Israel aceita o cessar-fogo para violá-lo horas depois
Os palestinos propõem o acordo conscientes de que a espada não negocia a paz com o pescoço. Ao tratar com Israel, já se adentra a mesa de negociação sabendo que as tratativas com a ocupação têm como cláusula implícita a sua violação.

Foto: Reprodução / Reuters.
Israel aceitou as condições apresentadas pelo Hamas ao plano de paz de 20 pontos proposto pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O acordo, mediado por Qatar, Egito e Turquia, prevê o início de um cessar-fogo imediato em Gaza, a libertação de prisioneiros e a retirada gradual das tropas israelenses da Faixa.
Apesar do anúncio ter sido celebrado por Trump como “um grande dia para o mundo”, o significado do fato político vai muito além da retórica triunfalista. A resposta do grupo palestino perfaz um aceite condicionado que devolve no tabuleiro diplomático à ocupação a responsabilidade sobre a continuidade da guerra.
Ao concordar com o plano “em seus próprios termos”, o Hamas se distanciou da imagem de intransigência que Israel o tenta atribuir há décadas. O grupo aceitou a libertação dos reféns israelenses, desde que as “condições de campo” para a troca sejam respeitadas, e aprovou a entrega da administração de Gaza a um conselho de independentes – contanto que este seja fruto de um consenso nacional palestino, respaldado pelas organizações árabes e islâmicas e pelo apoio oficial árabe na região.
Outros pontos, sobretudo os que tocam o futuro político de Gaza e os direitos do povo palestino, foram deixados para decisão coletiva de todas as forças palestinas. Na prática, o Hamas transformou a proposta de Trump em uma plataforma de negociação nacional e retirou de si a responsabilidade exclusiva sobre o futuro de Gaza.
Essa postura reflete um histórico político do movimento, que prioriza a unidade estratégica palestina sobre a conquista de poder local. Em 1996, o grupo interrompeu ataques para permitir eleições; em 2005, integrou o processo de reforma da OLP após a Declaração do Cairo; e em 2006, aceitou ceder ministérios estratégicos ao Fatah após os Acordos de Meca – todos sinais de que sua lógica política vai além do domínio territorial.
O plano de Trump, que começaria a ser implementado nesta quinta-feira (9), prevê a libertação de 20 reféns israelenses em até 72 horas, em troca da soltura de 250 prisioneiros palestinos condenados à prisão perpétua e outros 1.700 detidos desde outubro de 2023. Israel, entretanto, voltou atrás em relação ao marco temporal de vigência do acordo, e, horas depois de sua assinatura, voltou a bombardear a Faixa de Gaza. Segundo a ocupação, a vigência se dá a partir do momento da ratificação do acordo.
O Hamas, em comunicado, confirmou o acerto e fez um apelo direto a Trump e aos países mediadores para que “obriguem o governo de ocupação a cumprir integralmente os termos do acordo e evitem manobras de adiamento”. O movimento afirmou que o acordo “visa pôr fim à guerra, garantir a retirada das forças de ocupação e iniciar a reconstrução da Faixa de Gaza”.
Embora Israel tenha aceitado o acordo, não há ilusão sobre até que ponto o governo Netanyahu está disposto a cumprir o que foi assinado. Segundo fontes ouvidas pela imprensa local, a libertação de prisioneiros palestinos de alto perfil é um dos pontos mais sensíveis dentro do gabinete israelense.
O que se observa, contudo, é um impasse político condicionado: ao aceitar as condições do Hamas, Israel se vê diante de uma escolha que pode redefinir sua imagem internacional perante seus aliados. Nesse contexto, apesar de opor tantos obstáculos o quanto puder, Israel não deverá enfrentar diretamente os EUA, principal fiador do plano de paz em campo internacional.
Mesmo diante de uma virada de chave no tabuleiro diplomático, o plano deixa inúmeras questões em aberto. Não há garantias de cessar-fogo permanente, nem clareza sobre a libertação de todos os detidos palestinos. A reconstrução de Gaza, sob tutela de uma força internacional, reacende temores de uma ocupação disfarçada, além de ignorar temas centrais como o direito à autodeterminação e o status de Jerusalém.
Assim, ao aceitar parcialmente o plano, o Hamas converte uma proposta desenhada para a rendição palestina em uma ferramenta de resistência política. O grupo manteve seus princípios inegociáveis – não reconhecer o Estado de Israel e não entregar as armas –, mas coloca o debate sobre o futuro de Gaza e da Palestina no campo da legitimidade popular e internacional.
O cessar-fogo representa, então, uma mudança em meio à dinâmica da guerra de extermínio. Pela primeira vez desde outubro de 2023, o Hamas surge como ator político que impõe condições e força Israel a se posicionar diante da comunidade internacional. Ao aceitar negociar sob suas próprias regras, o grupo tirou da narrativa israelense a justificativa de que “não há com quem conversar”.
Entretanto, como alertou Jamil Mazhar, vice-secretário-geral da Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP), embora as medidas recentes tomadas pelo Hamas para pressionar a administração norte-americana sejam consideradas um passo importante rumo a um avanço político que pode ser construído no futuro, ainda não se alcançou avanço real na proteção dos direitos do povo palestino ou na interrupção dos crimes da ocupação nas suas fronteiras e no interior da região.
Nesse sentido, as manobras políticas realizadas pela resistência palestina são feitas conscientes de que a espada não negocia a paz com o pescoço. Ao tratar com Israel, os palestinos já adentram a mesa de negociação sabendo que costurar um acordo com a ocupação tem como cláusula implícita a sua violação. A mesma consciência devem ter os setores solidários à causa por todo o mundo.