A quem serve o boicote à Boiler Room?
Há incontáveis formas de pensar boicote a produtoras e agentes que financiam o sionismo direta ou indiretamente, mas para que possamos ter um movimento eficaz e coerente desde as favelas brasileiras até as vielas de Gaza, é necessário dialogar com os trabalhadores e construir junto deles.

Reprodução/Foto: Reddit.
Por Mateus Filgueira
I) CONTEXTO
Em março, o jornal O Futuro, trouxe uma matéria, explicando o que é a Boiler Room e denunciando que a festa teria sido comprada por uma ‘gigante sionista que financia o genocídio do povo palestino’.
O coletivo Toronto Writers Against the War on Gaza, apontou que a KKR, “está envolvida na venda de terras palestinas por meio da Axel Springer, uma empresa alemã que promove os assentamentos ilegais de Israel na Cisjordânia. A KKR investe na empresa israelense de software imobiliário Guesty, que aluga propriedades em terras ocupadas, e na Global Technical Realty, atualmente construindo uma instalação subterrânea de dados de US$ 10,5 milhões e investindo em análises de dados de consumidores por meio da empresa israelense Clicktale”. A KKR é dona da produtora Superstruct Entertainment que, por sua vez, detém a Boiler desde março de 2025.
Quando a denúncia veio à tona, a Boiler em nota no Instagram e em seu site confirmou que a DICE (empresa que detinha 100% dos direitos sobre a marca) vendeu a Boiler Room para a Superstruct, e que os investimentos da KKR não refletem aos valores da Boiler. Na nota, apontou que “os trabalhadores da Boiler não tiveram qualquer poder de voto ou consultivo para a decisão da DICE e afirmou que possui independência editorial para continuar apoiando a Palestina e outros povos oprimidos, e que isso nunca mudará”.
Na mesma nota, a Boiler Room anunciou sua adesão à Campanha Palestina pelo Boicote Acadêmico e Cultural a Israel (PACBI) e ao Movimento BDS. A PACBI, fundadora do BDS, por sua vez, divulgou em seu site as boas-vindas a Boiler Room endossando o boicote à Superstruct Entertainment e sua “empresa-mãe” KKR. O BDS apontou que festas como a Boiler Room são igualmente vítimas e que os protestos populares autônomos por seus músicos, DJs, produtores e público são legítimos, todavia, enfatizou que é preciso saber diferenciar a cumplicidade voluntária e a involuntária, afirmando que a “postura mais ética que um artista ou organização, que tem pouca ou nenhuma influência sobre seus vínculos indiretos de cumplicidade pode adotar é compensar essa cumplicidade involuntária respeitando as diretrizes do BDS e se manifestando pela libertação da Palestina e por nossos direitos estipulados pela ONU.”
Na mesma declaração a PACBI apontou algumas estratégias para que o boicote à KKR não prejudique os trabalhadores da Boiler, inclusive artistas palestinos que constroem ativamente a festa, afirmando que o posicionamento assertivo da Boiler não pode ser meramente formal, e que deveria demarcar suas divergências políticas em relação a seus investidores e manter o compromisso com artistas que lutam ativamente contra o sionismo.
II) O QUE É O MOVIMENTO BDS E COMO FUNCIONA UM BOICOTE?
Completando 20 anos em 2025, o movimento de Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS) contra o governo de israel se inspirou na luta contra o apartheid na África do Sul onde ativistas exigiam o fim de qualquer apoio (cultural, artistico, bélico, financeiro, cientifico) com empresas que estavam ligadas à segregação; não só isso, além do boicote, pautavam desinvestir e sancionar essas empresas com a finalidade de mina-las e interromper, assim, as politicas racistas.
O paralelo entre o regime racista segregacionista sul-africano com as políticas colonizadoras israelenses é inevitável. o sionismo se sustenta sob o apartheid, genocídio e limpeza étnica. Entendendo que a ocupação sionista é uma expressão do imperialismo utilizado para garantir a hegemonia dos EUA-Europa no Oriente junto a sua sócia menor, a burguesia árabe, o BDS nasce com o intuito de derrubar o sionismo em sua força motriz: o capital.
Como comunistas, é preciso entender que não há consumo consciente dentro do capitalismo porque para garantir a produção e reprodução de mercadorias, bem como garantir a “fortuna de uns poucos tão ricos como jamais a humanidade imaginou ser possível”, o capitalismo, “em vez de transformar a produção social em produção ecologicamente sustentável, [...] amplia a exploração irrefreada da natureza” [ítem 9. “O mundo contemporâneo e a posição do Brasil na cadeia imperialista” (Programa do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário)].
