Por que homens matam mulheres no Brasil?
Enquanto uma onda de feminicídios repercute no Brasil, o que sustenta a violência de gênero é mantida e protegida por discursos reacionários e liberais.

Ato em 8 de março de 2025, em Curitiba. Foto: Franthesco Fioravanço/Jornal O Futuro.
Por Stella
No Brasil, os dados mais recentes sobre feminicídio indicam uma cruel realidade da violência contra as mulheres. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em 2024 foram registrados 1.459 feminicídios e 71.834 estupros. Em termos diários, isso significa que aproximadamente quatro mulheres foram assassinadas todos os dias por razões de gênero, enquanto cerca de 196 sofreram violência sexual diariamente.
Mais grave ainda: a maior parte dessas mortes, que são de mulheres negras entre 18 e 44 anos, ocorreu dentro de casa, cometidas por companheiros ou ex-companheiros. Os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que o tempo médio entre o início do processo e a concessão de medida protetiva é de 3 dias, e o Mapa Nacional da Violência de Gênero indica que 7 em cada 10 mulheres que sofreram violência não solicitaram medidas protetivas.
Não basta apenas olhar com atenção a crescente publicização dos casos e dos detalhes cruéis de execução de mulheres, é preciso conseguir enxergar qual a sua razão histórica. Nos últimos doze meses, uma sequência de crimes dramáticos e brutais evidencia o caráter estrutural da violência contra mulheres, que inclusive figura nos principais portais de notícia como principal fator determinante desses acontecimentos. Acontece que a constatação de seu caráter estrutural apartada da análise classista deixa pouca, ou quase nenhuma, resposta. Nos muitos casos onde não há medida protetiva, a razão provavelmente está numa relação de dependência financeira entre vítima e agressor. Em muitos outros, para as mulheres que sofrem violência, registrar a denúncia pode representar a perda de uma parcela significativa da renda familiar, colocando em risco a própria subsistência e a de seus filhos.
Recentemente, com tantos episódios de violência de gênero vindo à tona, destaca-se o de Thiago Schutz, influenciador que se apresenta como orientador de masculinidade e tem acumulado repercussão nos últimos anos. Laudos apontam que sua namorada foi vítima de pelo menos onze agressões físicas, com lesões no rosto, nos braços e nas pernas, além de sinais de defesa e tentativa de violência sexual após ela se negar a manter relações. A vítima relata ter sido arrastada, chutada, jogada ao chão e impedida de sair da residência, conseguindo escapar apenas para buscar ajuda. A relação durou cerca de três meses.
Em São Paulo, uma mulher de 31 anos foi atropelada e arrastada por aproximadamente um quilômetro pelo ex-companheiro após uma discussão movida por ciúmes. A violência foi tão extrema que ela precisou ter as duas pernas amputadas. Também na capital paulista, um homem entrou armado na pastelaria onde sua ex-companheira trabalhava e efetuou ao menos seis disparos contra ela poucos dias após o término do relacionamento.
No Sul do país, o assassinato de Catarina Kasten, atacada, estuprada e morta durante uma trilha, gerou comoção nacional e reforçou a sensação permanente de insegurança que pesa sobre a vida das mulheres, mesmo em ambientes considerados públicos e abertos.
Separados por poucos dias e ocorridos em diferentes regiões, esses casos mostram que o intervalo entre a autonomia feminina e a violência é cada vez mais estreito. Em praticamente todas as situações, o agressor é um homem com vínculo íntimo ou afetivo com a vítima, o que confirma o caráter doméstico e relacional da violência patriarcal. A brutalidade não se expressa somente no ato físico que mutila ou tira vidas, mas também no desejo de punição e controle exercido sobre mulheres que rompem ciclos de dominação, encerram relacionamentos ou simplesmente afirmam sua vontade.
O caso de Thiago da Cruz Schoba acende mais um alerta sobre como a misoginia é encarada, dentro do modo de produção capitalista, como um dentre vários discursos reacionários disponíveis para assegurar papéis de gênero que garantem a produção e reprodução social. Esse discurso reforça e aprofunda a ideia de que mulheres estão mais aptas ao trabalho doméstico e de cuidado, enquanto homens devem preencher o espaço público.
Quando episódios como esses são tão comuns e repercutem de maneira ampla, é preciso ir além de uma simples constatação dessa característica estrutural do feminicídio e da violência de gênero. A lógica liberal para enfrentar esse problema não só atribui sua existência à cultura e à estrutura – sem especificar seu caráter econômico, sobretudo –, como frequentemente amplifica soluções individuais como saída.
