Aposenta-se do STF, Luís Roberto Barroso, um inimigo dos trabalhadores
Com histórico lavajatista e punitivista, e representante fiel dos interesses das elites do país, Barroso soube reposicionar sua imagem durante os anos, conquistando a simpatia dos setores social-liberais e governistas.

Barroso no 59º Congresso da União Nacional dos Estudantes, 12 jul. 2023. Reprodução/Foto: Yuri Salvador / UNE.
Com a aposentadoria do ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF), se encerra um ciclo de mais de uma década de atuação marcada por um perfil liberal e um recente progressismo difuso e distanciado das pautas populares. Desde 2013 na Corte, Barroso destacou-se por decisões que buscaram alinhar o Supremo ainda mais aos interesses de elites econômicas e políticas do país, com delimitações pontuais que o separaram dos setores reacionários mais escandalosos após a eleição de Jair Bolsonaro em 2022.
Segundo o último levantamento do Anuário da Justiça, em 2022, o ministro Barroso em matéria criminal, adotou postura marcada por um punitivismo legalista, menos garantista que Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Pontualmente, acompanhou a maioria da Corte em decisões progressistas emblemáticas, como no julgamento do RE 1.144.736 (Tema 1.049 da repercussão geral), em que o Supremo reconheceu, por 8 votos a 1, que a injúria racial configura espécie de racismo e, portanto, é crime imprescritível.
Foi, entretanto, dentro do STF, o principal representante do projeto político-ideológico da Lava Jato. O ministro atualizou o ‘faorismo judicial’ da Lava Jato, defendendo em sua prática que o STF, embora não eleito, representaria melhor o ‘interesse público’ do que o próprio voto popular.
Tal interpretação equivocada do Brasil, lançada por Raymundo Faoro no final dos anos 1950 em seu livro Os donos do poder, traz como tese que a corrupção seria a chave que explicaria o fracasso político do país. Essa concepção autoritária, ao penetrar a Corte Suprema, reforçou por muito tempo o papel do Judiciário como poder político independente da soberania popular.
Com efeito, a decisão do STF de 22 de abril de 2021, que declarou a suspeição de Moro no caso do tríplex, simbolizou não apenas o fim da Lava Jato, mas também uma derrota da concepção judicial de Barroso, que via na operação um instrumento de moralização acima das regras democráticas.
Barroso, após isso, foi aguerrido entusiasta do chamado “pacote anticrime”, de autoria de Sérgio Moro durante o governo Bolsonaro, que ampliava poderes policiais e endurecia penas – medidas que, na prática, aprofundam o encarceramento da juventude negra e pobre. No lançamento de um livro sobre a Lava Jato, do qual redigiu o prefácio, Barroso chegou a elogiar a proposta afirmando ser “importante e prioritária”, e associou a confissão de culpa à salvação espiritual, em tom moralista e punitivista. Em seu prefácio, o ministro escreve:
“Este livro [...] congrega personalidades emblemáticas [Sérgio Moro e Deltan Dallagnol] que lutaram o bom combate e não perderam a fé. Gente que foi capaz de inspirar e mobilizar a cidadania para o advento de um novo tempo. E, de fato, penso que podemos estar vivendo um recomeço, alicerçado sobre outras bases, tanto na ética pública como na esfera privada. Minha crença num momento de refundação do país não guarda relação com as recentes eleições ou este ou aquele governo - é independente de ideologias. Baseia-se, ao contrário, nas mudanças ocorridas na sociedade civil, que deixou de aceitar o inaceitável e desenvolveu uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. E essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história. Assim seja.”
Já em matéria trabalhista, integrou a franja do Tribunal mais favorável ao empresariado, ao lado de Fux e Gilmar, em contraste com Rosa Weber e Marco Aurélio Mello, ambos com 75% de votos pró-empregado.

Foto de representantes dos três poderes em Brasília. Em destaque, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e os ministros do STF, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a ex-presidente do tribunal, Rosa Weber. Reprodução/Foto: Jefferson Rudy / Agência Senado.
