Iniciado o julgamento do ex-presidente Bolsonaro e seus aliados na trama golpista

O caráter histórico do julgamento de Bolsonaro e alguns de seus aliados, como militares de alta patente, é impactante pelo seu ineditismo. Mesmo com o fim da ditadura empresarial-militar, nunca um comandante do exército havia se tornado réu no Supremo Tribunal Federal.

2 de Setembro de 2025 às 15h00

Reprodução/Foto: Gustavo Moreno/STF.

Iniciou-se, nesta terça-feira (02), o julgamento da ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros 7 acusados de tentativa de golpe de estado. A acusação da Procuradoria-Geral da União (PGR) é de que uma trama golpista, liderada pelo ex-presidente, visava reverter o resultado eleitoral e mantê-lo no poder. Além dele, estão sendo julgados o Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública; Alexandre Ramagem, então diretor geral da Abin; Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro; Augusto Heleno, Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional; Walter Braga Netto, candidato à vice na chapa com Bolsonaro; Almir Garnier, comandante da Marinha; e Paulo Sérgio Nogueira, ministro da defesa.

O julgamento chama a atenção pelo fato de colocar no banco dos réus o ex-presidente e militares de alta patente, envolvidos na trama golpista. São 5 crimes pelos quais Bolsonaro e alguns dos outros réus respondem: organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de estado; dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Esses últimos, embora os acusados não estejam diretamente envolvidos, se justificam a partir de “omissão dolosa” e incitação aos atos.

A linha do tempo da “trama golpista”

O julgamento do STF abarca a movimentação iniciada ainda em 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, como o ministro Anderson Torres e o chefe da Abin, Alexandre Ramagem, iniciaram uma campanha de descrédito contra o sistema eleitoral brasileiro, baseada em informações falsas. Os ataques se dirigiram também contra o ministro Alexandre de Moraes e o STF, que havia determinado a prisão de apoiadores do governo por atos antidemocráticos. Em um ato, no dia 7 de setembro, Bolsonaro declarou que não cumpriria mais as determinações do Supremo.

Ao longo de 2022, a estratégia golpista se aprofundou. Em uma reunião ministerial em julho, o general Heleno sugeriu uma ação de força, como “virar a mesa”, para impedir a vitória de Lula. No mesmo mês, Bolsonaro apresentou a embaixadores supostas fraudes nas urnas eletrônicas, buscando apoio internacional.

Após a vitória de Lula, manifestantes montaram acampamentos em frente a quartéis, pedindo intervenção militar com o apoio de figuras do governo, como Mauro Cid. Nesse contexto, foi elaborada a “minuta do golpe”, um decreto que previa a anulação das eleições e a prisão de ministros do STF. Bolsonaro teria pedido ajustes no documento e o apresentado aos comandantes das Forças Armadas. Paralelamente, um plano para assassinar autoridades, incluindo Moraes, avançava, embora supostamente barrado pelo alto comando das Forças Armadas.

Antes de concluir o mandato, Bolsonaro viajou para fora do Brasil, ausentando-se da posse de Lula. O clímax dessa escalada ocorreu em 8 de janeiro de 2023, com a invasão do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF. Para o Ministério Público, o ato foi o desfecho do plano organizado para desestabilizar a democracia brasileira.

O caráter do julgamento

O caráter histórico do julgamento de Bolsonaro e alguns de seus aliados, como militares de alta patente, é impactante pelo seu ineditismo. Mesmo com o fim da ditadura empresarial-militar, nunca um comandante do exército havia se tornado réu no Supremo Tribunal Federal.

O julgamento – e a eventual prisão de Bolsonaro – representa, na atual conjuntura, um duro golpe à articulação da extrema-direita no Brasil, que terá seu maior líder e representante fora de combate. É verdade, que sua prisão não impede um eventual retorno, através de alguma manobra política e que não nos cabe prever, mas não descartar. Mesmo assim, deixa as coisas mais difíceis para esse setor e, em especial, ao Bolsonaro propriamente.

Ademais, os Estados Unidos anunciaram que acompanharão o julgamento do ex-presidente em tempo real, e podem realizar novas medidas de retaliação ao julgamento, visando enfraquecer o judiciário. O próprio presidente dos EUA, Donald Trump, apontou que a situação de Bolsonaro está entre as motivações ao tarifaço de 50% para importação de produtos brasileiros. O governo brasileiro, apesar de ter respondido publicamente, ainda tem cautela com o estabelecimento de medidas de reciprocidade, que poderiam se contrapor às tarifas. Mesmo assim, não parece que tal iniciativa venha a influenciar nas decisões do STF.