Isso não quer dizer que lutas individuais por um consumo consciente (veganismo, moda cíclica, etc) não tenha valor, muito menos que a luta coletiva e organizada de um Partido Comunista não tenha expressão, na verdade, é justamente o contrário: “são essas contradições dramáticas entre a forma cada vez mais social da produção e a já caduca forma privada da apropriação da riqueza socialmente produzida que determinam as tarefas históricas revolucionárias do proletariado, bem como a resistência reacionária da burguesia”. [ítem 10. “O mundo contemporâneo e a posição do Brasil na cadeia imperialista” (Programa do PCBR)]. É somente a luta do povo trabalhador, através de greves e piquetes, que angariam vitórias para o proletariado dentro da democracia burguesa, e nesse sentido se assenta o Movimento por Boicote, Desinvestimento e Sanções.
Não podemos cair em personalismos, o BDS não é o ‘arauto da campanha por boicotes’, mas é inegável que se trata de um movimento que existe há mais de 20 anos que vem colecionando vitórias ao longo de mais de duas décadas.
A estratégia utilizada pelo BDS, a partir dos acúmulos históricos da luta contra o apartheid sul-africano, é o “foco em um pequeno número de alvos para mobilizar uma pressão massiva contra eles, garantindo que nossos esforços sejam impactantes. Forçando um alvo estratégico a encerrar sua cumplicidade, ensinamos uma lição a muitas outras empresas cúmplices”.

Fonte/Reprodução: BDS Brasil (Instagram).
Em um post no Instagram do BDS Brasil, o movimento elencou as razões pelo qual é importante manter o foco nos alvos que eles consideram estratégicos, para que a luta não seja descentralizada e ampla, mas focada e organizada, a fim de dar uma alavancagem coletiva e tornar a pressão de fato efetiva:

Fonte/Reprodução: BDS Brasil (Instagram).
O BDS categoriza suas ações através de ‘boicote total’, ‘campanhas de pressão’ e ‘apoio a boicotes orgânicos’:
a) O movimento BDS pede um boicote total a marcas cuidadosamente selecionadas devido ao histórico comprovado de cumplicidade com o apartheid, a ocupação e o genocídio de Israel contra o povo palestino;
b) O movimento BDS pede ativamente campanhas de pressão quando existem alternativas razoáveis, bem como lobby, manifestações pacíficas, pressão nas redes sociais, litígios estratégicos, etc;
c) Em alguns países, há marcas que são alvo de campanhas de boicote orgânico de organizações e da comunidade, não iniciadas pelo movimento BDS; o BDS apoia algumas dessas campanhas entendendo as razões que levaram ao levante orgânico das massas.
III) O BOICOTE À BOILER ROOM
Nas últimas semanas, surgiu de forma autonomista, movimentos pautando o fim/boicote da Boiler Room pela sua “cumplicidade e financiamento ao genocidio na Palestina”. Estes grupos apareceram em todo mundo e não possuem qualquer ligação com o movimento BDS e sequer possuem uma centralidade organizativa, não divulgam seus horizontes estratégicos/táticos e não apresentam suas direções (o que abriu margens nas redes sociais, inclusive, para desconfianças de que, na verdade, agentes sionistas estão pautando o fim da Boiler Room para que a KKR tenha ‘respaldo’ dentro da própria comunidade boiler para tal).
Em mais uma edição em São Paulo, a próxima Boiler acontece no dia 02/08 no espaço Arca na capital paulista e, com pressão nas redes sociais, ganhou espaço nas discussões do X/Twitter e ocasionou o cancelamento de performances de artistas que apresentariam na festa, inclusive, um dos grandes nomes da noite, o DJ d.silvestre que, em nota no instagram, apontou que seu trabalho “sempre estará alinhado às iniciativas que fortalecem comunidades marginalizadas, não só no Brasil, mas em todo o mundo” e que neste momento seria fundamental apoiar a causa palestina e denunciar o genocídio em curso.
Seguindo a estratégia adotada pelo BDS, o boicote a Boiler Room não poderia ser apoiado pelo BDS mesmo que este não tenha iniciado a campanha, de acordo com o princípio de ‘apoio a campanhas orgânicas’?
Conforme o próprio BDS, “o "B" em BDS refere-se a uma seleção coletiva e estratégica das empresas e instituições mais cúmplices. Embora boicotar uma empresa específica possa ser justificado por vários motivos, pode não atender aos critérios específicos do BDS ou ter o mesmo nível de impacto a longo prazo no terreno, em comparação com a seleção de empresas que estão atualmente entre nossos principais alvos de boicote”.