Carta marcada nos jantares promovidos pela burguesia brasileira, Barroso foi criticado por setores populares após ser filmado cantando ‘Garota de Ipanema’ com o CEO do Ifood, Diego Barreto, no evento de 22 de maio de 2025, cujo anfitrião foi a empresa de delivery, em São Paulo. O evento tinha como motivação uma parceria entre a empresa e uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), presidido pelo próprio Barroso à época.
A aproximação ocorre em um momento em que era incerto o destino da relação de trabalho, e como as empresas de entrega por aplicativo seriam responsabilizadas pelos encargos trabalhistas de seus entregadores, tratados pela lei brasileira como ‘colaboradores’ dessas corporações. O Ifood era parte interessada em ação que corre no STF, em sede de repercussão geral, que discute precisamente o vínculo empregatício entre as plataformas de delivery e os empregadores, de relator o ministro Edson Fachin.
Ainda, em declarações feitas por Barroso durante o Fórum Esfera Internacional, na França, em 2023, o ministro afirmou que existe no Brasil um “preconceito contra o empreendedorismo” e uma “indústria de reclamações trabalhistas”.
O evento foi patrocinado por uma série de empresas, incluindo a JBS. Os ministros Barroso e Dias Toffoli, que marcam presença em alguns destes eventos, são relatores de diversas ações no interesse da empresa.
Barroso disse ainda que seria necessário “equacionar a imensa litigiosidade trabalhista”, sugerindo a criação de restrições ao acesso à Justiça do Trabalho, diante do número de ações em curso – “mais de 5 milhões”, segundo o próprio ministro. “Às vezes porque empresários se comportam mal, às vezes porque existe uma indústria trabalhista”, declarou.
As falas foram criticadas por entidades sindicais, juristas e movimentos sociais, como um ataque direto aos direitos dos trabalhadores, em constante ataque desde que foi promulgada a Constituição de 1988. Para o ministro, os trabalhadores reclamantes seriam responsáveis pela sobrecarga do sistema judiciário.
Barroso foi, sem dúvidas, um dos ministros mais alinhados à flexibilização de direitos trabalhistas dentro do Supremo. Ele votou, por exemplo, a favor da terceirização irrestrita (como nas ADPFs 324 e RE 958252), permitindo que empresas terceirizassem todas as suas atividades, reduzindo salários e direitos, um ataque que atinge especialmente mulheres e trabalhadores negros e, em diversas ocasiões, defendeu a constitucionalidade de dispositivos da Reforma Trabalhista de 2017, como a mudança que tornou facultativa a contribuição sindical, ataque frontal à continuidade das atividades dos sindicatos de trabalhadores Brasil afora. Sobre a reforma, declarou:
“Acho que fizemos muito bem. Depois da validação da reforma, creio que não por acaso temos hoje o menor índice de desemprego no país nos últimos 40 anos [...] Aquela ideia do trabalhador celetista, metalúrgico, empregado, que cumpre oito horas regularmente, já não é mais, talvez, a dominante no mercado de trabalho hoje”
Em 2022, Barroso determinou a suspensão do piso salarial da enfermagem, e em 2025, vinculou a aplicação do piso à jornada de 40 horas, estendeu aplicação ao setor privado e condicionou parte da implementação a negociação coletiva quando não houver acordo. Também ratificou decisão parcial que excluiu da aplicação imediata dispositivo que privilegiava “acordos, contratos e convenções coletivas” quando conflitantes com o piso estatal.
Em dezembro de 2023, o STF decidiu, por maioria de votos, pela implementação do piso da enfermagem para os profissionais celetistas de forma regionalizada, o que significa dizer que deixará para que sejam realizados por meio de negociação coletiva, ou seja, que prevaleça aquilo que foi negociado em detrimento do que é legislado. A lei fixou o piso da enfermagem em R$ 4.750 para enfermeiros e percentuais de 70% e 50% da quantia para técnicos e auxiliares de enfermagem, respectivamente.
