O ingrato papel dos submissos

Os oportunistas como Arcary, que apenas vêem no horizonte as eleições, só podem cumprir o ingrato papel de submissos, aguardando um “giro” e desarmando os trabalhadores sob o pretexto do combate ao fascismo.

28 de Junho de 2025 às 0h00

Parlamentares comunistas protestam contra a cassação de seus mandatos em 10 de janeiro de 1948. Reprodução/Foto: Memorial da Democracia.

Por Machado

Valério Arcary, dirigente nacional da Resistência/PSOL, escreveu recentemente um artigo com o intuito de justificar a posição de “independência” face ao governo  defendida por sua organização e criticar as organizações revolucionárias, como o PCBR, que adotaram a postura de oposição ao governo, tachando-a de “ultra-esquerdismo”.

No entanto, seu artigo apenas consegue demonstrar com clareza o papel submisso à burguesia que sua organização vem se prestando a cumprir sob o pretexto de combate ao fascismo, e a curiosa forma com que inverte as conclusões evidentes na atualidade para justificar esse papel.

A realidade e a correlação de forças

A principal justificativa de Arcary para os “erros” dos comunistas é que estes desconsiderariam a realidade objetiva e a “correlação de forças”. Mas, em seu texto, Arcary descreve inúmeros fatos que justificam a oposição ao governo burguês, reflexo de uma posição proletária independente, e só apresenta desejos, por outro lado, para manter sua adesão disfarçada de “independência”.

Para caracterizar o Governo Lula, por exemplo, Arcary concorda que é um Governo burguês, algo evidente. Mas, diz, é “anormal”, porque é um governo burguês dirigido pelo “maior partido de esquerda do país” e (em sua visão) “a maior liderança popular da história”.

Porém, não há nenhuma “anormalidade” nisso. Na realidade, em qualquer país capitalista é comum, por vezes, a entrada de liberais mais à esquerda no governo, e a alternância entre forças mais conservadoras e mais “progressistas” na gestão do capitalismo. Não é necessário ir longe, basta ver o governo Alberto Fernandez na Argentina, Obrador e Sheinbaun no México, Petro na Colômbia. Há trabalhistas no Reino Unido, a Frente Popular francesa, o PSOE espanhol e um dos mais antigo partidos operários, o Partido Social-Democrata da Alemanha. A lista é longa.

A realidade é que a maior anormalidade do atual governo Lula-Alckmin é o quão poucas migalhas vêm distribuindo aos trabalhadores, e quão felizes seus representantes parecem estar ao aplicar a agenda neoliberal da burguesia sem recuos ou concessões aos trabalhadores.

Mas Arcary é um otimista, e deseja intensamente ver um “governo em disputa” entre os trabalhadores e a burguesia, quando em todas as medidas, mesmo as menores, o governo como um todo faz questão de defender o programa da ofensiva burguesa. O governo não está “cedendo” à pressão das classes dominantes, como alega Arcary, mas aplicando integralmente seu programa, e em cada “oportunidade” de fazer o mínimo por sua própria popularidade entre os trabalhadores, o governo apoiou a burguesia e seu programa e sequer cedeu migalhas como seus colegas reformistas fazem em situações similares.

Os fatos que Arcary levanta são verdadeiros em geral. A maioria dos trabalhadores organizados e da esquerda continua confiando em Lula, e a correlação de forças é extremamente desfavorável, o fascismo vem se reorganizando para a próxima eleição e influência parcela considerável da população, enquanto os trabalhadores e a juventude não estão se mobilizando amplamente, como um todo, com independência.

A situação em que estamos é ruim, e é sintoma da ausência de alternativa. E Arcary, nessa situação, justifica manter a tática majoritária da esquerda, submeter-se à gestão “progressista” do capitalismo e apoiar um governo burguês, acusando aqueles que propõem a alternativa de “ignorar a realidade”. Sim, a realidade é “cruel”, e não mudará por mera força de vontade, mas ainda mais cruel é criticar os que constroem a mudança para defender a atual situação apresentando-se como “realista”. Nós temos uma palavra mais exata para essa política: oportunista.

Justamente porque a correlação de forças é desfavorável, justamente pela ausência da atuação independente do proletariado, é que a tarefa dos comunistas é semear a desconfiança frente à burguesia e seu governo, e construir uma posição realmente independente, e não de apoio envergonhado. A única posição que reflete o interesse independente e objetivo do proletariado é a oposição a todo governo burguês, e esta posição deve ser construída, mesmo que lentamente, com mediações, mas com firmeza, sem mentiras ou ilusões de “disputa”.