No caso específico da Boiler Room, o BDS entende que a festa é uma vítima da KKR, já que ela se encaixa no princípio da “cumplicidade involuntária” uma vez que “os trabalhadores da Boiler não tiveram qualquer poder de voto ou consultivo para a decisão da DICE [de venda]”. Com isso, os produtores, os artistas (principalmente os pequenos e/ou nichados) também são vítimas da KKR.
A Boiler Room ainda impulsiona carreiras; traz visibilidades à periferia, a artistas palestinos/pró-palestinos (no Brasil e no mundo); e gera empregos que vão além do que as pessoas enxergam diante da controladora dos DJs. É claro que há contradições como há em tudo dentro do capitalismo, o lucro da Boiler está diretamente ligado ao financiamento das ações da KKR na Palestina ocupada, mas precisamente por isso é que a luta precisa ser feita em diálogo com os trabalhadores e usuários e não por um movimento externo autonomista que não se preocupa em construir junto aos pequenos produtores e artistas e organizações já existentes.
Um músico, ‘art connector’ e jornalista, postou em sua conta na rede social X/Twitter que o movimento deve ser justamente o contrário, ao invés de replicar o boicote da forma como vem sendo feito, precisamos pressionar a Boiler a investir mais na cena musical periférica brasileira e construir um diálogo “fora da rede social” que também leve em consideração o impacto artístico e de geração de emprego que a Boiler traz:
“Eu particularmente quero sempre o melhor para nossos DJs, por isso trouxe esse diálogo ontem, não para gente cobrar os artistas, mas para que exista uma reflexão como comunidade mesmo. Definitivamente essa não é uma questão que vai ser resolvida até a próxima semana na edição do Boiler do Brasil. Leva tempo, diálogo e parceria com muita gente, principalmente fora de rede social. E não é uma vaquinha que resolve isso!
[...]
Vejo que a cobrança que precisamos fazer é diretamente com a estrutura do Boiler Room, que tem se esbaldado em nosso país sem nenhum questionamento. A Samma Abdulhadi [que inclusive fez um set histórico na Boiler Room Palestine] e VTSS cancelaram suas apresentações no Sónar e Field Day e solicitaram diversas contrapartidas dessas marcas, como por exemplo, o repasse do valor dos ingressos para ONGs que prestam ajuda aos povos palestinos. Acredito que um dos caminhos interessantes começa aí. Mas para cobrar isso, tem que ser através de uma ação coletiva, que esteja respaldada por pessoas influentes. E é justamente isso que está começando a se formar agora aqui no Brasil.”
Por enquanto, a Boiler ainda consegue ter sua independência política e criativa, até agora a Boiler ainda contrata artistas pró-Palestina e não os impede de se posicionarem em seus palcos (como o set do artista Abdullah Kasumbi (Boiler Pakistan) e da artista মm (Boiler Blangadesh) que se apresentaram com a kufiya - ambas festas recentes, em julho de 2025).
O fim da Boiler Room não é só descartar o histórico da festa e também não é só sobre o desemprego gerado; ativistas que se dizem pró-palestina pautarem o fim da Boiler Room é entregar à própria KKR o pretexto perfeito para encerrarem a única festa que possui grande alcance e peso político pró-Palestina na cena cultural underground atualmente. Fechando a Boiler, a KKR abrirá na mesma semana uma mesma festa, com novo nome e com absolutamente nenhum compromisso com a Palestina, na verdade, poderá dar visibilidade para artistas abertamente sionistas realizando festas através de um lobby que favorece ainda mais o financiamento do genocídio palestino. Ir à Boiler levando a bandeira palestina, usando uma camisa contra a KKR, vestindo a camisa do time palestino ou portando a kufyia é, sem sombras de dúvidas, mais eficaz que entregar o fim da Boiler para a KKR que desde o dia 1 esta com essa meta.
Ao invés de pautarem o fim da Boiler, a pressão deve ser o contrário: que a KKR abra mão da Boiler Room para que ela se torne uma festa independente e autofinanciável, por exemplo; o diálogo sobre os rumos da Boiler deve ser feito com quem diretamente a faz e constrói. Ao invés de boicotarem a Boiler Room, a pressão pode ser para que a Boiler reverta seus lucros em campanhas pro-Palestinas (que sim pararam depois da venda da DICE), pressão para que os artistas que se apresentem na Boiler assinem abaixo-assinados pelo cessar-fogo e que participem de movimentos permanentes de apoio ao povo palestino, etc.
III) SELETIVIDADE NO BOICOTE CULTURAL
Uma pauta que passou despercebida dentro do seio da luta pró-palestina no Brasil, inclusive despercebida também pelo BDS, foi o contrato milionário de exclusividade que o estádio do Morumbi (agora MorumBIS, depois da compra pela empresa de chocolate) fechou com a produtora internacional Live Nation.
