Confronto na fronteira reacende tensão histórica entre Camboja e Tailândia
O episódio, reacendendo os confrontos de julho deste ano, violaram o frágil cessar fogo mediado por Malásia e Estados Unidos, jogando os dois países do sudeste asiático de volta ao histórico familiar de violência e acusações mútuas.

Uma mulher e uma criança em um campo de refugiados após evacuação, em Srei Snam, província de Siem Reap, Camboja, em 10 de dezembro de 2025. Reprodução/Foto: Al Jazeera.
Por Guilherme Sá
No último dia 8 de dezembro, a fronteira entre Tailândia e Camboja foi palco de uma escalada violenta do conflito entre os dois países, deixando um soldado tailandês e quatro civis cambojanos mortos. O episódio, reacendendo os confrontos de julho deste ano, violaram o frágil cessar fogo mediado por Malásia e Estados Unidos, jogando os dois países do sudeste asiático de volta ao histórico familiar de violência e acusações mútuas.
As narrativas dos dois exércitos seguem colidindo. O porta-voz militar tailandês, major-general Winthai Suvaree, afirmou que as aeronaves foram empregadas para "suprimir" ataques cambojanos, enquanto o Exército Real do Camboja, em comunicado no Facebook, acusou as forças tailandesas de terem atacado primeiro e garantiu que suas tropas "não retaliaram".
Os confrontos, principalmente nas províncias de Preah Vihear e Oddar Meanchey, deixaram desde julho diversos feridos, especialmente pela presença de minas terrestres que, segundo o governo cambojano, são resquícios de conflitos anteriores, fato contestado pelas autoridades tailandesas.
Este é o mais recente capítulo de uma disputa territorial que se arrasta por mais de um século, desde que a fronteira de 817 km foi traçada em 1907 pelos colonialistas franceses, que ao longo dos anos persuadiu e aniquilou militarmente as populações nativas da região. A compreensão da intensidade e persistência do conflito, todavia, passa pela própria formação política da Tailândia, um Estado cuja identidade moderna foi forjada e mantida, em grande parte, pelos militares em conluio com o imperialismo norte-americano.
O golpe de 1932 que pôs fim à monarquia absoluta no então Sião rapidamente viu a facção militar, liderada pelo marechal Luang Phibunsongkhram (Phibun), eclipsar o projeto civil de Pridi Banomyong. Phibun rebatizou o país como Tailândia, inaugurando um nacionalismo expansionista que visava recuperar territórios perdidos no Camboja e Laos, a partir da presença francesa na região.
Durante a Guerra Fria, esta tendência se fundiu com o anticomunismo. Após breves interlúdios civis, golpes militares em 1947 e 1957 consolidaram um regime que transformou a Tailândia no principal aliado dos EUA na região e um país marcado pela indústria da prostituição e do consumo de drogas envolvendo os soldados que lutavam no Vietnã. Bases tailandesas foram essenciais para os bombardeios norte-americanos no país vizinho, e regimes militares sucessivos, como os dos marechais Sarit Thanarat e Thanom Kittikachorn, justificaram o poder interno e o autoritarismo com a lógica da "defesa contra o comunismo".
Essa herança de militarização e nacionalismo de Estado nunca foi superada. Mesmo com o crescimento econômico e os protestos por democracia, o exército permaneceu como o árbitro final do poder. O ciclo de governos civis eleitos (como os de Thaksin e Yingluck Shinawatra) e golpes militares (2006 e 2014) mostra uma estabilidade na instabilidade, com as Forças Armadas tailandesas atuando como uma instituição política com interesses próprios, orçamentos vultosos e uma visão de segurança nacional que frequentemente colide com a diplomacia.
É neste contexto que a disputa pela área dos templos de Preah Vihear, concedida ao Camboja pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) em 1962, ganha camadas perigosas. Para os generais em Bangkok, a fronteira não é apenas uma linha num mapa colonial, mas uma questão de soberania e honra nacional, conceitos historicamente usados para legitimar seu papel político e unificar a população. Por outro lado, o Camboja, com suas próprias elites fortalecidas, vê a defesa do território como inegociável.