Nos temas econômicos e institucionais, Barroso se destacou por posições pautadas na ‘responsabilidade fiscal’ e na agenda neoliberal. Foi vencedor na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.696, que discutiu a autonomia do Banco Central conferida pela Lei Complementar nº 179/2021. Divergindo do relator Ricardo Lewandowski, Barroso entendeu não haver vício de iniciativa, sustentando que a norma não cria novos órgãos nem cargos públicos. Para ele, “a autonomia operacional do Banco Central fortalece a responsabilidade fiscal e a previsibilidade econômica”, sendo uma medida “sem ideologia”.
Entretanto, a medida é totalmente alinhada à ideologia liberal e aos interesses das elites financeiras. A autonomia determinada ao Banco Central o mantém cumprindo um garantidor permanente de taxas de lucro infladas para os setores rentistas. Também o interdita de intervir no câmbio, a partir de uma ideologia de câmbio flutuante, instrumentalizando-o completamente para atender aos interesses imediatos e estratégicos da burguesia interna e do capital estrangeiro; revestindo-se, entretanto, das vestes de decisões técnicas, neutras e de combate à inflação e à desconfiança dos investidores.
Muitas vezes autodeclarado um ‘humanista’, Barroso deixou claro em diversas ocasiões que detém uma concepção tecnocrática do Estado, e que a sua “democracia” se restringe ao funcionamento regular das instituições, apesar dos interesses das classes trabalhadoras e pobres. Ao intervir na política em nome da moralidade, seu ‘faorismo judicial’ abriu caminhos para o golpe institucional em 2016, a prisão de Lula e o avanço do autoritarismo militar – dos quais Barroso foi partícipe ativo.
Na ocasião do voto em favor da prisão de Lula, junto dos ministros Edson Fachin, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Alexandre de Moraes (hoje idolatrado pelo social-liberalismo), disse que o julgamento era “um teste importante para o sentimento republicano, para a democracia brasileira e o amadurecimento institucional”.
Durante os primeiros anos do governo fascista de Bolsonaro, adotou a postura de “garantir estabilidade institucional”. Em 2020, votou pela legalidade do ensino domiciliar (homeschooling), defendido pela base bolsonarista, e apoiou a MP 936, apelidada de “MP da Morte”, que autorizava empresas a suspender contratos e reduzir salários em até 100% durante a pandemia. Chegou também a suspender o reajuste salarial dos professores de Minas Gerais, conquistado por meio de greve contra o governo de Romeu Zema (Novo).
Posteriormente, sob o manto do progressismo, Barroso deu roupagens democráticas ao bonapartismo judicial que dá tom ao STF, bem aceito por setores do social-liberalismo e do governo. A participação do ministro na abertura do 59º Congresso da UNE (CONUNE), a convite da direção majoritária da entidade (controlada por PT e UJS/PCdoB), ilustrou essa contradição. Durante o evento, foi recebido por diversas organizações não alinhadas à majoritária da UNE como inimigo da enfermagem.

Faixa do Faísca Revolucionária durante o 59º CONUNE. Reprodução: redes sociais.
Na ocasião, Barroso afirmou “Nós derrotamos a ditadura e o bolsonarismo”. A fala demonstra a visão aristocrática do ministro, da qual o judiciário, mesmo não eleito pela soberania popular, é um tutor por excelência das boas práticas políticas, acima dos interesses da classe trabalhadora.
A democracia defendida por Barroso parte de uma concepção de que o Judiciário deve atuar como guardião da ordem capitalista e das restrições à soberania popular. Sua pretensa independência cumpre o papel de mascarar sua subserviência aos setores burgueses que mandam no país.
Assim, a prática judicial do ministro durante a última década é a de uma figura que, longe de representar o “progresso”, simboliza um autoritarismo judicial que é a ponta de lança do neoliberalismo.