Bauer Express dá golpe na praça, humilha trabalhadores e deixa centenas no prejuízo
O caso Bauer escancara a falência de um modelo que permite a exploração dos trabalhadores por dentro e por fora da lei. Mais do que uma crise financeira, o que se viu foi um colapso moral e organizacional.

Reprodução/Foto: Diarinho.
Por Pablo Mucelini (editor da Chapecó Crítica, para o jornal O Futuro)
O Grupo Bauer, até pouco tempo anunciado como um dos maiores nomes da logística nacional, com presença em mais de 1.200 municípios da região Sul e São Paulo, vive hoje uma crise sem precedentes. Após denúncias de ampla repercussão vieram à tona graves irregularidades: pagar salário atrasado era regra há anos, até 30 dias depois do quinto dia útil. Assédio moral era diário, inclusive perseguição a quem reclamava do salário atrasado. Receber FGTS só com processo judicial, além de atrasos em vale alimentação, férias e até vale transporte. Centenas de trabalhadores e parceiros não pagos exigem resposta da empresa na justiça e nas redes sociais.
O que mais revoltou os funcionários é que não foi uma simples dificuldade financeira da empresa, mas sim um golpe, deliberadamente planejado. Ao longo dos últimos 6 anos, enquanto atrasava os benefícios dos funcionários e acumulava dívidas com parceiros e com o Estado, a Bauer Express crescia rapidamente. A empresa fez uma megaexpansão, abrindo novas lojas, renovando frotas, fazendo propagandas em jornais como o G1, anunciando investimentos e pretensões de dominar o mercado de logística no sul do Brasil. O crescimento da Bauer era financiado pelos valores desviados dos funcionários e parceiros.
E junto ao golpe financeiro veio a repressão moral, forma encontrada pela empresa para controlar a insatisfação que os atrasos geravam. Em Chapecó, onde fica a matriz da empresa, um episódio em fevereiro de 2024 deixa explícita a postura dos burgueses donos da Bauer. Mesmo com salários atrasados, trabalhadores foram incentivados a cantar “Tempo de Alegria”, de Ivete Sangalo, enquanto o setor de Recursos Humanos dançava pelos corredores. “Foi humilhante”, relatou Maria*, funcionária demitida há alguns meses. “Lembro até hoje da minha gestora me pedindo pra levantar e cantar. Foi visto pelos funcionários como um deboche da direção.”
A perseguição aos funcionários que reclamam foi implacável, tanto antes quanto depois das denúncias. Em julho de 2024, diante dos constantes atrasos salariais, Mônica* decidiu manifestar sua indignação de forma anônima no “Mural de Ideias” da empresa, colando post-its que cobravam o pagamento em dia.

Foto do “Mural de Ideias” onde post-its cobram pagamento de salário e direitos trabalhistas.
A resposta da gestão da Bauer em Chapecó, no entanto, não foi resolver o problema denunciado, nem se quer ficar envergonhada, mas sim iniciar uma verdadeira inquisição: vasculharam imagens das câmeras de segurança e chegaram a interrogar funcionários, numa tentativa autoritária de identificar quem ousou cobrar seus direitos no mural.
Em outro episódio, Marcos* reclamou do salário atrasado, comentando com um supervisor que tinha urgência de receber para pagar suas contas. Em menos de 20 minutos Marcos foi chamado ao RH e demitido, pois a empresa entendeu que ele não estava “comprometido” com o trabalho.
O 10 de maio e a interrupção de um ciclo de exploração
Na manhã do dia 10 de maio, após articulação entre os próprios funcionários e também de muitos com a Chapecó Crítica, jornal comunista chapecoense no Instagram que vinha fazendo as denúncias e incentivando a greve como ferramenta de enfrentamento, houve paralisações simultâneas em dezenas de unidades da empresa. O movimento teve forte caráter espontâneo: os funcionários, agora sabendo e vendo o tamanho do esquema da empresa, simplesmente não aguentaram mais e pararam.
Vendo o movimento que se formava abertamente nos espaços de trabalho e nos grupos de whatsapp, a resposta da empresa foi conceder folga coletiva a partir daquele sábado, prometendo regularizar os pagamentos e retomar as atividades na semana seguinte. Na semana seguinte, a data da “retomada” foi adiada para a semana seguinte, e o mesmo discurso foi sendo repetido em diferentes datas, sempre com novas promessas de retomada das operações, mas nenhuma se cumpriu até agora. Enquanto isso, muitos trabalhadores foram demitidos, unidades inteiras fecharam, unidades em prédios alugados sofreram despejo judicial, entregadores pejotizados foram abandonados com meses de pagamentos em atraso, e a maioria dos funcionários seguem abandonados até hoje, sem baixa na carteira e sem pagamento do salário de abril, além de diversas outras verbas em atraso. A maioria dos que saíram nos últimos meses também não receberam as verbas rescisórias.
A primeira matéria jornalística expondo os abusos da Bauer foi ao ar em 20 de fevereiro, num trabalho da Chapecó Crítica em parceria com uma mídia progressista de Santa Catarina, o Portal Desacato. Embora tenha tido pouca repercussão, gerou uma “crise” na empresa, com o dono montando uma reunião de emergência na matriz para tratar dos “ataques sofridos”.
Até então não era sabido amplamente nem mesmo entre os trabalhadores que os atrasos se repetiam em todo o país, com muitos acreditando na mentira da empresa de que eram problemas localizados ou temporários. A estrutura pulverizada da empresa, com mais de 100 unidades e representações sindicais fragmentadas, dificultou qualquer articulação conjunta. Também nunca se ouviu falar em nenhum esforço das centrais sindicais para cobrar a empresa a nível regional ou nacional.