O Templo de Preah Vihear, dedicado ao deus Shiva, foi construído entre os séculos IX e XII d.C. pelo Império Khmer. O templo está localizado no topo de um penhasco a 525 metros de altitude, na cordilheira Dângrêk, fronteira natural com a Tailândia. Reprodução/Foto: Wikimedia Commons.
Em 2008, após a UNESCO reconhecer as estruturas dos templos como Patrimônio Mundial da Humanidade no Camboja, enquanto obra-prima da arquitetura Khmer (império milenar que ocupou áreas onde hoje são Camboja e Tailândia), após um pedido unilateral efetuado pelo país, protestos por parte de nacionalistas e setores pró-monarquistas da Tailândia deram início a uma série de escaramuças nas fronteiras.
Em maio deste ano, operações de engenheiros tailandeses na fronteira, buscando reverter a ocupação cambojana próxima ao templo de Preah Vihear, levaram a troca de tiros e a morte de um soldado cambojano. O que se seguiu foi o escalonamento do conflito, chegando a utilização de armas pesadas como morteiros e obuseiros e ataques aéreos de caças F-16 contra alvos militares por parte da Tailândia, causando a morte de soldados e civis e o deslocamento de mais de 130 mil pessoas no Camboja.
Como consequência dos conflitos, a primeira-ministra tailandesa Paetongtarn Shinawatra foi destituída do cargo pela Comissão de Justiça do país, após conversas entre ela e o ex-premiê cambojano Hun Sen vazarem, revelando um tom amistoso entre ambos e críticas aos militares tailandeses, que foi julgado pelos grupos políticos conservadores e pró-monarquistas da Tailândia como um ato de submissão.
Há anos, a Tailândia vivencia um processo conturbado de disputa entre a família Shinawatra, que foi alvo de golpes militares no passado, em especial o de 2014, e uma direita conservadora e aliada dos militares, que construiu um legado de poder desde a ascensão de Phibun, no século passado.

A ex-primeira-ministra eleita Paetongtarn Shinawatra com seu pai, o ex-primeiro-ministro Thaksin Shinawatra na sede do partido Pheu Thai, antes de uma cerimônia de endosso real em Bangkok, em 18 de agosto de 2024. Reprodução/Foto: Al Jazeera.
Com Paetongtarn representando os chamados thaksinitas, movimento ligado a seu pai, Thaksin Shinawatra, que defendia, de forma oportunista, reformas moderadas, sua figura foi aceita numa coalizão de direita para evitar a vitória dos progressistas nas eleições de 2024, ocorridas após Pita Limjaroenrat, do Movimento Move Forward, ser impedido de assumir o cargo de primeiro-ministro, mesmo tendo sido vencedor das eleições legislativas de 2023, passando por um amplo processo de perseguição judicial e obstrução parlamentar.
Propondo reformas na monarquia, além do fim do alistamento obrigatório e a legalização do casamento homoafetivo, o Move Forward foi cassado pelos organismos eleitorais do país, fazendo com que seus representantes se reorganizassem no Partido Popular (Phak Prachachon), de orientação progressista. Em setembro deste ano, no entanto, o partido apoiou a destituição de Paetongtarn e a eleição de Anutin Charnvirakul, magnata do setor da construção e costumaz representante dos interesses da burguesia tailandesa.
No Camboja, o governo do primeiro-ministro Hun Manet, do Partido Popular do Camboja (CPP), adota uma postura de defesa irrestrita da soberania cambojana sobre as regiões em disputa, alegando que o início das hostilidades sempre partiu das forças tailandesas. Abandonando a ideologia marxista ainda nos anos 1990, o CPP sofreu uma guinada ideológica, transformando-se num partido conservador e nacionalista, que buscou ao longo dos anos perseguir a oposição e seguir beneficiando o capital privado no país.
Segundo os militares cambojanos, estes seguem respeitando “o espírito de todos os acordos anteriores”, alegando que “o Camboja não retaliou durante os dois ataques e continua monitorando a situação com vigilância e extrema cautela”.

Donald Trump aperta a mão do Primeiro-Ministro tailandês, Anutin Charnvirakul, enquanto o Primeiro-Ministro cambojano, Hun Manet, observa durante uma cerimônia de assinatura de cessar-fogo à margem da cúpula da ASEAN em Kuala Lumpur, Malásia, em outubro de 2025. Reprodução/Foto: Al Jazeera.
Nesta sexta (12), com intermediação do presidente Donald Trump, os países concordaram, segundo o presidente estadunidense, em dar fim às hostilidades e renovar o acordo de cessar-fogo firmado em outubro. Na Tailândia, paralelamente, o primeiro-ministro Anutin Charnvirakul anunciou a dissolução do parlamento e a convocação de novas eleições, ponto que já estava previsto em sua eleição interina.
Usado como escada para Trump reivindicar a imagem de “pacificador”, assim como os acordos firmados em Gaza, o conflito entre Camboja e Tailândia mostra-se longe do fim. Resultado da imposição das fronteiras do período colonial, imbuídas de diferentes dissensos construídos ao longo dos anos, ele é mais uma consequência da série de crises políticas geradas por uma região do globo que possui uma máscara de prosperidade e estabilidade no capitalismo.
Vivendo períodos de crescimento econômico, a Tailândia enfrenta crises econômicas contínuas, alinhadas ao poder autoritário dos militares, enquanto o Camboja, tendo como principal aliado o governo chinês e seus investimentos, continua a impor um regime contraditório. Em ambos os lados, a burguesia segue lucrando à frente do Estado, com empresários participando ativamente da vida política dos países, deixando pouco espaço para a luta da classe trabalhadora florescer.
Com mais de meio milhão de deslocados somando ambos os lados, a tendência é que cada vez mais o ônus do conflito pese sobre a população, imersa em regimes que possuem o alistamento obrigatório em suas forças armadas, enfrentando desastres naturais recorrentes com pouco ou nenhum recurso e sem uma arma efetiva para lutar por sua liberdade.