A luta contra o HIV/Aids e sorofobia em tempos de neoliberalismo e o dezembro vermelho
O Brasil pode ser potência na produção de farmacêuticos para o tratamento do HIV/Aids, mas se acovarda diante do lobby do ramo farmacêutico privado, enquanto ainda falha no acesso ao tratamento em várias regiões do país.

Reprodução/Foto: Alexandre Pinheiro/Semsa.
Por Daimar Stein
O Dezembro Vermelho é uma campanha, criada pela Lei 13.504/2017, que busca conscientizar a população sobre as medidas de prevenção, assistência, proteção e promoção dos direitos das pessoas infectadas com o vírus HIV, a aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Mesmo com a campanha e os investimentos crescentes nessa luta, o país ainda conta com diversas questões socioeconômicas que levam uma a cada doze pessoas a não buscar tratamento e uma a cada sete pessoas que começa o tratamento a o abandonar.
O Brasil se comprometeu com a Unaids, programa da Organização das Nações Unidas, a tirar da aids o status de ameaça à saúde pública até 2030, e, de acordo com a Unaids Brasil, a mortalidade pela mesma caiu de 5,5 mortes por 100 mil habitantes para 4,1 nos últimos dez anos, uma queda de mais de 25%. Somente no Projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA) deste ano mais de 3,1 bilhões de reais foram destinados para a aquisição de medicamentos e insumos de prevenção, bem como incentivo financeiro aos municípios.
O Sistema Único de Saúde (SUS) é a vanguarda no combate ao vírus HIV no país desde 1996, com a Lei 9.313/1996 garantindo o direito ao acesso gratuito ao tratamento, amplamente difundindo de forma gratuita para a população os métodos de prevenção e tratamento mais avançados, como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós Exposição (PEP), além de ampliar o acesso ao diagnóstico precoce, o que não só garante melhores condições de tratamento e saúde à pessoas soropositivas, evitando o comprometimento do sistema imunológico característico da aids, como ajuda a interromper a cadeia de transmissão não só do HIV como de outras ISTs.
Apesar dos avanços, onde mais de 90% das pessoas em tratamento alcançam o estágio indetectável, no qual o vírus não é transmissível e os sintomas não se manifestam, ainda existe uma série de preconceitos amplamente difundidos quanto à pessoas soropositivas. Infelizmente, essa ligação ainda é relacionada à ampla discriminação envolvida durante o período de descoberta do vírus HIV, durante o final dos anos 80, onde a aids foi chamada de "câncer gay". O pânico moral generalizado desse período passou, mas suas consequências podem ser sentidas até hoje, especialmente quando se discute as condições que levam uma pessoa a ser infectada.
“Temos que levar em consideração que o sexo, o principal vetor de infecção do HIV, é um tema que é permanentemente tabu. Por mais que a nossa sociedade tenha avançado e se fale muito do assunto, isso não significa necessariamente que se fale bem. Existem muitos componentes afetivos, culturais e históricos que se entrelaçam”, pontua o psicólogo Maycon Torres, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em entrevista para a Veja.
Até hoje no Brasil, em torno de 60% da população não usa preservativos nas relações sexuais, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2023. Mais de 80% das mulheres soropositivas foram infectadas por seus maridos. Apesar disso, a sorofobia ainda afeta majoritariamente a população LGBTI+ do país. Desde a primeira grande crise relacionada à aids, nos anos 80, a LGBTIfobia foi usada como arma pela bancada evangélica para associar as infecções à parcela LGBTI+ da população, que também passou anos atacando a campanha de uso da camisinha como método de prevenção. O que essas campanhas propositalmente escondem é a consciência sobre questões relacionadas ao HIV entre grande parcela das pessoas LGBTI+. Citando diretamente James Cimino em sua matéria para o Intercept Brasil:
"Desde 2001 mantenho minha carga viral indetectável e um nível alto de células CD4, que protegem nosso organismo contra infecções, tomando diariamente, sem nunca falhar, minhas pílulas. Faço também uma bateria de exames de sangue trimestral para investigar meus níveis de colesterol, se desenvolvi diabetes ou se me contaminei com alguma IST. Devido a esse constante monitoramento é que muitos médicos dizem que é muito mais seguro transar com um soropositivo em tratamento do que com alguém que diz ser negativo."