Ao mesmo tempo, as soluções que as políticas de segurança pública têm dado para os casos de feminicídio (como legalizar a venda de spray de pimenta para defesa feminina) parecem não sair do lugar justamente porque não atacam a sua determinante condicional: o modo de produção capitalista, que se fortalece com padrões sociais de gênero opressivos que subjugam mulheres e controlam seus corpos a partir dos interesses das classes dominantes.
As raízes do problema da violência de gênero
Desde sua promulgação, a Lei Maria da Penha foi enaltecida como marco civilizatório no combate à violência doméstica e familiar. Juridicamente, por violência doméstica e familiar entende-se uma série de crimes que são cometidos no âmbito doméstico e familiar, que podem conter violências físicas, psicológicas, sexuais e patrimoniais, enquanto o feminicídio é o homicídio qualificado que acontece em razão do gênero. No entanto, toda forma de violência contra a mulher decorre de um mesmo sistema, sendo o feminicídio a sua expressão máxima.
Mesmo após a tipificação do feminicídio, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2015, os dados sobre violência contra a mulher marcam um aumento recorde e resultados questionáveis. Entre eles: subnotificação, falhas no registro e acompanhamento dos casos, insuficiente capacitação institucional, e uma carência de políticas preventivas integradas (educação, saúde, assistência social) que atuem sobre as raízes da violência. O problema da subnotificação, por exemplo, é um dos mais centrais, já que ataca frontalmente a capacidade de desenvolvimento e publicação de estatísticas e dados que consigam de fato demonstrar possíveis avanços e retrocessos.
Isso revela um ponto importante: a saída por meio do aumento do punitivismo, de maneira isolada, pode ser até contraproducente se não for acompanhada de um profundo processo de esclarecimento sobre as reais raízes do problema, com base no estudo dos dados disponíveis. A negligência em visibilizar todos os dados (como raça, classe, histórico de violência, contextos familiares, cruzamento de dados oriundos dos tribunais, etc.) transforma o sistema de dados público em um espelho parcial da realidade e legitima discursos punitivistas que pouco fazem para evitar a repetição e a continuidade da violência.
Enquanto a mídia burguesa, em defesa de sua classe, repercute a necessidade de encarar esse problema pela via de uma transformação cultural, ou até mesmo meramente como um caso solucionável pela educação, o Brasil vem testemunhando uma série de ataques coordenados contra os direitos reprodutivos de mulheres e pessoas que gestam. O PL 1904/2024 (em tramitação) busca equiparar o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. A proposta visa penalizar com até 20 anos de reclusão mulheres que realizem o aborto, inclusive nos casos de estupro. Esse e outros projetos que atacam serviços públicos que garantem o acesso ao aborto configuram, na prática, uma forma institucional de normalizar a punição de mulheres que muitas vezes são duplamente vitimadas: por violência sexual e pela violência do Estado.
A violência de gênero encontra seu terreno mais fértil na soma entre o pleno funcionamento de uma estrutura que ataca os direitos de mulheres e pessoas que gestam com o modo de produção que perpetua a divisão sexual do trabalho e distingue socialmente os papéis de gênero. Associar essa ofensiva reacionária aos índices de feminicídio revela o mesmo padrão: o controle de corpos pelo Estado. Esse arranjo não se sustenta apenas por normas culturais, mas por interesses materiais e de classe. A violência de gênero, assim, funciona como mecanismo de controle, intimidação e submissão. É, portanto, fundamental ao funcionamento do capitalismo.
Enquanto se assentar na lógica da exploração, qualquer solução, criminal ou institucional, que não tenha o franco objetivo de mostrar e combater, de maneira transparente e com base nos dados, o real sustentáculo da violência de gênero, não produzirá senão reduções mínimas nas estatísticas já frágeis. Da mesma forma, soluções liberais, que aguardam que uma suposta igualdade econômica entre gêneros magicamente cairá dos céus para acabar com a violência de gênero, entram em contradição com a própria manutenção da sociedade de classes.
Esse é o momento de esclarecer que não há possibilidade de transformação cultural que alcance a erradicação de violências que só ocorrem porque o capitalismo utiliza do modelo de sociedade patriarcal para perpetuação de sua dominação de classe. Para a emancipação de todas as mulheres é preciso que haja uma ruptura revolucionária por meio da ditadura do proletariado.