Firmado em 2023, o contrato garantia que todos os shows nacionais e internacionais até 2028 realizados no estádio MorumBIS (São Paulo) deveriam ser feitos pela Live Nation ou sob sua autorização. Em junho deste ano, o contrato foi prorrogado de 2028 para 2031 e totalizou o montante de R$ 77,4 milhões, além de 40% do lucro líquido das vendas de alimentos e bebidas, 15% das vendas de souvenires e itens de merchandising e R$ 20 sobre cada ingresso vendido, segundo matéria da torcida do time São Paulo FC.
Enquanto a Live Nation traz ao Brasil artistas gigantes e pró-palestina como Dua Lipa, Billie Eilish, Olivia Rodrigo, The Weeknd e Imagine Dragons, a produtora comprou uma empresa israelense para levar cantores para Israel. Segundo matéria do Israel National News, a gigante dos shows “comprou a participação majoritária da promotora israelense Bluestone Entertainment e lançou a Ticketmaster, sua unidade de venda de ingressos, no estado judeu”. Membros da Live Nation, Guy Beser e Shay Mor Yosef, apontaram que “Vemos um enorme potencial para artistas internacionais em Israel, especialmente porque a infraestrutura do local vai melhorar nos próximos anos”, o que esta diretamente ligado a crescente ocupação nas terras palestinas e genocídio deste povo.
No mundo, as pressões em cima da Live Nation o ocasionaram o fim de diversos contratos que a empresa possuía (destaca-se o fim do financiamento do banco Barclays nas produções da Live Nation) e o cancelamento de diversos festivais onde os artistas suspenderam suas apresentações em apoio à Palestina. No Brasil, o contrato milionário não contou com nenhuma mobilização; o que coloca em perspectiva a seletividade destes grupos justamente com a Boiler Room.
A festa/rave ‘Universo Paralelo’ organizada pelos pais do DJ Alok foi o evento em que a resistência palestina realizou sua contraofensiva - Tempestade Al-Aqsa - na Palestina ocupada perto da Faixa de Gaza e também precisa de atenção e um programa conciso de boicote nas suas edições anuais no Brasil. Festivais gigantes como Rock in Rio e The Town são transmitidas pela Rede Globo e suas filiais (Multishow), cumplices da propaganda sionista e carecem de organização ativa para boicote. A palataforma moderninha ‘Mubi’ esta com um fundo de investimento diretamente envolvido no financiamento da máquina sionista, o que também exige pressões para que a Cinemateca Brasileira, o MAM Rio, o Cinusp e demais instituiçoes culturais rompam com a plataforma…
A ideia desse tópico não é para haver uma “corrida pelo boicote perfeito”, nem uma competição de “qual produtora é mais genocida”; mas é inegável que existe uma escolha - não muito bem fundamentada - contra a Boiler. Todo o esforço propagandístico contra “produções sionistas” se apresenta apenas naquela única em que possui raízes na Palestina, que realiza eventos voltado pela e para periferia e dão visibilidade a artistas marginalizados e nichados do mundo todo, ao passo que artistas mi/bilionários, produtores com super-salários e eventos com zero peso político para a luta pró-Palestina seguem livres. Boicotar a Boiler Room é definitivamente uma escolha.
Apesar do nome do movimento demarcar três eixos (boicote, desinvestimento e sanções), há inúmeras formas de realizar pressões que envolvem desde ações diretas (como a ocupação de portos para impedir carga à Israel) até pressão para rompimento de relações - à exemplo, a Petrobrás não está sendo sancionada, desinvestida e nem boicotada; não faz sentido levantar uma bandeira pelo ‘fim da Petrobras por esta abastecendo tanques israelenses’, mas faz todo sentido levantarmos a bandeira para rompimento das relações comerciais entre Petrobras e Israel.
É surpreendente que estes grupos - sem construção conjunta com artistas e produtores - pautem o fim da Boiler e não sua independência, é surpreendente que busquem boicotar a festa ao invés de ocupá-la ainda mais e exigir dela ainda mais comprometimento com as favelas brasileiras e com a Palestina. É curiosamente surpreendente que estes grupos se neguem a seguir as diretrizes do maior movimento de boicote do mundo.
Há incontáveis formas de pensar boicote a produtoras e agentes que financiam o sionismo direta ou indiretamente, mas para que possamos ter um movimento eficaz e coerente desde as favelas brasileiras até as vielas de Gaza, é necessário dialogar com os trabalhadores e construir junto deles.