Um estudo da PUCRS em parceria com a Unaids mostrou que 80,7% das pessoas diagnosticadas com HIV têm dificuldade em compartilhar seu diagnóstico. De acordo com o mesmo estudo, 16,6% dos entrevistados já perderam o emprego por conta de seu diagnóstico. Cerca de 8% das 904 mil pessoas diagnosticadas com HIV/Aids em 2023 não fizeram o tratamento necessário para redução da carga viral e 16% das pessoas que começam o tratamento não continua. Desde a falta de apoio familiar até a vergonha em assumir a doença, vários fatores levam milhares de pessoas todos os anos a abandonar o tratamento.
Violências institucionais também são frequentes, como o recente vazamento de informações de mais de 600 pessoas soropositivas em Feira de Santana, na Bahia, ferindo a Lei 14.289/2022, o que, para além de colocar essas pessoas em risco de outros tipos de violência diretamente relacionadas à sorofobia, aconteceu devido à suspensão do passe livre em um ataque direto aos direitos dessas pessoas, além de pessoas com fibromialgia e anemia falciforme, que também tiveram suas informações vazadas nesse caso.
Uma outra forma de violência recorrente gira em torno das regras para doações de sangue no país, que até hoje impõe perguntas extras relacionadas à relações homoafetivas, o que não só potencialmente constrange esse público como contribui para a crise de subabastecimento dos bancos de sangue no Brasil, já que somente 1,4% da população é doadora. Mesmo com projetos que proíbem a discriminação a partir do PL 2.353/2021, ainda existe receio entre coletores de sangue e auxiliares de aceitar doações de pessoas trans que esperaram mais de seis meses após a última injeção hormonal ou de pessoas homoafetivas que fazem uso regular dos preservativos.
Usuários de drogas injetáveis, como o crack, também sofrem com a sorofobia e a falta de acesso à saúde, tendo número de casos de infecção oito vezes maior que o resto da população e compondo parte considerável da porcentagem de pessoas soropositivas que não buscam ou que abandonam o tratamento contra o HIV e outras ISTs. Uma das recomendações da própria Unaids é o alcance à essa parcela da população como medida para combater a transmissão do vírus HIV.
Parte considerável dessa falta de acesso se dá devido à política de guerra às drogas que prevalece no policiamento brasileiro. 80% das prisões relacionadas à porte de drogas são de casos de porte pessoal, e com as condições sub-humanas às quais pessoas privadas de liberdade são tratadas, o acesso à saúde é uma das diversas violações de direitos humanos às quais são constantemente expostos. A descriminalização das drogas, associada a uma política de saúde pública em torno do tratamento do vício é parte essencial na luta contra as ISTs.
Já trabalhadores e trabalhadoras sexuais, que devido à natureza de seu trabalho são considerados grupo de risco à exposição à ISTs, para além de lidar com preconceitos relacionados ao próprio trabalho, especialmente em tempos onde a divulgação de seus serviços se faz sob o jugo de algoritmos de redes sociais, que em diversos casos derrubam quaisquer perfis que supostamente envolvem trabalho sexual ou "conteúdo explícito" a partir de um julgamento automatizado por IA ao mesmo tempo em que permitem anúncios com conteúdo sexual explícito, além de lidar com a precarização, relegados cada vez mais à trabalhos plataformizados, lutam também contra a sorofobia, preconceito que afeta diretamente tanto trabalhadores do sexo soropositivos de conseguir clientes, além de aumentar o risco de sofrer violência até mesmo de soronegativos, que no caso das trabalhadoras sexuais é um agravante para a já proeminente violência de gênero.
"[...] todo mundo, do maior ao menor, sabe o que a gente faz, tem muitos que não gosta da gente, não fala, não encosta perto, acha que vamos roubá-los, dizem que estamos com HIV, doente [...]", conta uma das entrevistadas em estudo publicado na Revista USP sobre o assunto.
Quando se leva em consideração o fato de que para grande parcela da população LGBTI+ mais pobre encontra somente no trabalho sexual uma forma de subsistência, especialmente a população trans, onde o número chega a 90%, a LGBTIfobia é outro agravante grave às violências já sofridas dentro da assim chamada prostituição.
Esses fatores, somados às dificuldades de acesso da população mais pobre à saúde, levam essa parcela da população a ter o dobro de risco de serem vítimas fatais da aids. Programas de assistências como o Bolsa Família ajudam a reduzir esse número, mas com o constante sucateamento da saúde pública brasileira, esse fator sempre alcança um limite claro.