A iminente prisão de Bolsonaro, diante das provas de seu envolvimento direto com a tentativa de golpe de estado e sua atuação para intervir nas investigações e até fugir do Brasil, será uma conquista. A classe trabalhadora, que perdeu seus amigos e familiares durante a pandemia, sob a responsabilidade de um presidente que minimizou os riscos da Covid-19 e boicotou todas as medidas de saúde pública e segurança sanitárias, deseja o pior para esse sujeito. A prisão é, nesse sentido, um motivo de celebração.

No entanto, nos cabe lembrar, que não é por isso que Bolsonaro pode ser preso. Sua atuação genocida na pandemia, que causou mais de 700 mil mortes – enquanto estudos apontam que pelo menos 150 mil mortes poderiam ter sido evitadas no primeiro ano da pandemia – não está sendo questionada. Nem mesmo sua política econômica, que aprofundou a destruição da indústria nacional, como a venda de refinarias da Petrobrás e a privatização da Eletrobrás está sendo lembrada nesse momento.

O Supremo Tribunal Federal, enquanto “guardião da Constituição”, cumpre o seu papel institucional na democracia brasileira e deve ser defendido de qualquer ameaça golpista que vise, como nesse caso, prolongar o poder de um projeto de aprofundamento da exploração, de destruição do patrimônio nacional e dos serviços públicos e retirada de direitos. A derrubada, pelos golpistas, de Moraes ou do STF como um todo representaria um enorme retrocesso democrático, com propensão a assumir contornos autocráticos, enquanto reprimiria opositores.

No entanto, o mesmo STF sustenta todo e qualquer ataque aos interesses da classe trabalhadora que sejam feitos seguindo os marcos e ritos constitucionais. Para a classe trabalhadora, não deve restar nenhuma dúvida que essa instituição jamais poderá representar os interesses da classe, uma vez que o poder político – isto é, o Estado - pertence à burguesia e atua em prol de seus interesses. Não é à toa que Jair Bolsonaro não esteja sendo julgado pelos ataques que cometeu diretamente contra a classe trabalhadora. Essas ações não são lembradas nem pelos parlamentares, nem pelo judiciário e muito menos pela mídia burguesa.

É necessário nos atentarmos ao fato de que a defesa dos militares em julgamento e até parte da narrativa predominante aponta que foi a discordância do alto comando das Forças Armadas que impediu o golpe, revelando um suposto “republicanismo” e apreço à Constituição por parte dos militares. Essa narrativa não explica, no entanto, porque a articulação golpista não foi denunciada em momento algum por parte da instituição. Pelo contrário: atuaram em conjunto em vários momentos. A divergência, ao que tudo indica, foi sobre os rumos políticos da iniciativa, revelando uma continuidade da ameaça de ruptura.

Também não podemos perder de vista que, para a burguesia e grande parte de seus representantes políticos, Bolsonaro já é carta fora do baralho. A recente fusão de União Brasil e Progressistas (A União Progressista Brasileira) que possui a maior bancada parlamentar e mais de 20% dos prefeitos do país, pode determinar o resultado eleitoral de 2026, inclusive com a possibilidade de uma chapa própria – mesmo sendo parte da atual base aliada de Lula. Outros nomes da oposição, como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado e Romeu Zema, estão sinalizando a possibilidade de construção de alianças visando desbancar a chapa petista nas próximas eleições. Nomes ainda mais reacionários e vinculados ao bolsonarismo, como Nikolas Ferreira e os próprios familiares do réu, também possuem bastante força eleitoral e seguem mobilizando suas bases. A prisão de Bolsonaro é um alívio, mas, nem de longe, seu projeto está derrotado. Muitos candidatos ainda devem fazer alusão ao militar reformado para obter votos de seus apoiadores.

Tal quadro nos revela também a insuficiência política do governo Lula. Submetido aos auto-impostos grilhões do “arcabouço fiscal”, o governo teima em não romper sua amplíssima coalizão com o grande capital monopolista – especialmente o mercado financeiro, a indústria nacional e o agronegócio –, empurrando o ajuste fiscal para os gastos sociais e infraestrutura pública, em detrimento da classe trabalhadora. Muitos problemas sociais crônicos presentes também em gestões anteriores seguem intactos, como a inflação de alimentos, o aumento do aluguel, grande endividamento da população, e os limites no acesso aos serviços públicos essenciais.