A partir da denúncia inicial, os funcionários foram sabendo, conversando cada vez mais abertamente sobre o golpe da empresa, além de mandarem mais e mais denúncias para a Chapecó Crítica. Cerca de 300 denúncias foram encaminhadas ao jornal ao longo dos últimos 3 meses, resultando em mais 11 publicações da Chapecó Crítica sobre o tema. As denúncias feitas em vídeos, mostrando a indignação dos funcionários, tiveram grande repercussão, atingindo mais de 3 milhões de pessoas em mais de 4,5 milhões de visualizações. Tornou-se sabido entre o setor de logística da região sul que a Bauer estava dando o golpe.
Incapaz de sustentar o modelo baseado em calotes, rotatividade e precarização, a Bauer foi forçada a parar o esquema. Os pedidos de demissão por rescisão indireta, quando o empregado dá justa causa ao patrão, explodiram, afetando o funcionamento da empresa. A empresa chegou a oferecer até 60% a mais no valor pago aos entregadores pejotizados, mas não conseguiram continuar os contratos. Os galpões da empresa, muitos alugados, começaram a esvaziar, trabalhadores lesados levaram mercadorias para casa, grandes clientes da empresa encerraram negócios, o controle operacional se perdeu, e a Bauer Express entrou em colapso.
Diante desse cenário, o dono da empresa acusou a Chapecó Crítica de ser “irresponsável” e orientou os funcionários a não compartilharem os conteúdos das denúncias. Em mensagens internas, afirmou que a visibilidade das irregularidades da empresa prejudicava a recuperação, e pediu, em tom quase de súplica, que os trabalhadores o ajudassem a esconder os abusos que a empresa cometia contra eles. O empresário tentou transformar os explorados em cúmplices. Além de explorar, pediu silêncio.
Grupo familiar, empresas distintas apenas no papel
A Bauer Express não opera isoladamente. Após crescerem por décadas como um mesmo grupo empresarial, a família Bauer dividiu suas empresas em diferentes CNPJs: Bauer Express, que ficou com as dívidas, e a Bauer Turismo e a Bauer Postos. No entanto, na prática, as empresas sempre funcionaram de forma integrada. Isso é senso comum entre os funcionários. Os panfletos e materiais publicitários, onde os serviços prestados por cada ramo são apresentados como um conjunto, “os nossos produtos”: produtos da família Bauer.
Essa divisão estratégica na lei visava, entre outras coisas, proteger o capital da família de riscos trabalhistas e também fiscais, pois a empresa também acumula uma dívida de milhões com o Estado. Na medida em que a Bauer Express afunda, os outros braços do grupo seguem formalmente intocados, apesar de estarem interligados por estrutura, comando e fluxo financeiro.
Estado é conivente
O Ministério do Trabalho reconhece que atrasos salariais superiores ao quinto dia útil são passíveis de multa. Contudo, os valores aplicados (R$ 167 por trabalhador) são baixos e frequentemente ignorados. O não pagamento do FGTS também é passível de cobrança judicial, mas, na prática, os processos se arrastam por anos. Mesmo com denúncias aos montes, Ministério Público e Ministério Público do Trabalho pouco ou nada fizeram. A resposta institucional é frágil diante das facilidades da empresa em contornar as obrigações legais.
Sindicatos atuantes foram a exceção. O dos rodoviários de Maringá, associado a CUT, se destacou, com paralisações organizadas e pressão direta sobre a unidade da empresa na cidade, que resultaram no pagamento imediato de verbas. O presidente Emerson Silva também gravou e divulgou nas redes sociais trechos de conversa dele com o dono da empresa, expondo os absurdos colocados pelo burguês. Seu enfrentamento teve a divulgação potencializada pela Chapecó Crítica, com forte repercussão.
Porém, a maioria dos sindicatos, espalhados pelas diversas localidades da Bauer, manteve-se omissa, incapaz ou desinteressada em proteger os trabalhadores.
E agora?
Agora centenas de funcionários e parceiros lesados pela Bauer Express passarão anos em disputa judicial com a empresa, enquanto o judiciário burguês fingirá buscar alguma “justiça”. A expectativa de recuperar os prejuízos é baixa. A falta de organização dos funcionários, a crise generalizada do sindicalismo, e a insuficiência dos movimentos classistas em informar e mobilizar a categoria foram decisivas para que a Bauer Express e a família burguesa que a controla pudessem agir impunemente, mesmo às margens das próprias regras do sistema capitalista.
O caso Bauer escancara a falência de um modelo que permite a exploração dos trabalhadores por dentro e por fora da lei. Mais do que uma crise financeira, o que se viu foi um colapso moral e organizacional. A reação da empresa de tentar silenciar os trabalhadores e culpar os que denunciaram mostra que nunca houve intenção de mudar o rumo, apenas de prolongar o golpe.
A divulgação da Chapecó Crítica e a adesão dos funcionários ao movimento de paralisação não quebrou a Bauer. A Bauer quebrou porque seus donos assim desejaram, porque assim consideraram mais lucrativo. O que a Chapecó Crítica e os funcionários revoltados fizeram foi a interrupção de uma estratégia que, se mantida em silêncio, continuaria explorando trabalhadores indefinidamente. As denúncias revelaram o esquema e forçaram a empresa a parar antes que o rombo fosse ainda maior.