Uma curiosa analogia

Para fundamentar sua tática, Arcary resolveu fazer uma analogia com a posição dos bolcheviques em 1917:

“Respeitadas as enormes diferenças da analogia, trata-se de fazer exigências ao governo Lula como Vladímir Lênin defendeu que o bolchevismo fizesse ao governo provisória liderado pelos esseristas e mencheviques em abril de 1917, para ganhar tempo. A diferença é que tudo na conjuntura brasileira é mais difícil e, sobretudo, muito mais lento. Não há a pressão da guerra, os nossos Kornilov’s já tentaram o golpe, e o desfecho da medição de forças será no terreno eleitoral. Mas o principal é que não estamos em uma situação revolucionária.”

Felizmente, Arcary esclareceu que há algumas enormes diferenças em nossa situação: não há guerra, não há situação revolucionária, “Kornilov já atuou”. Algumas outras ele não listou, mas são particularmente relevantes: não há revolução democrática, não há partido bolchevique, não há sovietes, não há Czar… E, mais importante, Vladimir Lênin não defendeu apoio algum ao governo provisório em abril. Pelo contrário, preparou o Partido para a derrubada do governo e afirmou: “o novo governo burguês não merece, nem mesmo no campo da política interna, nenhuma confiança do proletariado, e é inadmissível que este lhe preste qualquer apoio. (...) Os chefes da pequena burguesia ‘devem’ ensinar o povo a confiar na burguesia. Os proletários devem ensiná-lo a desconfiar.”

Curiosa analogia de Arcary, que compara duas situações sem nenhuma semelhança (com exceção talvez da existência de um governo burguês) e as utiliza para justificar uma atitude oposta à bolchevique. Mas é somente assim que se pode tentar justificar uma posição liberal com os ensinamentos de Lênin.

Independência do governo ou independência de classe?

A tática que a Resistência e o PSOL apresentam desde o início do governo Lula é apresentada como “independência” frente ao governo, que Arcary caracteriza como: “apoiando as medidas progressivas e justas, e criticando as medidas reacionárias e impopulares”.

Essa tática parece evidente: quem em sã consciência seria contra apoiar medidas progressistas e justas? Ou deixar de criticar medidas reacionárias e impopulares?

Porém, essa descrição mais representa a atual posição e trabalho das organizações que fazem oposição de esquerda do que qualquer corrente que advoga a “independência” do governo.

Infelizmente, Arcary não citou uma medida “progressista e justa” do governo do qual é independente para demonstrar as distinções entre a posição “ponderada” de sua corrente e o “ultraesquerdismo” dos revolucionários, apesar de ter citado diversas medidas reacionárias e impopulares. E, se tentasse, citaria meias medidas, pequenos acenos e mitigações as quais, todas, foram precedidas de uma longa luta dos trabalhadores e estudantes para conquistá-las.

Na realidade, apesar dos desejos dos “independentes”, os últimos anos de governo Lula-Alckmin se resumem à aplicação direta do programa ofensivo da burguesia, atacando os trabalhadores e suas condições de vida e organização. Uma organização consequente que afirme criticar todas as “medidas reacionárias e impopulares”, que são a regra geral do governo, só pode estar construindo a oposição ao governo e construindo  a mobilização proletária para conquistar as mínimas “medidas progressistas e justas”, e não apoiando o governo.

Porém, não é esse o papel cumprido por Arcary e Resistência. Pelo contrário, sua tática em realidade vem sendo a de buscar ao máximo abafar as críticas ao reacionarismo do governo, conciliar seu caráter burguês, convencer os trabalhadores de que este está em “disputa”, apoiar mesmo as medidas reacionárias. Em seu próprio texto Arcary não deixa de condenar as organizações de oposição que denunciam a política antipopular do governo, alegando que o “desgaste” abriria espaço para o bolsonarismo. O cálculo político, portanto, gera essa situação curiosa, de “independência” preocupada em não desgastar o governo.

Mas não surpreende essa concepção de “independência” do PSOL, que ocupa cargos no governo, compõe sua base parlamentar, acaba de demitir um assessor por suas críticas às “medidas reacionárias e impopulares”, está federado com o REDE (que também ocupa cargos) e busca uma federação com o PCdoB (hoje federado com o PT).

Nas universidades, o Afronte (juventude ligada ao Resistência), desde 2022 se une cada vez mais à direção majoritária social-liberal da UNE (apesar de, em 2023, mentirem aos estudantes prometendo oposição), e celebram acordos e compromissos para compor gestão de entidades e chapas para a UNE junto com as forças governistas nas maiores universidades do país.

E, na luta pela redução da jornada e contra a escala 6x1, a prioridade de comunicação e luta da Resistência esteve em blindar o governo de críticas e até mesmo entrar em reuniões com os representantes da burguesia no movimento sindical do RS, como já denunciamos. Afinal, para manter a “união nacional”, para garantir que o governo não se desgaste, é admissível até mesmo limpar a imagem de sindicalistas que acordaram a escala 10x1.

