a realidade é que esses recursos chegam raramente a quem mais precisa. O acesso ao subsídio do Plano Safra — na parte reservada à agricultura familiar — tem sido acessada somente por camponeses médios ou já estruturados, enquanto camponeses recém-assentados ou sem terras seguem à margem. Isso força muitos a abandonarem seus lotes ou até vendê-los, por não conseguirem sobreviver da produção agrícola ou do extrativismo.
A cada dia, torna-se mais difícil viver da terra. Esse processo de exclusão e desmonte da agricultura camponesa tem sido constantemente denunciado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que alerta para a urgência de políticas estruturantes que rompam com a lógica do abandono e garantam dignidade e permanência no território para os trabalhadores.
É preciso barrar a política de titulação definitiva de lotes de assentamentos, iniciada por Temer, aprofundada por Bolsonaro-Mourão e mantida por Lula-Alckmin. Essa medida transforma os assentamentos em mercadoria, jogando os lotes no mercado de terras e reduzindo a responsabilidade do Estado com a sobrevivência e permanência dos assentados.

Moradores da Comunidade Marielle Franco em reunião em 12 de abril, após reconhecimento da arrecadação das terras. Reprodução/Foto: Arquivo Pessoal de Paulo Araújo.
Apesar desse avanço significativo e crucial na vida e organização desses trabalhadores do campo, e desse primeiro “alívio” como se referiu a liderança em entrevista, é importante avaliar os seguintes fatores que serão fundamentais no desenvolvimento dessa luta:
A comunidade está localizada na fronteira entre Lábrea e Boca do Acre (AM), municípios que fazem parte da chamada Zona de Desenvolvimento Sustentável, antiga AMACRO — uma "fronteira de expansão agrícola" idealizada pelos governos do Acre, Rondônia e Amazonas que reúne 10% de todos os casos de violência no campo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Nessa região, a violência tem sido a principal arma dos grandes capitalistas do agronegócio e da mineração contra as populações que resistem.
Esse projeto de “desenvolvimento sustentável” foi continuado pelo governo Lula que ampliou a exportação de soja, algo defendido pelos governadores desses estados. Trata-se, portanto, de um território previamente planejado para ser ocupado por grandes fazendeiros e amplamente conhecido pelas comunidades locais como uma “terra sem lei”.
Com difícil acesso e jurisdição indefinida, a região sofre tanto pelo isolamento geográfico quanto pelo abandono institucional. Os municípios interioranos que abrangem essa zona não promovem políticas públicas efetivas de integração ou acesso a direitos básicos. Esse descaso sistemático reflete a estrutura do Estado burguês na Amazônia, que historicamente perpetua crimes contra as populações pobres e tradicionais.
A ausência de demarcação das terras públicas não destinadas gera insegurança jurídica, o que abre brechas para invasores e enfraquece as comunidades indígenas, quilombolas e camponesas. Esse contexto é agravado por políticas econômicas como o Plano Safra, que concede enorme poder econômico ao Agronegócio— o que rapidamente se converte também em poder político, além do próprio poder constituído no estado para essa classe, que se formou nas raízes históricas do processo colonial do Brasil que os latifundiários carregam.
Mesmo após uma década de denúncias e violações, a família Zamora perdeu apenas parte das terras ocupadas ilegalmente. Eles seguem impunes e fortalecidos, com propriedades tanto no Amazonas quanto no Acre. Vale lembrar que os Zamora foram condecorados por sucessivos governos, incluindo gestões petistas como as de Jorge Viana e Tião Viana, no Acre. Hoje, são considerados um dos maiores grupos pecuaristas do país, com histórico contínuo de grilagem e devastação ambiental. É preciso pautar que esses criminosos sejam presos.
Os mais duramente atingidos pelas políticas neoliberais e a social-democracia que fortalecem o agronegócio são os camponeses, os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, que enfrentam diretamente a violência no campo. No entanto, os trabalhadores das cidades sentem os efeitos dessas políticas, com o aumento no preço dos alimentos e as consequências da crise climática intensificada por esse modelo.
Essas políticas aprofundam a subordinação do Brasil aos interesses do imperialismo, transformando o território nacional em mera plataforma de exportação de commodities, sem qualquer compromisso com a soberania alimentar ou com a justiça social.
Mesmo sob um governo que se apresenta como de "esquerda", o que vemos é a continuidade das impunidades, dos privilégios e da lógica predatória da burguesia rural. A concentração fundiária, a grilagem de terras públicas, a violência contra os pobres do campo são práticas que atravessam governos e revelam a estrutura profundamente colonial e autoritária do Estado.
Leia mais em: Planos Safra cada vez maior: os bilhões para o agronegócio e a inflação de alimentos - Jornal O Futuro