O estrangulamento dos recursos para a saúde, iniciados com o Teto de Gastos do governo Temer e mantidos com o Arcabouço Fiscal do atual governo Lula, garantem o subfinanciamento crônico do SUS e o sucateamento de toda a infraestrutura de saúde pública, que inclui também investimento em pesquisa e desenvolvimento, produção e distribuição nacional de fármacos, garantindo um negócio muito lucrativo para o setor privado da saúde enquanto exclui a população mais pobre. Durante o governo Bolsonaro, em particular, houve um desmonte generalizado das ações de combate ao HIV/Aids, que ameaçou até mesmo acabar com o tratamento gratuito do HIV pelo SUS, cujas consequências podem ser sentidas até hoje.
O uso do preservativo em todas as relações sexuais é o método mais eficaz para evitar a transmissão das ISTs, do HIV/Aids e das hepatites virais B e C. No entanto, é comum, especialmente em regiões de periferia, que em geral recebem menos recursos da saúde, a falta de preservativos em postos de saúde. O número de cidades que possuem centros de atenção especializados ao combate às ISTs, como Centros de Testagem e Aconselhamento e Unidades Dispensadoras de Medicamentos, ainda é pequeno, e muitos dos locais que existem sofrem com o sucateamento, dificultando o acesso para uma parcela significativa da população.
Para além disso, a Lei 9.279/1996, conhecida como Lei de Patentes, é um dos maiores empecilhos do avanço dessa luta no Brasil, rendendo o país a seguir as patentes de medicamentos estrangeiros essenciais em diversas áreas, vendidos a preços ridiculamente altos. A maioria esmagadora dos brasileiros que já teve contato e já economizou comprando o famoso "genérico" na farmácia sabe o quanto os mesmos são essenciais para se ter acesso ao tratamento de diversas doenças, especialmente para a parcela mais pobre da população.
Já existem precedentes da quebra da lei até mesmo quando se trata diretamente do tratamento do HIV/Aids. Em 2007, o Efivarenz, antirretroviral que compõe o famoso "coquetel" que é parte essencial do tratamento contra o HIV/Aids, teve sua patente quebrada, no início do segundo governo Lula. A licença compulsória do medicamento levou a uma queda imediata de mais de 70% no custo do medicamento, o que contribuiu ativamente para a redução dos casos de aids e no aumento da qualidade de vida de pessoas soropositivas. Já em 2012, após 11 anos de luta na justiça, o medicamento Lopinavir/Ritonavir, vendido sob o nome Kaletra, também teve sua patente quebrada, reduzindo seu custo pela metade.
Já nos dias de hoje, o mesmo governo Lula se acovarda diante do lobby do setor farmacêutico. Um dos principais exemplos sendo, apesar da campanha de mobilização de diversos grupos, como a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, a recusa do governo de quebrar da patente do Lenacapavir, antirretroviral de última geração usado no controle do HIV, que pode custar 220 mil reais por paciente ao ano no Brasil devido ao monopólio da farmacêutica estadunidense Gilead. A empresa chegou a usar países da América Latina e da África como regiões de teste para o medicamento, mas vende o mesmo a preços astronômicos nas mesmas regiões, agora que o produto foi lançado no mercado.
A suspensão das patentes de medicamentos é o que garante que a Índia hoje seja hoje a maior potência do setor farmacêutico no mundo, ganhando o apelido de "farmácia do Terceiro Mundo", produzindo genéricos consumidos em todo o mundo e sendo vanguarda na luta contra o monopólio da Big Pharma, conglomerado das maiores empresas privadas do ramo. O Brasil não só pode como deve seguir seus passos se quiser que a sua população tenha acesso a uma saúde pública gratuita e de qualidade em todo o país.
O Dezembro Vermelho é uma campanha essencial na conscientização da população e na luta contra os preconceitos que envolvem o debate em torno da soropositividade, mas enquanto o mesmo não for acompanhado de um conteúdo de debate em torno da soberania nacional e do desenvolvimento do SUS enquanto ferramenta de acesso amplo à saúde para toda a população, o mesmo sempre será insuficiente. Conscientizar a população por si só não basta, em tempos de neoliberalismo desenfreado a luta contra as ISTs é também uma luta pelo orçamento da saúde pública e pela valorização real do SUS enquanto ferramenta para garantir que o acesso ao tratamento seja de fato para todos.