Frente à tática de oposição ao governo burguês adotada pelos revolucionários, Arcary defende o governo burguês e diz que “ainda há tempo, se o governo fizer um giro à esquerda.” Porém, parafraseando respeitosamente o dirigente, “[u]ma tática política não pode ser expressão de desejo.” E por mais que os oportunistas “desejem” um giro à esquerda, o governo se manterá burguês, como também foi durante toda a outra década de governos petistas, e como continuará sendo se houver uma reeleição.

E, ao aguardar o giro, ao “disputar” o governo através de apelos ou do plebiscito popular, a Resistência e o PSOL como um todo apenas iludem os trabalhadores, lançam mentiras, e cumprem o portentoso papel de submeter os trabalhadores à ideologia e à direção da burguesia. E, aos que não compactuam com esse ingrato papel, aos que falam a verdade sobre o caráter e as tendências do governo, acusam de ultraesquerdismo.

Arcary revela claramente que, com “independência” e “disputa”, só pode querer dizer submissão. Afinal, somente submetendo os trabalhadores à política social-liberal é possível não desgastar um governo que aplica integralmente a agenda da burguesia, enquanto se “deseja” que o governo burguês esteja em disputa.

E aos que não se submetem ao liberalismo, aos que constroem por compromisso com a classe trabalhadora a oposição ao governo burguês como um todo, e não “medida por medida”, Arcary intitula como “idiotas úteis” ultraesquerdistas. E, assim, faz um grande favor à manutenção da correlação de forças.

O “realismo” eleitoral

Mas essa postura é coerente com a visão da “realidade” que Arcary propõe, já que, em sua visão, “o desfecho da medição de forças será no terreno eleitoral”. Todo o seu cálculo também se baseia nas eleições:

“Não há no horizonte senão a possibilidade de reeleição de Lula ou de retorno da extrema direita ao poder”
(...)
“Apesar da provável condenação de Jair Bolsonaro e seus cúmplices, a oposição neofascista dirige um núcleo duro de algo próximo a 15% e influencia, pelo menos, 30% do país. Não precisa de mais para arrastar uma maioria nas eleições de 2026, dependendo do que vai acontecer em um ano e meio. O principal partido à esquerda do PT e do lulismo é o PSol e influencia menos de 5%.”
(...)
“Se as correntes revolucionárias tiverem como foco prioritário a denúncia do governo, a clássica tática do desgaste, colaboram com o seu enfraquecimento em uma conjuntura em que a única alternativa real na luta pelo poder é a extrema direita.”

 Quando se confunde a eleição com a luta pelo poder, é certo que a única aposta possível é a burguesia. E, por mais floreado com “analogias” de Lênin, só resta uma tática: a submissão à burguesia “mais progressista”, o “desejo” de reformas mais populares nas eleições, a “independência” de um governo sem recusar cargos...

Mas, para os que não abandonaram o marxismo e o horizonte revolucionário, não há apenas uma eleição. A classe trabalhadora está na defensiva, a consciência popular vem recuando constantemente, diversas organizações de classe abandonaram sua defesa e venderam seus interesses, comprando novamente a ideologia contrarrevolucionária do “fim da história”.

Mas a realidade prevalece e os trabalhadores se indignam constantemente, se organizam, lutam, apesar de todos os óbices, apesar de todos os oportunistas e desejosos que os iludem apresentando eleições e migalhas.

Nossa tarefa, enquanto comunistas, é dizer a verdade, defender e incentivar a independência de classe do proletariado, única classe revolucionária até o fim, e reforçar sua unidade e consciência contra a burguesia, e lutar por sua hegemonia construindo a aliança social com as demais camadas oprimidas. É preparar, lenta mas constantemente, a tomada do poder, a destruição das bases burguesas de governo, e não apenas “calcular” os votos da próxima eleição.

Mas, mesmo para as eleições, “desejar” o giro à esquerda do governo e lhe dar um “voto de confiança”, deixando de criticá-lo, não parece vir funcionando muito para refrear o crescimento eleitoral da extrema-direita. Abaixar as bandeiras e submeter o proletariado à burguesia não reforça sua posição, mas apenas enfraquece a classe, e é justamente essa fraqueza que abriu espaço ao fascismo nos últimos 20 anos, e que continuará alimentando a serpente. Também para o enfrentamento ao fascismo nas eleições, a existência de um proletariado forte e independente da burguesia, capaz de apresentar suas próprias pautas e conquistar a hegemonia, é uma necessidade para pressionar e intimidar o fascismo, e obrigar a burguesia a fazer concessões e manter as liberdades democráticas.

Por isso, o PCBR não hesita em fazer uma oposição classista ao governo burguês Lula-Alckmin e denunciar a ofensiva burguesa que este vem operando. Fortalecer o proletariado, construir sua unidade e consciência, e nessa atividade combater, com consequência, o fascismo em suas bases, é a tarefa imediata dos comunistas. Já os oportunistas como Arcary, que apenas vêem no horizonte as eleições, só podem cumprir o ingrato papel de submissos, aguardando um “giro” e desarmando os trabalhadores sob o pretexto do combate ao fascismo.