Ministério do Trabalho protege empresas flagradas em fiscalização contra o trabalho escravo

Em decisão sem precedentes, ministro Luiz Marinho avoca processos e barra entrada de grandes grupos empresariais na "Lista Suja" do trabalho escravo, gerando crise institucional e protestos de fiscais e entidades.

16 de Dezembro de 2025 às 15h00

Grupo Móvel do MTE resgata 14 trabalhadores em colheita de café em MG. Reprodução/Foto: Gov.br.

Por Alessandro Lima

A Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Anafitra) moveu uma ofensiva jurídica de peso contra a interferência do Ministério do Trabalho em um dos casos mais emblemáticos de exploração laboral do ano. O alvo da ação é o próprio instrumento legal que permitiu ao ministro Luiz Marinho "avocar" — assumir para si — o processo administrativo contra a Seara/JBS Aves, gigante do grupo JBS.  O caso foi um movimento inédito dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e afetou a credibilidade do combate ao trabalho escravo no Brasil.

O processo busca declarar inconstitucional o Artigo 638 da CLT, de 1943, que permite ao ministro "avocar" processos. A entidade sustenta que a norma, anacrônica, transformou-se em instrumento para politizar a fiscalização, subordinar a técnica a interesses corporativos e violar direitos fundamentais dos trabalhadores, beneficiando grandes empresas autuadas por violações graves. A ação é uma tentativa de blindar definitivamente o combate ao trabalho escravo contra ingerências.

A JBS Aves havia sido autuada em maio por submeter trabalhadores de uma granja no Rio Grande do Sul a condições análogas à escravidão, com relatos de jornadas de até 16 horas, alojamentos precários, alimentação inadequada e endividamento ilegal por custos de transporte e comida. A terceirização, via empresa contratada, tentava ocultar a responsabilidade da holding do setor de carnes. Em vez de seguir o rito administrativo técnico, que culminaria na inclusão da empresa no Cadastro de Empregadores Responsabilizados por Exploração de Trabalho em Condições Análogas às de Escravo, a chamada “Lista Suja”, o caso foi paralisado pela decisão pessoal do ministro.

A intervenção do ministro, portanto, barrou a inclusão da JBS e cancelou outros autos de infração recentes, marcando uma virada perigosa. A "avocação" mina a autonomia da fiscalização e estabelece um precedente de tratamento diferenciado para empresas de grande porte e poder econômico. "Isso equivale a anistiar quem explora seres humanos", acusa um auditor-fiscal que pediu anonimato por temer retaliações.

A decisão do ministro Luiz Marinho não gerou apenas tensão política, mas desencadeou uma crise operacional direta no Ministério do Trabalho. Em protesto contra o que classificam como subordinação da técnica ao interesse político, auditores-fiscais do trabalho começaram a deixar cargos de coordenação e funções estratégicas na área de fiscalização.

Esses servidores, com anos de experiência no combate ao trabalho escravo, são os responsáveis pelo planejamento e execução das operações de resgate. Sua retirada de postos-chave desorganiza a cadeia de comando, paralisa investigações em andamento e esvazia o conhecimento tácito necessário para identificar as formas mais dissimuladas de exploração. Segundo fontes internas, o clima é de desmoralização, com receio de que novas intervenções passem a determinar quais flagrantes "prosseguem" e quais são "reconsiderados", transformando o órgão de controle em uma repartição de despachos políticos.

Procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), parceiro histórico nas ações de combate ao trabalho escravo, já manifestaram preocupação formal com o precedente da "avocação". Eles alertam que a medida institucionaliza a impunidade seletiva: grandes grupos econômicos, com poder de influência, passam a ter um caminho para anular autuações, enquanto intermediários ou empresas menores continuam sofrendo as penalidades.

O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT) ressalta que a politização da fiscalização destrói o principal pilar do combate à escravidão contemporânea: a independência técnica para aplicar a lei de forma isonômica. Sem essa blindagem, o mecanismo deixa de ser uma ferramenta de Estado para se tornar um instrumento volátil, cuja efetividade passa a depender de conveniências do governo de plantão, minando décadas de construção institucional e enfraquecendo gravemente a proteção aos trabalhadores mais vulneráveis.

O Sindipetro-RJ agregou junto à Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho (ANAFITRA) a ação no STF sobre o caso. Somam-se em apoio a CSP-Conlutas e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Para sindicatos e organizações de direitos humanos, a manobra sinaliza um retrocesso histórico. O risco agora é que o Brasil, antes exemplo internacional no enfrentamento ao trabalho escravo, veja a prática se reacender sob a conivência do Estado. Enquanto o ministério não recuar, a mobilização das ruas e das entidades deve crescer em defesa da autonomia dos fiscais e dos trabalhadores e trabalhadoras do país.